A uma primeira vista, o livro de John Gottman intitulado “What makes love last” parece pouco diferente de um qualquer manual de auto-ajuda. Mesmo o facto de ser “Dr.” John Gottman contribui para essa desconfiança, já que os programas de televisão também estão cheios de estrelas instantâneas que são doutores em alguma coisa e que nos entram pelo ecrã dentro com a proposta de resolver vários problemas na nossa vida. Mas, algumas pesquisas depois, lá percebemos que este John Gottman é um senhor com 40 anos de investigação num tema que parece à partida mais passível de ser analisado por poetas do que por cientistas: o amor. A Psychology Today, uma das mais prestigiadas revistas sobre psicologia, chamou-lhe o Einstein do Amor e o trabalho que faz já passou pelos principais meios de comunicação internacionais do New York Times à BBC.
Não era esse o caminho que imaginava para si em criança. A paixão de John Gottman era a matemática - e a psicologia acabou por o levar à matemática (ou vice-versa). O facto é que este austríaco de origem judaica cresceu nos anos que se seguiram à 2ª Guerra Mundial convencido - como toda a comunidade judaica - que Einstein tinha sido o cérebro por trás da vitória dos aliados. “Cresci com a ideia que a matemática era fixe e poderosa”, diz.
Depois de se licenciar em matemática, John Gottman chegou a ser professor de cálculo e de geometria analítica, dando aulas nocturnas. Conseguiu depois uma bolsa - Woodrow Wilson Fellowship - e foi para o MIT onde se desiludiu pela distância entre a matemática teórica e aplicada. Foi aí que se começou a interessar pela psicologia, reza a história que foi porque tinha um colega de quarto a estudar nessa área. Decide fazer um mestrado em psicologia e posteriormente um doutoramento em psicologia clínica na Universidade de Wisconsin onde se tornou um psicólogo de crianças. É nesta universidade que vai iniciar os primeiros estudos de casais, ainda em modo rudimentar, com recurso apenas à gravação de conversas e posterior visualização. E é também aqui que conhece Robert Levenson, outro professor assistente de psicologia que também estada interessado em tornar mensurável algumas respostas comportamentais. Tornaram-se e mantém-se melhores amigos até hoje.
Mas, voltemos à razão porque escolhemos Gottman para falar de uma das questões mais essenciais do amor: quanto dura e porque dura, mesmo que nos tenhamos habituado a pensar nisto da maneira que canta Sérgio Godinho, o amor dura, se durar, enquanto dura.
"Não vás contar que mudei a fechadura
nem revelar que reclamei dos teus anéis
o amor dura, se durar, enquanto dura
e o vento voa à procura dos papéis"
Os cientistas sociais começaram a estudar o fenómeno do casamento e da separação nos anos 70, uma década em que os divórcios cresceram e começaram as preocupações sobre o impacto nas crianças de famílias que se separavam. A pergunta para a qual procuravam respostas estes cientistas era simples mas complicada: existia algo em comum nos casamentos que falhavam? E se sim, podia ser de alguma forma prevenido?
John Gottman iniciou também nessa altura as suas pesquisas, ainda que só em 1986 tenha lançado o “The Love Lab” (literalmente o laboratório do amor). Apesar de todos o conhecerem assim, o nome oficial é Relationship Research Institute e as equipas que aqui trabalham garantem ter um modelo matemático de previsão sobre casamentos e divórcios. John Gottman devenvolveu o seu trabalho lado a lado com cientistas da matemática aplicada, como é o caso de James Murray e Kristin Swanson. Conquistou a atenção da comunidade académica, primeiro, e do grande público, depois, pelo grau de certeza das suas previsões. O que é que isto significa? Basicamente que, em 94% das vezes que observa um determinado casal, consegue dizer se vai continuar junto ou não.
Como foram realizadas estas pesquisas? No início do projeto, os académicos convidaram vários casais recém-casados e observaram a forma como interagiam. Não se tratava apenas de os ver e ouvir - faziam mais do que isso. Ligavam-nos a eléctrodos enquanto lhes pediam que falassem da sua relação, de um conflito que os tivesse afetado e de uma boa memória. Tudo isso ficava registado em algo parecido como um electrocardiograma que era o resultado da medição da pressão arterial, batimento cardíaco e produção de suor. Nos seis anos seguintes, a equipa de investigadores não tinha qualquer contacto com estes casais. Seis anos mais tarde, eles voltavam ao laboratório.
