“O vínculo do Papa com este bairro e desta gente com ele é muito forte. Nasceu aqui, cresceu aqui e aqui descobriu a vocação. Eu o recordo sempre a falar de Flores, sobretudo desta basílica porque era devoto de São José”, descreveu à Lusa o padre José Luis Carbajal, responsável pela Basílica por onde Mário Jorge Bergoglio passava antes de tornar-se líder da Igreja Católica.

Exatamente aqui, pela porta desta Basílica de São José de Flores, Jorge Bergoglio passou aos 17 anos. O jovem ia ao encontro de amigos naquela primavera quando viu luz acesa no confessionário e uma vontade irresistível de entrar. Aquela confissão teria um impacto irreversível na vida do adolescente e, décadas depois, no mundo.

“Deixem as portas das igrejas abertas. Assim, as pessoas entram. Deixem as luzes do confessionário acesas. Verão que se formará uma fila”, ensinava o próprio Bergoglio a partir de 1998, quando se tornou arcebispo de Buenos Aires, cargo que desempenhou antes de ser papa.

“O meu sentimento é de emoção, de tristeza e de agradecimento. Tristeza porque partiu um grande Papa, de ideias muito abertas, que deixou em todos nós e na própria Igreja uma marca, aproximando o catolicismo da realidade social. Venho também agradecer pelas mudanças que ele fez”, disse à Lusa Carla Vitale, de 45 anos, ao sair de uma das quatro missas dedicadas ao Papa nesta Basílica.

A estudante Joaquina Laigle, de 13 anos, saiu da escola Fernando Fader, a dois quarteirões da Basílica, para ver as expressões de carinho dos fiéis, lamentando que o Papa tenha partido justamente quando parecia estar em recuperação.

“Sinto a tristeza de termos perdido uma pessoa muito generosa, muito bondosa, sempre com empatia pelo próximo. Não pensei que pudesse acontecer isso tão rápido, logo depois da missa de Páscoa. Sinto também muita pena por ele não ter voltado à Argentina, não ter voltado para o bairro de Flores. Parecia que ele ia aguentar mais um pouquinho”, lamentou Joaquina.

O reformado Luis Eugénio Casco vem à Basílica todas as semanas. Lembra-se bem de quando Bergoglio se despediu dos sacerdotes, dizendo que ia a Roma, mas que ia voltar porque não seria escolhido Papa.

“Ele dizia: ‘fiquem tranquilos que eu voltarei’, mas não voltou mais. Ficou muito doente, coitado. O que recebemos dele foi esse exemplo de tratar bem os humildes, de uma Igreja para os pobres”, lembrou Luis Eugénio.

“Fazia-nos sentir importantes, valiosos, queridos, amados. Sempre sublinhava o detalhe de cada um, sempre uma palavra de alento, sempre prestava atenção em cada detalhe do que as pessoas contavam. Foi escolhido num dia 13 de março, mas escolheu assumir num dia 19, dia de São José”, referiu o padre Carbajal.

O padre confessou ter sabido da notícia da morte quando “rezava antes de amanhecer", costume que disse ter aprendido com o papa.

"Fiz agora a mesma coisa que fiz há 12 anos, quando ele foi eleito Papa: ao saber da notícia, ajoelhei-me e chorei”, disse, num sentimento comum entre todos os fiéis que saem da missa com olhos chorosos.

Aqui, em Flores, na pequena praça Hermínia Brumana, uma placa recorda aquele passado em que o pequeno Jorge, de apenas 09 anos, jogava futebol com os amigos depois da escola: “Por aqui corria Jorge atrás de uma bola”. A meio quarteirão da praça, na rua Membrillar 531, fica a casa onde Jorge vivia.

Em 1997, quiseram enviá-lo para uma paróquia distante, Bergoglio pediu para ficar.

“Não quero sair de Buenos Aires. Sou portenho [gentílico de Buenos Aires]. Fora de Buenos Aires, não sirvo para nada”, disse o amante do bairro de Flores.

Acabou nomeado coadjutor do então arcebispo de Buenos Aires Antonio Quarracino. No ano seguinte, com a morte do superior, Bergoglio tornou-se arcebispo e, aos 75 anos, quando já tinha a carta de renúncia pronta, viajou para Roma e voltou a Buenos Aires, de onde não queria sair.

Órfãos e sozinhos, argentinos choram

Os argentinos lamentaram, esta segunda-feira, na Catedral de Buenos Aires, a partida do seu compatriota e líder espiritual, que os deixou "órfãos" e "sozinhos", ao morrer em Roma.

