O primeiro-ministro português procura, esta sexta-feira, um “acordo interistitucional tripartido”. Para António Costa, presidente em exercício do Conselho da União Europeia, esta será a definição de sucesso da Cimeira Social do Porto: um acordo “que reúna a Comissão Europeia, o Parlamento Europeu, os representantes da European Trade Union Confederation [a principal organização sindical a nível europeu] e da Business Europe [confederação que representa empresas europeias], e ainda da representação da sociedade civil”.

Esta, pelo menos, foi a sinopse deixada por Costa na quarta-feira, num debate com o Comité das Regiões. Mas, para dar este “passo muito grande”, como o próprio descreve, não basta a vontade da Presidência Portuguesa da União Europeia (PPUE) — é que não só as questões sociais vivem numa contradição desde que os países europeus se decidiram unir, como pelo menos 11 já vieram avisar que o distanciamento não se aplica apenas na prevenção sanitária: os desejos de Bruxelas são uma coisa, as vontades dos governos nacionais são outra.

Em causa, nesta cimeira, está o respaldo político dos líderes dos 27 Estados-membros da União Europeia ao plano de ação apresentado em março pela Comissão Europeia que implementa a estratégia no Pilar Social Europeu: duas dezenas de diretrizes, adotadas em Gotemburgo, na Suécia, em 2017.

No documento de março, a Comissão traduziu esse pilar em três objetivos concretos: garantir que, até 2030, pelo menos 78% da população europeia está empregada; ter 60% dos adultos europeus a participar em ações de formação todos os anos; e tirar 15 milhões de europeus do risco de pobreza.

Metas, contudo, que ora são vistas como excessivas, ora como muito pouco ambiciosas. A esquerda europeia, aliás, organiza mesmo uma “contra-cimeira”, também no Porto. Com o Bloco de Esquerda como anfitrião, o evento critica a debilidade do ponto de partida e o caráter não vinculativo das metas apresentadas.

A Europa encontrou um “modelo de crescimento que não gera riqueza: gera ricos”, criticou fonte da organização ao SAPO24. Contrariar aquilo que consideram um “ato de cosmética”, seria procurar medidas efetivas para garantir a equidade social no bloco europeu — por exemplo, não ter os investimentos sociais a pesar nas contas do défice.

Críticas também ao grande ausente da cimeira: o Parlamento Europeu — o único orgão em Bruxelas que é eleito diretamente pelos cidadãos. Há queixas, em Bruxelas, de que o envolvimento da assembleia comunitária foi posto de parte da decisão do plano que quer afetar diretamente a vida dos europeus.

Críticas que se somam à má imagem que Portugal ganhou, no início deste ano, pela forma como se preparou para um semestre de presidência europeia numa altura em que as viagens estão desaconselhadas, contratando espaços e catering para eventos onde não se esperam multidões.

O site ‘POLITICO’ chamou-lhe “a presidência fantasma” e criticou a forma como, apesar disso, Lisboa ganhou um centro de imprensa no valor de 260.591 euros, mais de 35 mil euros foram gastos em bebidas e quase 40 mil foram para comprar camisas e fatos — tudo isto, numa altura em que o país se aproximava dos números mais dramáticos da pandemia (chegando a ter mesmo os piores do mundo). O SAPO24 fez as contas e o governo ia gastar mais de 370 mil euros por dia ao longo de seis meses com a Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia.

Hoje as regras são mais apertadas. Até para aceder aos espaços de imprensa os jornalistas precisam de apresentar um teste PCR negativo à covid-19, feito nas 72 horas anteriores. Quem o não tiver, pode dirigir-se à equipa do INEM, que se equipa a rigor para enfiar a zaragatoa nariz acima de forma a garantir a segurança pandémica.

Ainda assim, há quatro grandes ausências, justificadas com a covid-19: os chefes do governo da Alemanha, Países Baixos, Malta e Índia. A ausência de Angela Merkel é, contudo, um incómodo maior que aquilo que à primeira vista possa parecer.

Já em 2017, em Gotemburgo, quando o Pilar Social foi adotado, a chanceler não marcou presença. Na altura, a ausência foi notada — e interpretada como um sinal de que a líder do país mais rico e poderoso da União Europeia não via a política social como uma prioridade. Cinco anos depois, Angela Merkel participará, mas à distância: a culpa é da situação pandémica na Alemanha, segundo explicou, na quarta-feira, Ana Paula Zacarias, a secretária de Estado dos Assuntos Europeus de Portugal, frisando que a opção foi “comunicada” e “concertada” com a presidência portuguesa.

