Imagem do facebook do Tokyo

Só eu, para chegar a este mundo àquela hora. Ninguém vem ao Cais antes da uma. Ao Cais que importa, ao que me interessa, porque nunca há horas de silêncio nestas ruas. Há miúdas louras com mantas largas nas esplanadas, uma é mãe e outra é filha, de tão parecidas as descubro, e a mais nova encosta a cara ao ombro da mais velha como num seguro de vida, ou num muro que nos guarda do que está lá fora.

Descubro a rota numa porta que diz Copenhaga em língua estrangeira – 'Copenhagen'. Já não cheira a gritos de marinheiros nem a perfumes de rameiras. As gargalhadas são sonoras, mas é do outro lado da rua, onde os taxistas jogam à moeda.

O segurança com identificação, cabelo à navalha e cachecol que tapa a boca, mal terá os 30 anos que me separam dos dias claros em que deixei o Cais de madrugada. Mexe um café e solta a sua jovem ignorância às minhas perguntas desnecessárias, só para meter conversa. 'Ali não era...? Não sabe se era, a era dele é outra. E eu disfarço as dúvidas que não tenho com um sorriso de quem escapou a todos os murros dos seguranças de outrora.

Toca em todo o lado a mesma música boa. Os miúdos que chegaram agora da Universidade de Erasmus ficam parvos a olhar para o 'Roterdão'. São só rapazes e o porteiro nega a entrada. Trouxessem as miúdas, assim não dá vista ao salão, é preciso equilibrar os pares de pernas. Mas lá dentro está o patrão, que perdeu parte da mão num acidente de mota. Por acidente, diz ele, foi ficando no Cais mais tempo do que o que pensava. O filho está de partida para o Luxemburgo, que isto um dia ainda encerra.

O Jamaica

Ninguém gosta de ouvir dizer que vai acabar o Europa, o Tokyo e o Jamaica. A concorrência não é para aqui chamada. Se os 'nobres' do Cais chamam a rapaziada daqui, de além mar e das novas épocas, a todos calha a sorte e a moeda de troca. Vieram jornalistas estrangeiros para ver a rua rosa, e tornaram famoso o Cais que agora sobra em tribunais de arbitragem.

Toda a gente que interessa sabe a história; e ninguém quer adormecer com ela. Nos jornais, todos os dias se fala do encerramento iminente das discotecas dos 40 anos que nos separam das portas fechadas. Foi em 1975 que Mário Dias começou a pôr música no 'Jamaica', que os esquerdistas deitavam contas às ideias novas e às que tinham tido encerradas, e que as prostitutas deixaram de mandar sozinhas naquele lugar que as obrigava a partilhar as festas com toda a marinha do mundo.

Marinheiros da NATO nas ruas do Cais do Sodré, em 1981.

Lá estão elas, com os seios à mostra e de boca escancarada, com o copo na mão e um marinheiro à ilharga, mas só já nas pinturas que sobraram nas parededs do 'Copenhagen'. Para vê-las, é preciso contornar a Rua Nova do Carvalho e escutá-las, em parte velhas, nas esquinas que não têm discotecas. Murais imorais que o mal apessoado Campos nunca viu, mas que inventou no grito que o amigo marinheiro Jim Barns lhe ensinou:

'Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yyy...

Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-oò -yyy...'

'I'm a romantic fool', cantam Martha and the Muffins, 'far away in time', na 'Echo Beach' inventada nas areias do Lago Ontario. A mesma música que a miúda de 37 anos dança atrás daquilo que parecem pianos ou gira-discos, se calhar porque a mãe lha cantava quando a mão lhe embalava o berço. 'Aqui não morre ninguém!' É assim que me diz do seu apreço e escolha pelo Cais, ao invés dos mais de três sítios onde trabalhou e ficou desempregada. DJ no feminino, e ainda agora se faz cedo.

No Tokyo sou dos primeiros, com uma petição assinada à porta – já cá faltava – contra todos os que querem apagar o cais de desembarque das gerações todas que cá se fazem depois da abrilada. E mesmo das anteriores, como a senhora que não me liga nada, porque vê logo que não me vai tocar na carteira, e eu desajeitado em conversas desta Praça da Ribeira só levo com um 'eu só cá vim ver a bola', mais uma meia-volta de anca larga, e 'adeus ó vai-tim-bora, que desses tenho eu cá resmas'...

