Os eucaliptos e pinheiros que estavam demasiado próximos da estrada estão agora reduzidos a cotos de tronco. São as faixas de contenção secundária, da responsabilidade das autoridades locais (as primárias são desbravadas pelo Estado central e também há algumas por ali).
Ainda assim, é difícil manter o terreno totalmente limpo daquelas duas espécies muito inflamáveis, que renascem rapidamente e custam a eliminar, explica Nuno Morgado, comandante dos bombeiros municipais e coordenador municipal da proteção civil no concelho de Sardoal, enquanto guia a Lusa pelo território.
“Ainda há três semanas mandei cortar isto e vejam como está”, desabafa, apontando para a erva que já desponta na berma. “Este está a ser um ano terrível”, diz.
Criado em 2018, o programa “Aldeia Segura” propõe estratégias de proteção dos aglomerados populacionais em caso de incêndios rurais e é executado no terreno por câmaras municipais, juntas de freguesia e Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil.
No dia 08 de julho, quando a Lusa visitou o concelho, o ponteiro do cartaz afixado à entrada da aldeia de Santa Clara, sede da freguesia de Alcaravela, situava o risco de incêndio no nível 4 (em 5) — “muito elevado”.
Situado num dos distritos com maior adesão ao “Aldeia Segura Pessoas Seguras”, Sardoal, com 95 quilómetros quadrados e 3.700 habitantes, gasta “perto de 10% do orçamento municipal em proteção civil”.
Nuno Morgado destaca que o programa tem no concelho uma aplicação de “quase de 100%”.
A sinalética espalhada pela freguesia de Alcaravela — com 14 aglomerados, todos no programa — não deixa dúvidas: há pontos de refúgio (exteriores), de abrigo (interiores) e de encontro (geralmente postes ou muros perto de paragens de autocarro, nos locais onde não existem condições para refúgios ou abrigos).
“Estamos no interior do país, em que muitas destas aldeias sofrem de desertificação, muitos destes lugares têm uma ocupação mais ao fim de semana do que durante a semana”, lembra Nuno Morgado.
Hugo Gaspar e Fernando Inácio são os dois voluntários que prestam serviço enquanto oficiais de segurança local da aldeia de Santa Clara.
“O oficial de segurança local tenta, no ato dos fogos, proteger as pessoas, levá-las para sítios onde elas estejam em segurança para não correrem riscos”, explica Hugo Gaspar, com 48 anos, dono de uma empresa florestal.
“Tenho que saber as pessoas que moram aqui, se há ou não pessoas acamadas ou com mobilidade reduzida, para serem retiradas para o abrigo ou, caso seja preciso, serem retiradas com meios das forças de segurança”, explica, tendo nas costas o Largo da Feira, ponto de refúgio.
“É uma pessoa que deve conhecer bem a terra e os habitantes do lugar”, descreve o autarca Miguel Borges.
“Aquilo que se pretende do oficial de segurança local é que, antecipadamente, se se perspetiva que o incêndio vai naquele caminho, direto a uma população, com muito tempo, com muita calma”, retire a população e “leve as pessoas para os locais de refúgio”, acrescenta.
Fernando Inácio, 59 anos, montador de peças automóveis, lembra-se de “incêndios terríveis, que chegaram de noite, vindos de outros concelhos, quando nem bombeiros havia”.
Recordando que “ainda há um bocadinho de distância de aldeia para aldeia, diz que é essencial a partilha de informações entre todos os oficiais de segurança local, que, no concelho, ultrapassam o número exigido pelo “Aldeia Segura” (um por aglomerado).
O autarca Miguel Borges recorreu à autonomia municipal para atribuir dois a cada local. “As pessoas têm direito a férias, a estar fora”, nota.
O concelho tem sido poupado a grandes incêndios desde que o programa foi criado e, por isso, Hugo e Fernando — dois dos 2.095 oficiais de segurança local — ainda não tiveram de entrar em ação, usando o megafone, a buzina do carro ou batendo à porta para mobilizar as pessoas para o refúgio, primeiro, e depois para o abrigo (escolas, igrejas, juntas). Isso não se deve apenas à sorte, acreditam, mas a uma aposta na prevenção.
Ainda que permaneça “a questão cultural” da posse dos terrenos, muitas vezes herdados, Miguel Borges diz que começa a haver uma maior sensibilização dos proprietários para a substituição de espécies prejudiciais.
O território — confirma o autarca, eleito pelo PSD — “mudou bastante” desde a tragédia de 17 de junho de 2017 nos concelhos de Pedrógão Grande, Castanheira de Pêra e Figueiró dos Vinhos, que matou 66 pessoas.
A cumprir o último mandato, Miguel Borges fala-nos junto a uma plantação de catos, com a qual o proprietário fez uma faixa de contenção, retirando agora “algum rendimento” da produção de figos-da-Índia.
“Tentamos sensibilizar as pessoas para que substituam por espécies agrícolas”, que evitam a perda de rendimento e, simultaneamente, protegem pessoas e bens, porque “podem retardar a evolução do incêndio”, realça, mencionando “uma grande vinha no Sardoal que impediu que o último incêndio chegasse às habitações”.
Outro caso de sucesso, que a Lusa observou no terreno, é o medronheiro, uma das plantas mais resistentes ao fogo, porque a seiva que liberta impede o crescimento de mato rasteiro.
“Se as aldeias estiverem mais protegidas, os meios, quando há uma catástrofe, um incêndio, podem ir mais para a frente de fogo e não se preocuparem tanto com as aldeias e as pessoas e os bens”, assinala Paulo Pedro, presidente da Junta de Freguesia de Alcaravela, no poder local há quase 18 anos.