Fonte da organização indicou, esta quinta-feira, que o ministro alemão do Trabalho até já está no Porto e marcará presença. Ainda assim, a ausência de Merkel pode dificultar a fluidez das negociações (quer da Declaração do Porto, quer das decisões em torno das vacinas contra a covid-19).

A primeira cimeira do género aconteceu em 1997. Na altura, o antigo presidente da Comissão Europeia Jean-Claude Junker era então o primeiro-ministro luxemburguês e foi o anfitrião. Recentemente, numa entrevista à agência portuguesa Lusa, sublinhou que “não se pode construir uma União Europeia harmoniosa sem cuidar das questões sociais”. A segunda cimeira social aconteceu apenas vinte anos mais tarde, na Suécia, precisamente durante o seu tempo à frente da Comissão Europeia.

Entrada da Alfândega Nova, no Porto, onde decorrerá a Cimeira Social, parte da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia. créditos: PEDRO SOARES BOTELHO / MADREMEDIA

O pilar social

O Pilar Europeu dos Direitos Sociais aparece em 2017, com o objetivo de “servir de orientação para atingir resultados eficazes em matéria social e de emprego que permitam dar resposta aos desafios atuais e futuros e satisfazer as necessidades essenciais da população, no sentido de garantir uma melhor adoção e aplicação dos direitos sociais”.

As palavras são importantes e, como vieram lembrar 11 países nas vésperas da Cimeira Social do Porto, o Pilar dos Direitos Sociais, por muito basilar que seja, é apenas uma orientação para a política interna dos Estados-membros. Não cabe a Bruxelas — ou ao Porto — decidir, por exemplo, quanto deve valer o salário mínimo, ou como se organizam as prestações em caso de desemprego.

O “Documento informal de Áustria, Bulgária, Dinamarca, Estónia, Finlândia, Irlanda, Letónia, Lituânia, Malta, Países Baixos e Suécia”, assim chamado e divulgado pelo site 'POLITICO', lembra que o Pilar Social serve de “bússola para políticas sociais e do mercado de trabalho eficazes e promove a troca de boas práticas entre Estados-membros” — mas a efetiva implementação do pilar “depende grandemente da ação dos Estados-membros, que têm em primeiro lugar a responsabilidade pelas políticas de emprego, educação e formação e segurança social”.

Dizem mais: “A ação ao nível da UE pode complementar a ação nacional, mas (…) qualquer ação ao nível da UE deve respeitar totalmente a divisão de competências da União, dos Estados-membros e dos parceiros sociais.”

O Pilar dos Direitos Sociais estabelece, então, vinte princípios amplos, que concretizam a estratégia para a Europa 2020, que surge em 2010 e delineia já objetivos concretos a alcançar na década que ali se iniciava. Três anos depois do encontro de Gotemburgo, onde foram apresentados os tais vinte princípios, a Comissão Europeia apresentou um plano de ação, que tem como objetivo tornar tangíveis os princípios do Pilar.

A discussão na Cimeira do Porto tem muito a ver com isto. O produto final deste fim de semana é o apoio (ou não) dos 27 a uma Declaração do Porto, um compromisso dos Estados-membros com a aplicação nacional do plano de ação desenhado pela Comissão Europeia.

A Presidência Portuguesa reafirma a esperança de que os Estados-membros aprovem os objetivos do plano de ação, afinados com os parceiros sociais, para “empurrar a UE Social para a frente” — isto foi defendido ainda esta semana por uma fonte sénior da comitiva portuguesa, que destaca o “esforço conjunto” (dos países, parceiros sociais e sociedade civil) com as instituições europeias.

Tudo isto é assumido, contudo, sempre com uma ressalva: cada país vai posteriormente desenvolver o seu próprio plano de ação. As linhas desenhadas na Cimeira do Porto não são obrigatórias, apenas “recomendações”, ou, como lhe chamam os 11 países do documento oficioso, “uma bússola”. Para lá disso, cabe a cada governo escolher o que fazer.

Portugal terá, também, de fazer esse caminho. Ninguém da PPUE se compromete com datas, nem com as características desse plano eventual. Certo é que o governo português “apoia a ambição dos objetivos”, mas não vai ocupar o fim de semana dedicado à Europa com a sua estratégia interna.

