A carta de Rattle e Elder surge depois de uma reportagem sobre “O Armagedão das orquestras britânicas”, publicada por aquele jornal, na terça-feira, e de um artigo de opinião do encenador e cineasta Sam Mendes, no Financial Times, em que o realizador de “1917” defendia o investimento público na cultura, e lembrava os “lucros inesperados” obtidos por plataformas como a Netflix e a Amazon Prime, durante o confinamento.
“Existe a possibilidade real de uma paisagem devastada”, lê-se no início da mensagem assinada pelos dois regentes das duas orquestras históricas inglesas, depois de afirmarem que “existem muitos outros problemas no Reino Unido”, por causa da pandemia, mas que é preciso “coragem para falar da situação da música clássica”.
“As orquestras podem não sobreviver e, se sobreviverem, podem enfrentar obstáculos insuperáveis para permanecerem solventes”, prosseguem os dois maestros, na carta enviada ao The Guardian, depois da publicação da reportagem que deu conta do fecho de muitos projetos pelo país, e da impossibilidade de sobrevivência de estruturas sem receitas de bilheteira, com lotações limitadas a 20% ou 30% da capacidade das salas.
“O que escrevemos aplica-se, é claro, a todos os tipos de música (…). A música é essencialmente uma experiência ao vivo e exige que todos os participantes, intérpretes e ouvintes, estejam na mesma sala. O que pudemos fazer através da Internet, durante estes meses, foi muito bom, mas o núcleo de nosso trabalho é uma partilha de espaço, arte e emoção, vital e conciliadora”, prosseguem os dois maestros.
O britânico Simon Rattle, que colocou a Sinfónica da Cidade de Birmingham entre as mais importantes orquestras mundiais, nas décadas de 1980 e 1990, foi o maestro titular da Filarmónica de Berlim, ao longo de 16 anos, até 2018, e assumiu a direção da Sinfónica de Londres, no regresso a casa.
A centenária Orquestra de Hallé, baseada em Manchester, é uma das mais importantes do Reino Unido. O seu maestro, Mark Elder, dirigiu a Ópera Nacional Inglesa e foi o principal maestro convidado da Sinfónica da BBC, antes de assumir a sua direção.
Rattle e Elder saúdam as linhas extraordinárias de apoio criadas durante a pandemia, mas recordam que os profissionais independentes da cultura, que constituem a maioria do setor e compõem “quatro das orquestras de Londres”, “continuam com grandes problemas”. “Os músicos são humanos. Precisam de comer e de pagar as suas contas”.
“Temos de ‘reinventar a roda’ de muitas maneiras. Aprender a tocar afastados uns dos outros será muito mais difícil do que possa parecer”, afirmam os dois regentes, numa referência ao impacto que a distância tem no som, na dinâmica das orquestras e nos desafios que impõe à direção musical.
No passado dia 05, num artigo de opinião no Financial Times, Sam Mendes reclamou também um resgate do setor cultural, sustentando que este seria “um investimento, não um ato de caridade”, uma vez que, só os teatros, em 2018, mobilizaram 34 milhões de pessoas, no país, à semelhança da I Liga do futebol inglês.
Nesse ano, recordou o realizador de “1917” e “Beleza Americana”, “o teatro gerou 1,2 mil milhões de libras [perto de 1,35 mil milhões de euros], e todo o setor cultural contribuiu com 32,3 mil milhões [36,2 mil milhões de euros] para a economia britânica”.
Entre as propostas que faz ao Governo de Boris Johnson, Sam Mendes apresenta uma linha que sustente o emprego do setor – “o exército de artistas e trabalhadores independentes” -, um desagravamento fiscal de 20% a 50%, nos próximos três anos, e um investimento público na retoma das produções suspensas, além da constituição de consórcios públicos e privados, para apoio à criação.
Sam Mendes lembrou igualmente que plataformas, como a Netflix e a Amazon Prime, viram subir os seus lucros com o confinamento, acima de todas as previsões.
E desafiou: “Há alguém disposto a usar uma parte dos seus ganhos inesperados, graças à covid-19, para ajudar os que estão feridos de morte?”
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