A posição da organização não-governamental (ONG) é defendida num relatório hoje divulgado, intitulado “‘Os anos não esperam por eles': Aumento das desigualdades no direito das crianças à educação devido à pandemia de covid-19 (numa tradução livre em português)”.
Em 125 páginas, o relatório da Human Rights Watch (HRW) documenta como o encerramento “sem precedentes” dos estabelecimentos de ensino devido à crise pandémica provocou danos e afetou “de forma desigual” a população estudantil, numa escala nacional e mundial.
“Nem todas as crianças tiveram as oportunidades, ferramentas ou acesso necessários para continuar a aprender durante a pandemia”, afirma a ONG, frisando que para milhões de estudantes em todo o mundo o encerramento das escolas “não será uma interferência temporária na (sua) educação, mas sim um fim abrupto da mesma”.
Segundo a organização, muitas destas crianças e jovens abandonaram o ensino e começaram a trabalhar, vários casaram e até tiveram filhos, enquanto outros devido à idade deixaram de estar abrangidos pelo ensino gratuito ou obrigatório (determinado em função das leis de cada país).
Perante tal cenário, a organização internacional de direitos humanos defende que a área da educação deve estar “no centro” dos planos de recuperação pós-pandemia de todos os governos, que devem “agir rapidamente”.
A HRW entende que os governos devem dedicar “uma séria atenção e recursos” para “melhorar, mitigar e corrigir as desigualdades de longa data nos sistemas educativos”, diferenças essas que foram realçadas e exacerbadas durante a pandemia.
“Os governos devem inverter as políticas que geram essas desigualdades”, nomeadamente, segundo frisa a ONG, “o persistente subinvestimento na educação pública”.
“Com milhões de crianças privadas de educação durante a pandemia, chegou o momento de reforçar a proteção do direito à educação através da reconstrução de sistemas educativos melhores e mais equitativos e robustos”, afirma Elin Martinez, investigadora sénior da HRW para a área da educação.
Para a investigadora, a meta a alcançar não deve ser apenas regressar ao panorama verificado antes da pandemia do novo coronavírus, mas sim “corrigir as falhas nos sistemas que há muito impedem as escolas de serem abertas e acolhedoras para todas as crianças”.
Com base num trabalho de campo desenvolvido entre abril de 2020 e abril deste ano, que envolveu entrevistas a mais de 470 estudantes, pais e professores de 60 países de vários continentes (Portugal não consta da lista), a ONG observou, entre outros aspetos, que a “forte dependência de uma aprendizagem via ‘online'”, verificada em vários países após o encerramento das salas de aula, “exacerbou a distribuição desigual existente ao nível do apoio à educação”.
Entre as várias entrevistas realizadas pela HRW consta o testemunho de uma mãe em Lagos, na Nigéria, que admitiu que não tinha meios para suportar os estudos ‘online’ de dois dos seus filhos perante um pedido para a aquisição de um ‘smartphone’ feito por um professor.
“Não tenho dinheiro para alimentar a minha família e estou a lutar para conseguir pagar as contas. Como posso pagar um telemóvel e Internet?”, contou à ONG esta mãe nigeriana, que perdeu a sua fonte de rendimento igualmente por causa da pandemia.
A HRW também constatou que muitos governos não tinham políticas, recursos ou infraestruturas para implementar a aprendizagem ‘online’ de uma forma que garantisse que todas as crianças pudessem participar em condições de igualdade.
Por exemplo, no Líbano, onde o governo tem sido incapaz de reformar o setor energético e onde o fornecimento público de eletricidade é racionado, a jovem Sara, de 14 anos, fez a seguinte declaração à HRW: “A minha professora de inglês cancelou quase todas as aulas porque não tinha eletricidade”.
Já na Europa, na Alemanha, o testemunho de um professor revela igualmente uma situação de falta de meios.
“Veio o anúncio de que o Skype
seria instalado nos computadores da escola, para que os professores pudessem manter o contacto com os alunos e os pais (…). Acontece que os computadores da escola não tinham câmara, por isso o assunto ficou encerrado”, contou o docente.
No relatório, a HRW menciona ainda o caso de alguns governos que organizaram as aulas através de transmissões por rádio e televisão.
Em abril de 2020, um número sem precedentes de 1,4 mil milhões de estudantes (dos mais diferentes graus de ensino) estavam sem aulas em mais de 190 países, num esforço para tentar travar a propagação do novo coronavírus (SARS-Cov-2).
“À medida que a pandemia persistia, escolas em alguns países ou jurisdições reabriram para o ensino presencial ou abriram para alguns alunos, enquanto em outras zonas as escolas permaneceram fechadas desde então, com a aprendizagem (…) a decorrer via ‘online’ ou por outros meios remotos. Em alguns lugares, as escolas reabriram para depois serem encerradas novamente”, recorda o relatório.
Em termos globais, as estimativas apontam que 90% das crianças e jovens em idade escolar no mundo tiveram a sua educação prejudicada pela pandemia.
No relatório, a HRW salienta, porém, que os danos verificados na educação de muitas crianças em todo o mundo estão sustentados em questões precedentes à doença covid-19.
“Uma em cada cinco crianças estava fora da escola antes mesmo da covid-19 começar a propagar-se”, aponta a HRW, citando dados das Nações Unidas.
Um universo que inclui, entre outros exemplos, crianças que vivem na pobreza ou em risco de pobreza, menores que pertencem a minorias étnicas e raciais num país, raparigas que vivem em países com desigualdades de género ou crianças deslocadas, refugiadas, migrantes e requerentes de asilo.
Para a investigadora Elin Martinez, a simples reabertura das escolas “não irá desfazer os danos” na educação, “nem sequer assegurar que todas as crianças regressam à escola”.
“A educação das crianças foi confiscada num esforço para proteger a vida de todos do (novo) coronavírus. Para compensar o sacrifício das crianças, os governos devem finalmente estar à altura do desafio e tornar urgentemente a educação gratuita e disponível para todas as crianças em todo o mundo”, conclui.
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