Houvesse a vontade de um deus qualquer, o sonho de um homem aleatório — que Portugal nasceria? Olhar para a magna história de Portugal é encontrar relatadas em letras douradas as conquistas de um rei, feitas por um povo. Normalmente, pouco diz de um território delimitado por uma mistura de fronteiras naturais e abstratas a cabeça dos homens que se intitulam governantes — mas muito diz desse país as pessoas que o habitam.
Esta terça-feira, os deputados escolhidos pelos partidos para serem elegíveis a um lugar na Assembleia da República tomaram posse, no início do fim do impasse em que Portugal mergulhou nos últimos meses de 2021.
O fulgor patriótico da Mensagem de Fernando Pessoa diz a meias páginas que ainda falta cumprir Portugal. Augusto Santos Silva, eleito para o segundo cargo da hierarquia do Estado Português, recebendo 156 votos dos 230 deputados, alertou hoje para os perigos do “vírus” do populismo, mas pediu à maioria dos parlamentares que não concedam a essa corrente extremista maior relevância do que aquela que o povo português lhe atribuiu nas últimas eleições legislativas.
Numa das principais passagens do seu discurso, o ex-ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros sustentou a tese de que a língua portuguesa “é fator de construção de pátrias distintas e ao mesmo tempo o laço mais forte e perene de ligação entre essas pátrias”.
“O patriotismo só medra no combate ao nacionalismo. O patriota, porque ama a sua pátria, enaltece o amor dos outros pelas pátrias respetivas e percebe que só na pluralidade das pátrias floresce verdadeiramente a sua. O nacionalista, porém, odeia a pátria dos outros, quer fechar a sua ao contacto com as demais, discrimina quem é diferente e, em vez de hospitalidade, promete ostracismo”, contrapôs.
Após estabelecer as diferenças, o novo presidente do parlamento invocou a “incrível força” da língua portuguesa, “de tantas pátrias”, para se perceber de forma profunda que “o bom requisito para se ser patriota é não ser nacionalista”.
“Isto é, não ter medo de abrir fronteiras, de integrar migrantes, de acolher refugiados, de praticar o comércio e as trocas culturais”, completou, recebendo então uma prolongada salva de palmas.
A seguir, numa nova crítica aos extremismos e radicalismos, o novo presidente do parlamento recorreu à História para dizer que a língua portuguesa evoluiu “em encontros, em descobertas, em miscigenações”, porque é uma língua “que indaga, imagina e em que, portanto, soam postiças as frases que atiram pedras em vez de argumentos e que cegam em vez de iluminarem”.
“O sinal de pontuação de que a democracia mais precisa é o ponto de interrogação. O sinal que mais dispensa é o ponto de exclamação, o qual a democracia deve usar com grande parcimónia. Deixemos as certezas aos néscios e cultivemos sem temor a nossa capacidade de questionar e inquirir, porque a interrogação sacode os preconceitos, abre caminhos, convida a ouvir as várias respostas, trava o passo ao dogmatismo e à intolerância”, declarou.
Neste contexto, deixou um recado: “Todas as ideias podem ser trazidas, mesmo aquelas que contestam a democracia, porque essa é a mais óbvia vantagem da democracia sobre a ditadura”.
“As ideias próprias não precisam de ser gritadas, porque a qualidade dos argumentos não se mede em decibéis. O único discurso sem lugar, aqui [no parlamento], é o discurso do ódio, o discurso de negar a dignidade humana seja a quem for, o discurso que insulta o outro só porque o outro é diferente, o discurso que incitar à violência e à perseguição”, disse, antes de rematar e de receber nova prolongada salva de palmas:
“A liberdade e a igualdade custaram demasiado para que agora pudéssemos aceitar regredir para novos tempos de barbárie”, acrescentou.
Augusto Santos Silva defendeu que a Assembleia da República é “por excelência o espaço da representação da nação em toda a sua diversidade e pluralidade de ideias e opiniões, para além das funções matriciais de produção legislativa, de fiscalização e escrutínio do governo e da administração”.
“É o verdadeiro centro do debate político”, concluiu, antes de alertar para a necessidade de cumprimento de duas regras que considerou elementares: O respeito por todos os mandatos que resultam da livre expressão do voto dos portugueses, quaisquer que sejam as suas propostas programáticas; e o respeito pela vontade popular, tal como ela se materializa na soma agregadas dos votos individuais e se exprime na dimensão dos grupos parlamentares.
Neste contexto, advertiu também que os direitos de cada deputado “não podem servir de pretexto para imporem a distorção ou desrespeito pelas maiorias que o povo soberanamente constituiu”.
“Estes tempos difíceis, complexos, são tempos propícios a toda a espécie de manipulações, de preconceitos e de messianismos, tempos em que pode prosperar o populismo com as simplificações abusivas, as exclusões sumárias, a negação do pluralismo e da diversidade, a estigmatização dos vulneráveis, a culpabilização das vítimas e a substituição do debate pelo insulto”, apontou.
O ex-ministro dos Negócios Estrangeiros considerou que a sociedade portuguesa “não está imune a esse vírus e transmitiu então um recado à maioria dos deputados: “A melhor maneira de combater esse vírus é não lhe conceder mais relevância do que aquela que o povo português lhe quis atribuir”.“É opor à violência excludente a firme serenidade de quem sabe ter o apoio das pessoas e o conforto da razão”, sustentou.
Com rostos novos e assinaláveis desaparecimentos, a paisagem parlamentar mudou. No vai e vem de vozes que reclamam ser também elas novas, com ideias e vontades de outros rasgos, há de se desenhar o futuro imediato do país. Oxalá também o dos vindouros — e, algures neste caminho, haverá, disse Agustina Bessa-Luís, “um Portugal que não seja só este lençol de terra acabado na espuma do mar.”
*Com Lusa
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