Os mestres e os desastres
Apesar de não acompanhar os casais durante o período de seis anos, o “The Love Lab” deixava-os catalogados a seguir à “experiência”. Uma categorização simples, em dois grupos apenas: os masters (mestres) e os disasters (desastres). O que definia cada um dos grupos eram os dados recolhidos pelos eléctrodos que lhes tinham sido colocados enquanto conversavam sobre temas importantes ou banais. Uns, mantinham a calma durante a conversa, mas a sua pressão arterial aumentava e a produção de suor também. Consegue adivinhar quais são o quê? Os “falsos” calmos, a julgar pelos dados, eram os do grupo dos “disasters” e Gottman provou, ao longo dos anos, que quanto maior a atividade registada, maior a probabilidade de separação.
Do ponto de vista científico, esse aumento de atividade dos indicadores representa uma realidade psicológica subjacente e que é a tensão entre os dois membros do casal. É essa tensão que os faz estar em permanente estado de resposta - atacar ou ser atacado - mesmo quando falavam de coisas banais. E é esse estado que prolongado no tempo os conduzia, em muitos dos casos, à separação. Ao inverso, os mestres registavam níveis mais baixos de pressão, batimento, suor, mesmo que discutissem. E, na explicação dos cientistas, isso resultava de um clima de confiança e intimidade estabelecido que lhes permitia manter a calma, por dentro mesmo se por fora estivessem a discutir. E esta calma - ou ausência dela - que também pode ser chamada serenidade ou confiança no outro.
Uns anos mais tarde, na década de 90, John Gottman decidiu levar a sua experiência mais longe. Dessa vez convidou 130 recém-casados a passar um dia no The Love Lab, preparado como uma espécie de “hotel” do campus, sem nada para fazer que não fosse o programa de um dia livre, ler, ouvir música, conversar, namorar. O que resultou dessa observação foi um novo dado interessante: no seu dia a dia, os casais lançam reptos de atenção. Ou para uma notícia que acabaram de ler, ou porque se lembraram de uma história curiosa enquanto experimentam um novo prato ou simplesmente para falar de si.
Mas nem todos os casais respondem da mesma maneira a estes reptos. Muitos casais simplesmente não querem ser interrompidos na sua individualidade - ou no seu mundo. Se estão a ler ou a ver um filme, aborrecem-se por serem “convocados” pelo outro para um tema que não o seu. Esses são os casais mais susceptíveis de se separarem. O amor precisa de atenção - está nas músicas e nos poemas e, depois destas experiências, também nos frios dados analíticos. Dos 130 casais observados nessa experiência, os que estavam divorciados seis anos depois tinham apenas “aceite” o repto de atenção 33% das vezes. Os que continuavam casados tinham, ao invés, estado disponíveis para o outro 87% das vezes.
Todos os que já tiveram uma relação falhada (quem não teve?) conhecem este percurso. A certo momento um dos dois, se não ambos, está a procura do erro e não do que está certo. E isso é um poderoso indicador na “ciência do amor”. Os “mestres” escrutinam o mundo à volta orientados para aquilo que apreciam, os “desastres” fazem o inverso e orientam-se para o que lhes desagrada. São duas perspectivas muito diferentes face à vida e à pessoa com a qual se vive: numa domina da generosidade, noutra a hostilidade.
O principal assassino de casamentos
No livro “Blink”, publicado em 2005, o jornalista e escritor Malcolm Gladwell celebrizou de certa forma estas experiências sociais de John Gottman, enfatizando um dos aspectos das suas descobertas. Ao observar dezenas e dezenas de casais, o casal Gottman (sim, John tem um casamento duradouro com Julie, também psicóloga, que tem trabalhado com eles nestes temas) identificou o principal “assassino” de casamentos, a emoção que estando presente de alguma forma dificilmente permitirá ao casal continuar junto. Essa emoção chama-se desprezo.
"Já de manhã, vai parecer tudo tão diferente
não é do vinho, nem do sono, ou do café
é só que o olho por olho, dente por dente
nos deixa o rosto assemelhado ao que não é"
Ignorar a pessoa com quem se vive ou tratá-la como se fosse invisível ou não tivesse valor, é a forma mais eficaz - e mais dolorosa - de matar o amor. Não mata apenas a emoção, faz pior que isso. Prolongado no tempo, o desprezo anula também as defesas físicas das pessoas que são o seu alvo, deixando-as mais expostas a doenças, banais ou graves, e menos capazes de recuperar. A boa notícia é que do outro lado existe uma poderosa fórmula. Podemos chamar-lhe amabilidade, generosidade, mas talvez o mais correto seja mesmo bondade. A capacidade de ser bom para o outro faz milagres pelos dois e é essa capacidade que leva os casamentos duradouros em frente.
Os dois psicólogos explicam este fenómeno de uma maneira curiosa. Dizem que podemos olhar para esta capacidade de ser bom como algo que se tem ou não. Mas também podemos pensar nela como se um músculo se tratasse. Mesmo que uns tenham naturalmente mais músculo que outros, o segredo está no treino. O que faz com a ciência também valide aquela premissa do senso comum que diz que o amor dá muito trabalho - dá mesmo.