Entrada da Alfândega Nova, no Porto, onde decorrerá a Cimeira Social, parte da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia. PEDRO SOARES BOTELHO / MADREMEDIA créditos: PEDRO SOARES BOTELHO / MADREMEDIA

O medo do género

Apesar dos anseios da Polónia e da Hungria, uma referência ao género constará da Declaração do Porto que os líderes europeus vão aprovar no final da Cimeira Social, assunto que dividiu os Estados-membros durante as negociações.

Fonte diplomática disse à Lusa que os representantes dos Estados-membros chegaram a acordo sobre a referência ao género na Declaração de Princípios da Cimeira Social, que tinha sido posta em dúvida pela Hungria e a Polónia.

Segundo a fonte, o acordo prevê que no texto da Declaração, a ser submetida aos líderes da UE presentes na Cimeira Social do Porto, consta a palavra género no que diz respeito a questões de emprego, salários e pensões.

Numa outra parte do texto, onde se afirmava que deveria ser promovida a igualdade e equidade de género para cada indivíduo, ficou contemplada uma expressão mais ampla que remete para todos os indivíduos na sociedade.

Segundo o esboço da Declaração de Princípios, a que a Lusa teve acesso, o texto acordado estabelece no seu ponto 10 que os Estados-membros se comprometem a intensificar “os esforços para combater a discriminação” e trabalharão “ativamente para reduzir as disparidades de género no emprego, remuneração e pensões”.

Em simultâneo, desaparece a expressão “entre mulheres e homens”, mantendo-se que os Estados-membros se comprometerão a “promover a igualdade e equidade para cada indivíduo na nossa sociedade, de acordo com os princípios fundamentais da União Europeia” (UE).

Na versão que suscitou o desacordo, este ponto incluía a promoção da igualdade e equidade “de género para cada indivíduo”.

A retirada destas palavras, de acordo com uma notícia divulgada ontem de manhã pelo site europeu EUObserver, foi feita por insistência da Hungria e da Polónia. Todavia, segundo a citada fonte diplomática, a redação final acabou por traduzir-se numa expressão “bastante mais ampla de promoção da igualdade e da justiça para todos os indivíduos da nossa sociedade, independentemente do seu género, cor, ou raça”.

Na publicação feita esta quinta-feira, o EUObserver dava conta de que a palavra “género” tinha sido removida da Declaração, notícia que foi depois partilhada no Twitter pelo relator especial das Nações Unidas sobre pobreza extrema e direitos humanos, Olivier De Schutter.

“As mulheres recebem 14% menos do que os homens e a disparidade nas pensões é de 37%. Ainda assim, os líderes da UE preparam-se para retirar da Declaração do Porto qualquer referência à igualdade de género e à necessidade de combater a discriminação das mulheres: isto é uma traição ao ideal europeu de igualdade”, criticou.

Em declarações à Lusa, via telefone, antes de entrar na reunião do Partido Socialista Europeu, que hoje se realiza no Porto, a eurodeputada espanhola Iratxe García Pérez confirmou as “tensões” sobre o conceito de género que têm marcado a negociação da Declaração do Porto.

“Há pressões por parte de alguns Estados-membros [no sentido de retirar do texto ‘igualdade de género], mas também há outros Estados-membros que estão a pressionar para que se mantenha no texto”, confirmou, precisando que a “aversão ao termo género” vem dos governos da Polónia e da Hungria.

A presidente da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas no Parlamento Europeu adiantou que o grupo já vincou junto do presidente do Conselho, Charles Michel, “a necessidade de se assumir o compromisso com a agenda de género” e de o ver “transferido” para o texto definitivo da Declaração do Porto.

“É uma prioridade para os social-democratas e uma prioridade para a agenda social europeia. Falamos das mulheres, que são metade da população europeia”, assinalou, vincando a necessidade de a UE adotar “políticas dirigidas à igualdade de género” em todos os domínios da sociedade.

A presidência portuguesa do Conselho da UE – que decorre até 30 de junho e tem na Cimeira Social do Porto o seu ponto alto – tem dito e repetido que o Pilar Social tem de incluir uma “perspetiva de género” transversal.

Prometendo “gerar consensos” entre os 27, a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, reconhecia, em entrevista à Lusa em fevereiro, que a igualdade de género é um tema “particularmente difícil, desde logo porque há países que recusam a própria ideia subjacente” ao conceito. Portugal quer “garantir” que o Pilar Social “atenda à dimensão de género”, ou seja, “avalia todas as suas ações em função dos resultados que elas produzem nas mulheres e nos homens, porque essa é a melhor forma de ir corrigido essas desigualdades”, vincou, na altura.

