Nas suas considerações, o espiritual é completamente eliminado, e o emocional também. Resume tudo o que nós somos a questões biológicas, relacionadas com a evolução da espécie.

De certa forma. É um ângulo diferente. Não é que não existam outros aspetos, obviamente que existem; é uma opção de abordagem.

Mas acredita no espiritual, na existência de um Deus, ou não?

Não, isso não. Acho que isso faz parte do fantástico, do infantil, de “faz de conta” que temos na cabeça. Sempre tivemos.

Então porque temos essa crença? Porque é que a religião existe?

Há varias possibilidades de encontrar uma explicação. Para já, há uma necessidade de acreditar. É uma forma de reduzir a incerteza.

É preciso acreditar em alguma coisa, porque reduz a incerteza. Há uma biologia da crença, uma necessidade.

Acreditar na maneira como fomos criados, como somos?

É preciso acreditar em alguma coisa, porque reduz a incerteza. Há uma biologia da crença, uma necessidade. Podemos acreditar sem provas e com provas. É uma característica nossa. Mas isso também acontece por uma característica biológica. Como vivemos num ambiente de informação incompleta ou imperfeita - nunca temos a informação toda - se tivéssemos de tomar uma decisão com a informação toda, nunca conseguiríamos tomá-la. No limite, isso é impossível, porque há sempre mais informação. O salto de fé é necessário para decidir apenas com a informação disponível.

Isso sempre foi assim?

Sempre.

Outro aspeto interessante que escreve é que há duas razões para fazer as coisas, uma boa e uma verdadeira. A boa é aquela que usamos para nos justificarmos?

Sim, é a sinalização das virtudes.

E a verdadeira é biológica?

A verdadeira é aquela que a maior parte das pessoas nem sequer tem consciência. Há um motor biológico, e pensar  que ele não existe é o mesmo que pensar que o automóvel foi concebido para estar parado. Não faz sentido. Há é medo de levar isso em consideração.

Nós temos muitos medos, não é?

Sem dúvida, e um dos medos das ciências sociais foi não perceber a biologia, não a conseguir encapsular, não se reduzindo a ela. As ciências sociais só se dedicam a si próprias, não têm um paradigma que as ligue e basicamente ignoram a nossa biologia, que é a raiz.

Eu diria, talvez não usando a palavra certa, que a biologia é muito pouco sentimental.

A biologia é o que é.

Nós, como espécie, temos caracteríscas únicas, como o pensamento abstrato… Estou a pensar no  livro de Yuval Harari, em que ele diz que temos uma capacidade de acreditar em realidades que não existem na Natureza, são apenas convenções, o que nos dá uma superioridade em relação às outras espécies. E também temos a linguagem, para exprimir esse pensamento abstrato, e depois a faculdade de acreditarmos coletivamente em coisas imateriais - o conceito de nação, por exemplo. Ficções, ideologias, instituições. 

Como quase todos os conceitos coletivos. Mas funcionam porque são uma espécie de crenças que se concretizam nas consequências. É o equivalente da teoria da tensão de que fala Merton, um sociológo americano. Tem a ver com as profecias que se auto-confirmam; quando se considera que uma situação é real, ela torna-se real nas consequências. Quer dizer, age-se, em conformidade e com uma realidade que acaba por se tornar a realidade. Por exemplo, se se parte do princípio que há um Deus, rezamos para que uma coisa se realize e essa realização torna-se a comprovação de que Deus existe. Obedece a uma necessidade profunda que nós temos.

A espécie humana tem um duplo problema. Por um lado, é a consciência de que estamos sozinhos e por outro a consciência da morte. São neuroses colectivas: a solidão e a morte.

Por falar em religião, há uma teoria segundo a qual os milagres realizam-se pela vontade oculta da pessoa. É a cabeça do doente que opera a cura.

Pois, são os casos em que não há explicação. O facto de não haver explicação científica não quer dizer que não seja verdade. As pessoas podem pensar o que quiserem e também achar idiota o que os outros pensam.

A espécie humana tem um problema de fundo, aliás, um duplo problema. Por um lado, é a consciência de que estamos sozinhos e por outro a consciência da morte. São neuroses colectivas: a solidão e a morte.

Eu penso que as duas coisas nos atanazam são dois conceitos dos quais temos a noção mas não os alcançamos: o eterno e o infinito.

Nem conseguimos conceber o que são, não verdade.

Sim, mas temos uma ideia. É o tal pensamento abstrato do intangível. E o facto de não podemos alcançar nenhum desses conceitos leva-nos a várias tentativas de compensação. Por exemplo, o não sermos eternos é uma das razões que nos leva a querer ter filhos, fazer obras que perdurem.

Acho que aí há mais biologia.

O fundo genético de todas as espécies no planeta é reproduzir-se. Há um programa-base que faz com que queiramos reproduzir os nossos genes. As pessoas dizem que querem constituir família, mas na realidade o que querem é servir os genes que lhes dizem para se reproduzir.