Cinco segundos de emoções positivas para bater um segundo negativo
Outro ponto importante que tendemos a esquecer ou a ignorar é que as emoções negativas nos afetam mais do que as emoções positivas. Ou seja, o que nos habituamos a identificar como o nosso ressentimento ou mágoa é arquivado pelo nosso cérebro de forma mais intensa do que as emoções boas, como as que guardamos quando nos fazem um elogio ou um carinho. É com base neste “senso comum” documentado cientificamente que Gottman e a sua equipa desenvolveram aquela que é uma das suas fórmulas preferidas: um cinco para um, ou seja, a necessidade de cinco segundos de emoções positivas por cada segundo de emoção negativa. Porque é que a negatividade tem mais impacto no cérebro? São vários os motivos, mas para efeitos da relação do casal um dos maiores problemas é que se acumula se nada for feito para o impedir ou diluir.
Todos os seres avaliam inconscientemente e a toda a hora as suas experiências numa escala simples: são positivas ou negativas. Para conseguir dar resposta ou para reparar as vezes em que não se consegue estar disponível para a pessoa com quem vivemos, é necessário guardar espaço para as necessidades do outro e não apenas para as nossas. Para Gottman, essa é a medida da confiança - o grau em que acreditamos que o nosso marido ou mulher preza os nossos interesses, não se esquece deles, e consegue ouvir-nos sem ser defensivamente, mesmo num momento de zanga. E este é o factor mais importante para levar um casamento em frente além dos míticos sete anos.
Esta projecção é especialmente curiosa porque é aqui que mais de perto da psicologia se cruza com a matemática, aquilo que a teoria dos jogos define como “o equilíbrio de Nash” e que é o ponto definido pelo prémio Nobel John Nash (retratado no filme “Uma mete brilhante”) em que duas pessoas em qualquer interacção maximizam o seu benefício.
Principia Amoris é o livro mais recente de Gottman, aquele que considera a sua obra prima e em que descreve o amor como “um sistema de energia” em que os dois membros do casal criam um “campo de força” que afeta a forma como cada um vive.
É um livro estranho, como se a poesia - espaço privilegiado do amor - se encontrasse com as equações da matemática. Para o escrever, Gottman trabalhou em dupla durante mais de 15 anos com o matemático e biólogo James Murray e juntos criaram um conjunto de variáveis que ajudam a determinar se um casamento está em estado de graça ou se se aproxima do inferno. Entender o amor, diz o psicólogo, é como entender o tempo: “é complexo mas essencialmente tem imensos padrões que os matemáticos podem interpretar”. Esta forma de olhar para os comportamentos humanos, e para o amor em particular, não tem sido especialmente acarinhada pelos psicólogos, mas, por outro lado, tem chamado a atenção dos matemáticos. Como Hannah Fry, autora de “The Mathematics of Love” obra em que discute o livro de Gottman que também referiu numa TED Talk.
Já agora, aproveitamos para desfazer mais um mito, de acordo com a teoria do psicólogo: nas melhores relações, os dois membros do casal não só se empenham em resolver incidentes que os tenham magoado, como o fazem rapidamente. Melhor do que isso, e aqui contrariando abertamente teorias dominantes na terapia de casais, só mesmo evitar os conflitos. Esses são os mais resilientes, afirma Gottman, porque não embarcam na “corrida nuclear na negatividade”. Mas, como no tango, são precisos dois e só resulta se ambos forem naturalmente pessoas que gostam de evitar conflitos.
"Não vás tomar à letra aquilo que te disse
quando te disse que o amor é relativo
se o relativo fosse coisa que se visse
não era amor o porque morro e o porque vivo"
Em conjunto com a mulher, Gottman, atualmente com 75 anos, fundou o Gottman Institute onde procura levar a teoria à prática, transformando “desastres em mestres”. Quem possa pensar que a curiosidade de Gottman pelo que faz o amor durar lhe garantiu sucesso à primeira no campo amoroso, desengane-se. Depois de um primeiro e breve casamento durante o mestrado, o Einstein do Amor teve um segundo casamento que durou 10 anos e acabou. Quando se mudou do Wisconsin para a Universidade de Washington, e já com dois casamentos falhados, John Gottman dedicou-se também a encontrar um novo amor. Fê-lo em modo trabalho de campo: durante seis semanas encontrou-se com 60 mulheres que encontrou através de anúncios em jornais e revistas. Julie Schwartz era a número 61. “Com as outras não me ria. Mas quando falei com Julie ao telefone, quatro horas passaram a voar e rimo-nos imenso os dois”. Casaram-se em 1987 e continuam juntos. E Gottman acrescentou mais um item à sua lista: é preciso ter humor no amor, é um ingrediente precioso sobretudo quando acontece um conflito.
(Artigo alterado às 18h16)
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