Entrada da Alfândega Nova, no Porto, onde decorrerá a Cimeira Social, parte da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia. PEDRO SOARES BOTELHO / MADREMEDIA créditos: PEDRO SOARES BOTELHO / MADREMEDIA

O elefante na sala

A dimensão social da União Europeia ficou escancarada com a pandemia de covid-19. A forma como os países e as instituições europeias se organizaram para fazer face à doença que ainda hoje continua a matar centenas de cidadãos europeus todos os dias está como pano de fundo de todas as intervenções: seja para criticar a coordenação, seja simplesmente porque o programa está constrangido pela doença.

Ainda assim, apesar de todas as críticas apontadas, este encontro não é visto como um mero engenho político, nem como uma oportunidade de ampliação política de António Costa. O plano de ação do Pilar Social é defendido pelas estruturas mais altas da Comissão Europeia e têm um lastro que antecede a presidência portuguesa. O papel do primeiro-ministro aqui é o de ser o anfitrião, no papel de presidente em exercício do Conselho da União Europeia — papel rotativo, que vai andando de país em país a cada seis meses (o último a tê-lo, em Portugal, foi José Sócrates, em 2007. Na altura, com o Tratado de Lisboa a desbloquear impasses na organização da UE, ficou célebre a frase “porreiro, pá”, que o então chefe do governo disse a Durão Barroso, naquele tempo o presidente da Comissão Europeia).

Quer isto dizer que o Porto não ficou com um dos seus mais belos jardins fechados só para uma foto de família com risco de contágio: o Palácio de Cristal será palco do Conselho Europeu — informal — que garantirá, ou não, o apoio dos 27 aos desejos da Comissão. E esse apoio é aquilo que realmente importa perceber nesta Cimeira Social.

Porém, esta quinta-feira, empurrado pelo novo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, um novo tema tomou conta da agenda: as patentes das vacinas contra a covid-19; concretamente, o levantamento dessas restrições (permitindo, assim, que mais laboratórios produzam as fórmulas bem sucedidas).

Fonte da PPUE disse ao SAPO24 que o jantar de trabalho desta sexta-feira será dominado por uma discussão sobre a “coordenação da pandemia”. Aí caberá a conversa sobre as vacinas, que Charles Michel, o presidente do Conselho Europeu, disse que ia acontecer no Porto.

A imprensa — nacional e estrangeira — já filou o sentido para esse tema. E, assim, o que esperar realmente da Cimeira Social do Porto torna-se mais incerto, mais nebuloso. Poderá ser que deste fim de semana saia uma Europa mais coesa nos objetivos sociais, com António Costa a brilhar no centro dos acordos. Mas também poderá ser que a pandemia — omnipresente neste encontro — domine totalmente as discussões, relegando a Declaração do Porto para um apontamento na história do semestre português, que termina no mês que vem.

Agenda:

Esta sexta-feira, o programa começa às 11h na câmara municipal do Porto. Rui Moreira vai entregar as chaves da cidade aos presidentes do Conselho, do Parlamento e da Comissão europeus, numa cerimónia acompanhada também pelo primeiro-ministro português, António Costa.

Depois, os trabalhos arrancam, já depois das 14h, na zona ribeirinha da cidade, na Alfândega Nova. António Costa e Ursula von der Leyen presidem à sessão de abertura, que dará início à Cimeira. Às 18:40, já depois do encerramento da Cimeira, haverá uma conferência de imprensa conjunta do primeiro-ministro, presidente do Parlamento Europeu, presidente do Conselho Europeu e da presidente da Comissão Europeia.

Cerca de uma hora mais tarde, no Palácio de Cristal, a dois quilómetros da Alfândega, começa o jantar de trabalho do Conselho Europeu informal. Será aqui discutida a situação da covid-19 na Europa e, muito provavelmente, debatido o levantamento das patentes relativas às vacinas contra a doença.

No sábado, prossegue este Conselho Europeu, seguindo-se um almoço de trabalho para a reunião de Alto Nível União Europeia/Índia, com a participação à distância do primeiro-ministro indiano (inicialmente, esteve para vir ao Porto, mas a situação pandémica levou à mudança de planos).