Acompanham-me na ronda à porta do Tokyo um rapaz de barbas à lenhador e calças maneiristas, uma miúda de argola no pequenino nariz, que é a namorada, e duas outras, uma das quais com cabelo que tapa tudo à sua volta e dentro dela, de volta que vem dos estendais de roupa cara de uma loja bem no centro de Lisboa. Mais abaixo, duas venezuelanas trintinhas, que não respondem a pergunta nenhuma e se queixam de Chavéz e de Maduro. Eu 'está bem, e que tal isto aqui?' Nem uma, nem duas.

No palco ouve-se um grupo que tapa o som de fundo, um 'mix' curioso e bem montado. São os Lisbon Underground Burlesque, que só o digo porque me escreveram no bloco de notas que trago sempre comigo, que o barulho e o strobe não me deixam decorar o assunto. O patrão, que conheci em tempos, deu às de vila-diogo e só volta para a semana. Deixo o contacto, ainda quero ouvir o Fernando contar outra vez os desenganos. Como é mesmo aquela história da renda que ele queria que o senhorio lhe aumentasse, em troca de não chatear a molécula com despejos?

Os Lisbon Underground Burlesque.

E quando o Zé Pedro dos 'Xutos' aportava de madrugada, há tanto tempo que nem sequer era ainda muito conhecido? E quando a namorada de um tipo que toca mal que se farta e canta ainda pior aterrou de cabeça na sanita e só eu é que a fui buscar?

Já não há o 'Changri-La', que era uma casa que foi conquistada aos proxenetas já nos anos oitentas. Agora chama-se 'Champanharia', coisa fina a dar-se bem com os bares mais proletas da banda larga da rua. Tento perceber onde era o banco onde me sentei com a Teresa e a Lina, fazendo peito aos chungas que salivavam pelas pernas delas, e só não apanhei uma tareia porque entretanto veio a bem ditosa segurança. Ainda um dia, na minha entrevista com Deus, hei-de perguntar porque é que em tantas noites sujas nunca levei na cara.

No Jamaica, no Tokyo e no Europa vai ser parido um hotel. Onde existe o Oslo e o Liverpool – dois outros bares, que todos têm os nomes das terras de onde os marinheiros chegavam – ergue-se dentro em pouco outro, mas este sem expulsão de história popular. Hotéis é coisa que falta e é rara, na Lisboa destas eras, onde um dia destes 'olhai senhores' uns para os outros, perdidos em 'good mornings' e 'parties' de 'tea', porque já ninguém vai ter cara para mostrar a terra. No Facebook, na bela página que tem por nome 'sensivelmente idiota', quem lá manda escreveu:

'Soube que o Jamaica, o Tokyo e o Europa vão fechar para abrir um hotel. Que alegria no meu coração lisboeta. Fechem, fechem tudo! (…) Inaugurem faixas só para tuk-tuks e proíbam portugueses no 28 (…) Cuspam no Público, no Sol e no DN, forrem os quiosques a The Sun, Bild e Le Figaro. Liguem teleféricos, rodem rodas gigantes e aterrem um aeroporto no Terreiro do Paço. Não párem (...) Arrendem Lisboa inteira. Os lisboetas que se fodam!'

Noutro lado, um comentário dá-me conta de um rapaz, agora pelos seus vinte e tais, que apenas diz: 'Os meus pais contaram-me que se conheceram e começaram a namorar no Jamaica'. Não sentem um arrepio?

Esta é a noite mais pequena da vida airada de um gajo que já teve idade para isto. Longe do Sodré, que com o tempo assim foi sendo conhecido, nome de gente marítima que remonta ao século XV, esse das descobertas primeiras de onde partiram outrora, antes de mim, outros de mim. Visito os bares, as discotecas onde aprendi a segurar um bêbado e a amar uma mulher. Ah, todo o cais é uma saudade de pedra...

* (enquanto pensava nisto, reli a 'Ode Marítima', de Álvaro de Campos. Há por aí espalhadas várias frases roubadas e outras modificadas)