A voz delicada de João Gilberto a cantar a "Garota de Ipanema" continua a cativar o mundo mais de 60 anos depois da sua gravação, no verão de 1958, numa composição que o juntou ao compositor e pianista Tom Jobim e ao poeta-diplomata Vinícius de Moraes.

E foi a cantar esta música que a maioria dos brasileiros viu João Gilberto pela última vez num vídeo de 2015, onde apareceu muito magro e de pijama a cantar "Garota de Ipanema" para a neta acompanhado do violão.

Uma imagem que, sendo enternecedora, espelha também os últimos dias de João Gilberto. O pai da Bossa Nova morreu longe da ribalta, envolvido em disputas familiares, doente e sem dinheiro.

"Meu pai morreu. Sua luta foi nobre, ele tentou manter sua dignidade ao perder a sua soberania", escreveu João Marcelo no Facebook sobre o emblemático músico, que vivia no Rio de Janeiro.

João Gilberto estava envolvido na disputa entre seus filhos mais velhos, João Marcelo e Bebel Gilberto, também músicos, com a sua última ex-mulher Claudia Faissol, uma jornalista 40 anos mais jovem do que ele e mãe da sua filha adolescente.

Bebel e João Marcelo acusaram Claudia Faissol de ter se aproveitado do músico, mas a disputa ultrapassava as questões financeiras.

Desde o final de 2017, João Gilberto ficou sob tutela da filha Bebel, que garantiu que o seu pai não podia continuar a cuidar da sua saúde nem das finanças devido à sua fragilidade física e mental.

A crise financeira começou em 2011, quando o músico, que se tinha comprometido a fazer uma tourné de concertos em comemoração a seus 80 anos, a suspendeu alegando problemas de saúde.

João Gilberto tinha recebido um milhão de reais adiantado e com o cancelamento foi obrigado a devolver a quantia.

No meio de um prolongado confronto com a sua primeira editora, sem álbuns novos desde 1989 e sem apresentações desde 2008, vendeu em 2013 60% dos direitos sobre os seus quatro primeiros discos ao banco Opportunity.

Mariana de Moraes, neta de Vinícius de Moraes e uma das melhores amigas da filha de João Gilberto, Bebel, foi uma das primeiras pessoas a saber da morte: “Eu vim porque a Bebel está fora e ela pediu ajuda. Ela pediu que eu viesse aqui. Eu vim visitar o João na verdade e ele tinha falecido assim há alguns poucos minutos. Morreu calmamente como ele merecia”, afirmou à Globo. Marina garantiu que ele não morreu sozinho. “Ele estava muito bem assistido. Não estava sozinho não. Ele não morreu triste e sozinho”, afirmou Mariana de Moraes. No momento da morte, João Gilberto estaria no apartamento em companhia da mulher, Maria do Céu, de uma cuidadora e de um secretário particular.

Nos últimos anos, o cantor vivia praticamente fechado no apartamento, recebendo apenas parentes e amigos muito próximos. Era avesso a entrevistas e aparições públicas, e segundo os relatos, ultimamente, estava ainda mais reservado.

Um excêntrico que correu o mundo 

Nascido em 10 de junho de 1931 em Juazeiro, na Bahia, João Gilberto Prado Pereira de Oliveira descobriu a música com seu primeiro violão, aos 14 anos.

Quatro anos depois, "Joãozinho" abandonou sua cidade natal para ir para Salvador, onde foi ouvido em uma rádio local, e aos 19 anos mudou-se para o Rio de Janeiro.

No Rio, tocou com uma pequena banda, Garotos da Lua, com a qual fez as primeiras gravações, e em 1957 ficou famoso como violonista no disco de Elizeth Cardoso, "Canção do Amor Demais", composto por Tom Jobim e Vinícius de Moraes.

Muitos definiram o artista como um génio de um perfeccionismo obsessivo, como expôs em suas interpretações de "Desafinado", "Corcovado" ou "Chega de Saudade", frequentemente em dueto com a sua primeira mulher Astrud Gilberto.

João Gilberto ficou igualmente famoso pelas suas excentricidades, como a sua reclusão de pijama ou a sua fobia social, que o levava a só abrir a porta de casa para receber diariamente a entrega do restaurante.

Em 1958, "Chega de saudade" marcou o ponto de partida para a carreira de João Gilberto e para a Bossa Nova. O público ficou fascinado com a voz sussurrante, com as harmonias de Tom Jobim e os versos de Vinícius de Moraes.

Em 1960 e 1961 lançou outros dois álbuns, com composições de Jobim e Moraes, junto com outros grandes nomes.

Por quase 20 anos viveu em Nova Iorque, com um interlúdio de dois anos no México. Trabalhou com Tom Jobim e músicos de jazz como o saxofonista Stan Getz.

O álbum Getz/Gilberto, com "Garota de Ipanema" cantada por Astrud Gilberto, a sua primeira mulher (que o deixou para ficar com Getz), consagrou-se como um sucesso, assim como seu show no nova-iorquino Carnegie Hall, em 1964.

Em 1967, Frank Sinatra incluiu "Girl from Ipanema" no seu repertório, e a Bossa Nova cativou um público internacional.

João Gilberto continuou a colher elogios em 1970 com seu novo álbum, "Ela é Carioca". E, embora leal a Tom Jobim, também se juntou a Caetano Veloso e Maria Bethânia, misturando Bossa Nova e samba, entre canções e diálogos.

O músico retornou ao Rio, mas continuou a frequentar os palcos mais importantes do mundo, encantando o público com canções como "Desafinado", "Garota de Ipanema", "Chega de saudade", "Rosa Morena", "Corcovado" e "Aquarela do Brasil".

Em 2001, ganhou o Prêmio Grammy de melhor artista de música do mundo por seu álbum "João: Voz e Violão".

O sucesso não acabaria ali: em agosto de 2008, as entradas para os concertos pelo 50º aniversário da Bossa Nova esgotaram em menos de uma hora. Em 2015, apresentou-se nos festivais de Viena, Marcillac e Marselha.

Entre as muitas canções antológicas destacam-se "Desafinado", "Garota de Ipanema", "Chega de saudade", "Rosa Morena", "Corcovado" e "Aquarela do Brasil". E a saudade, sempre.