Dezenas de fiéis lotaram a igreja onde Jorge Bergoglio foi arcebispo para assistir à primeira missa em sua homenagem após a notícia da sua morte.

Muitos não se conseguiram sentar e ajoelharam-se no chão durante a homilia, com lágrimas nos olhos.

"É muito difícil porque se foi uma pessoa que cuidava dos pobres e porque ele nos deixou sozinhos. Estará sempre connosco", disse à AFP Juan José Roy, um reformado de 66 anos.

"A única coisa que me dá paz de espírito é que ele conseguiu despedir-se do mundo ontem na Páscoa", acrescentou, antes que as lágrimas sufocassem as palavras.

Após receber alta a 23 de março, o Papa aparentava estar debilitado, mas conseguiu participar nas celebrações da Páscoa no domingo.

O Vaticano anunciou a sua morte esta segunda-feira às 7h35.

"Morreu o pai de todos", disse o arcebispo Jorge García Cuerva no seu sermão. "O papa dos pobres, dos marginalizados, dos excluídos por muitos, se foi".

Enquanto isso, no bairro de Flores, em Buenos Aires, onde Jorge Bergoglio nasceu e foi criado, os paroquianos prestaram homenagem ao seu vizinho mais internacional.

"Aqui é a casa da infância dele", disse Juan Falco, um vendedor de jornais de 72 anos, na Praça das Flores, em frente à igreja com o mesmo nome.

Quando Francisco foi nomeado no Vaticano, disse Falco à AFP, "não podíamos acreditar que este tipo modesto que todos conhecíamos agora era papa. Vieram buscá-lo ao fim do mundo!".

Numa estação de metro, a mesma que Bergoglio costumava apanhar aos domingos para visitar a Basílica de San José de Flores, um cartaz com a sua imagem recordava o seu trabalho em prol dos mais desfavorecidos.

Francisco nunca visitou o seu país durante o seu pontificado, algo que muitos dos seus compatriotas lamentam e que foi destacado esta segunda-feira por vários meios de comunicação argentinos.

"Diziam-me: 'ele nunca veio à Argentina'. Acho que ele esteve sempre aqui", disse o arcebispo García Cuerva numa conferência de imprensa após a missa.

Luto nacional

A Argentina declarou sete dias de luto pela morte de Francisco.

O presidente, Javier Milei, prestou homenagem àquele que foi seu opositor e alvo de críticas. "Apesar das diferenças que hoje são menores", tê-lo conhecido "na sua bondade e sabedoria foi uma verdadeira honra", escreveu na rede X.

O craque argentino Lionel Messi, assim como o clube San Lorenzo, que Jorge Bergoglio apoiava desde a infância, também prestaram homenagem ao papa. "Obrigado por tornar o mundo um lugar melhor", escreveu o jogador de futebol no Instagram.

Poucas horas após o anúncio da morte, ao amanhecer, Javier Languenari varria as folhas em frente à Catedral em Buenos Aires, ainda fechada.

"Estava por vir, ele estava muito mal de saúde. Aguentou o máximo que pôde. É uma grande tristeza", disse à AFP o gari de 53 anos, balançando a cabeça com tristeza.

Mostrou uma corrente com uma cruz, que beijou antes de continuar: "Como argentinos, estamos órfãos. Mas, como católicos, sabemos que Jesus Cristo sempre estará lá".

O jesuíta, o primeiro papa latino-americano da história, passou 38 dias hospitalizado com uma pneumonia grave e recebeu alta em 23 de março.

Na porta da Catedral de Buenos Aires, uma mulher, de 78 anos, segurava uma tigela de plástico para receber esmolas. Chorava inconsolavelmente.

"Eu vi-o receber mães de desaparecidos em prantos, vi-o sacrificar-se nas vilas (bairros pobres). Conheço-o há 30 anos", disse Graciela Vilamia, referindo-se às Mães da Praça de Maio, que lutam para descobrir o paradeiro dos desaparecidos durante a ditadura argentina (1976-83).

Como líder espiritual, Francisco colocou os excluídos no centro do seu discurso.

Guillermo Sánchez, de 47 anos, foi um dos primeiros fiéis a chegar à catedral, uma construção neoclássica com um pórtico de 12 colunas que lembra um templo grego.

"A Argentina teve a sorte de ter o primeiro papa da América Latina. Não acredito que isso vá acontecer novamente", comentou.

*Com agências