Maria Inês Fernandes, 69 anos, habitante de Santa Clara, participou no último simulacro de incêndio realizado no âmbito do “Aldeia Segura”, no ano passado.
Pediram-lhe para representar a proprietária que, apegada aos seus bens, se recusa a abandonar a casa, ameaçada pelo incêndio. Maria Inês confessa que provavelmente reagiria dessa forma, mas reconhece que as autoridades conseguiram fazê-la mudar de ideias.
Agora “está tudo mais limpo”, constata, notando, porém, que os incêndios são diferentes.
“O fogo parece que anda a dançar no ar, que envolve tudo. É o tempo mais quente, está tudo muito seco, é assustador. E as nossas casas não têm as proteções, não têm placas, nada disso. Se entra alguma coisa pelas telhas, é pólvora tudo”, diz.
Com quase 92 anos, Maria Serras, habitante da aldeia, recorda os fogos passados: “A gente aqui, ao pé da porta, passava o incêndio, andava a augar tudo, tinha de se ir buscar água a um poço, quase vinha para a casa.”
Nuno Morgado mostra como o terreno atrás das casas das senhoras está agora limpo, mais preparado para conter um incêndio como o de 1995, que obrigou os habitantes a deixarem a madeira e a emigrarem para as cidades.
No último incêndio, em 2017, Noélia Rafael já não estava a trabalhar na cooperativa Artelinho, em Santa Clara, mas sabe que passou perto. “Está a melhor, nota-se as coisas mais limpas. Isto aqui era tudo cheio de eucaliptos em volta e agora não”, compara, avisada, porém, de que a ameaça é uma constante.
**Por Sofia Branco (texto) e José Sena Goulão (fotos), da agência Lusa
“No ano passado, não vesti o colete uma única vez”
Miguel Borges é presidente da Câmara Municipal de Sardoal há onze anos, mas foi só no ano passado que não vestiu o colete da proteção civil “uma única vez”.
O autarca, eleito pelo PSD e que cumpre o último mandato, reconhece que não pode dizer que o facto inédito se deveu às faixas de gestão de combustível, mas acredita que ajudaram.
“Nenhum incêndio nasce grande, todos eles nascem muito pequenos”, lembrou, em entrevista à Lusa, junto a uma plantação de catos onde outrora havia eucaliptos e pinheiros, servindo agora de faixa de contenção de incêndio.
“Se conseguirmos apagar o incêndio nos primeiros 15 minutos é sucesso, a partir daí o incêndio muitas vezes só se apaga quando ele próprio quer e, para que haja esses 15 minutos, é preciso que os terrenos estejam limpos, que existam essas faixas, para que a propagação não seja rápida”, sublinha.
No início, Miguel Borges foi muito crítico do programa “Aldeia Segura Pessoas Seguras”, criado em 2018 e ao qual já aderiram 38 dos 40 aglomerados do concelho de Sardoal (os outros dois só não o fizeram pelas suas dimensão e características).
“Continuo a ser [crítico], mas de uma forma mais moderada, até porque o trabalho está a ser feito. Na verdade, […] até 2017 não sabíamos o que queríamos fazer da nossa floresta, andávamos todos ao engano”, diz.
“Foi preciso uma tragédia” – a dos incêndios em Pedrógão Grande, que mataram 66 pessoas e feriram mais de 250, destruindo também meio milhar de casas e 50 empresas – para que todos se convencessem que “algo tinha que mudar”, reconhece.
Neste contexto, o autarca não consegue compreender como é que há câmaras municipais que ainda não aderiram ao “Aldeia Segura Pessoas Seguras”, defendendo que a adesão passe a ser “obrigatória”.
No relatório de 2023, a Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF) registou uma adesão “substancialmente abaixo” das expectativas.
O ano passado registou o menor aumento desde o início do programa: somente mais 12 aldeias aderiram, num total de 2.242, das quais menos de metade tem planos de evacuação para fogos.
Em entrevista recente à Lusa, André Fernandes, comandante nacional de emergência e proteção civil, admitiu que o programa não tem crescido à velocidade desejada, dada a meta de atingir 7.000 aglomerados em 2030.
Ao mesmo tempo, “o cadastro não está feito em todo o lado, há pessoas que têm terrenos e não sabem que são donos de terrenos”, realça Miguel Borges.
Um dos desafios é agora convencer os proprietários a entregarem a gestão dos terrenos à AGIF.
“Continuarão sempre a ser os proprietários, o que farão é entregar a gestão desse espaço a uma entidade que fará o tratamento”, explica o autarca, reconhecendo que “estas coisas não se mudam por decreto de um dia para o outro”.
Enquanto isso não acontece, no concelho de Sardoal dá-se mais um passo: está em curso a adesão ao Condomínio de Aldeia, um programa complementar, dirigido a aldeias localizadas em territórios vulneráveis de floresta, que passa por criar uma faixa de gestão de combustível de 100 metros em redor dos aglomerados populacionais (ou 50 metros em redor de habitações dispersas) e que financia a substituição do solo florestal por solo agrícola.
No concelho, 36 aldeias de três freguesias, com mais de duas mil pessoas, vão aderir ao programa, num investimento de mais de um milhão de euros. Uma parte já está a executar o programa, uma segunda já recebeu aprovação e uma terceira aguarda a aprovação da candidatura.
A operação já é visível, faltando “arrancar alguns cepos e preparar o terreno” para a próxima época de plantação, a partir de outubro, explica Nuno Morgado, comandante dos bombeiros municipais e coordenador municipal da proteção civil no concelho de Sardoal.
“Nunca podemos dizer que estamos totalmente preparados”, reconhece o comandante, sublinhando que estes programas, criados para responder aos incêndios rurais, se aplicam a “todos os perigos”, desde um sismo a fenómenos climáticos extremos.
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