Então, qual é a biologia?

A espécie humana não foge à regra nem à lógica das outras espécies. Há um mecanismo básico em todas, a finalidade última: permanecer. O fundo genético de todas as espécies no planeta é reproduzir-se. Há um programa-base que faz com que queiramos reproduzir os nossos genes. As pessoas dizem que querem constituir família, uma justificação social, digamos assim, mas na realidade o que querem é servir os genes que lhes dizem para se reproduzir.

Isso faz-me pensar daquelas mosquinhas que nascem, reproduzem-se e morrem. Não fazem mais nada na sua curtíssima vida.

A questão da raiz natural do nosso comportamento levanta questões interessantes. Como os “demónios” da nossa natureza, os maus anjos. Podemos ver isto no campo da democracia e da psicologia política. Há vários estudos sobre isso, porque é que somos mais de esquerda ou mais de direita. Por exemplo, a democracia não é natural. Nem é o nosso ponto de partida. O nosso instinto, como primatas, é formar hierarquias. E qual é a base primeira das hierarquias? É a força e a dominância. A partir disto criamos hierarquias de prestígio, é a evolução cultural. O autoritarismo é muito mais natural para nós - não quer dizer que é bom, isso é a falácia naturalista de que está mais próximo do que somos. A democracia é uma conquista, mas é sempre periclitante e rapidamente se volta ao estado natural.

E uma democracia é sempre relativa?

Nós temos parâmetros sociológicos para determinar o grau de democratização. Em ciência política chama-se poliarquia, e há várias poliarquias, vários graus de democracia. O sexo é binário, mas isto não é. Temos a democracia plena - há cinco grandes quesitos para a definir: liberdade de imprensa, liberdades e garantias, eleições justas, justiça equitativa, etc. 

Numa escala de zero a dez, há várias possibilidades: autoritarismo, regime híbrido, democracia falhada e democracia plena. Sabe quantas pessoas no mundo vivem em democracias plenas?

O autoritarismo é muito mais natural para nós. A democracia é uma conquista

Segundo o The Economist, muito poucas.

Menos de 5%. E um terço vive em sob um regime autoritário. Portanto, em geral, aderimos muito mais ao autoritarismo, porque está muito mais próximo de nós, em termos da nossa evolução. Se condensarmos 300.00 anos em 24 horas, as democracias aparecem no último minuto.

Refere-se às primeiras formas de democracia, a inglesa e a americana?

Sim, estou a considerar duzentos anos. Foi preciso a nossa capacidade cultural sobrepor-se aos tais “maus anjos”.

E a democracia está sempre ameaçada.

Sim, não se pode dar como garantida. Ainda acha que a biologia não tem nada a ver com isto?

Não, acho que tem.

Há outra afirmação interessante no livro: as notícias são sobretudo pessimistas porque as optimistas não interessam às pessoas.

Isso é porque nós não estamos programados para aquilo que é bom, mas sim para o que é ameaçador. É um reflexo de sobrevivência.

Há três coisas que chamam a atenção do ser humano: sexo, perigo e novidade.

Mesmo que seja uma pequena percentagem?

Sim. E a maior parte das vezes é.

Há três coisas que chamam a atenção do ser humano: sexo, perigo e novidade. São os chamados túneis de atenção. A novidade chama a atenção porque também pode trazer perigo. Quando estamos acordados estamos sempre em modo de vigilância. E é mais fácil resistir a uma mudança do que aderir imediatamente a ela. Passar do estado de alguma certeza para o de alguma incerteza.

Isso quer dizer que as pessoas são essencialmente conservadoras?

São mais conservadoras, o que não quer dizer que o só exclusivamente. Das duas uma: ou mudam o ambiente ou mudam de ambiente. Não há alternativa.

Mas há os revolucionários, os disruptores.

Pois há. A História está cheia deles. Mas há coisas curiosas: por exemplo, só na segunda metade do século passado, aliás, a partir da década de 1970, é que alguém se lembrou de pôr rodas nas malas. E foi um piloto, que estava cansado de carregar a sua mala. Repare: quantos anos é que andamos a carregar bagagem sem ninguém se lembrar que bastava por umas rodinhas. O trólei que usamos agora já é da década de 1980. Isto mostra que a nossa espécie, do ponto de vista coletivo, não é muito inventiva. Mas, individualmente, de vez em quando aparece alguém que é disruptivo, por necessidade.

É a analogia do pavão, que uso em muitas situações a propósito de liderança. Nós e os pavões temos muito em comum.

Nos pavões, os machos são mais vistosos do que as fêmeas.

A cauda foi desenvolvida porque é a base de escolha das fêmeas. Quando maior e mais colorida, melhor é o parceiro genético. O macho não é assim para seduzir a fêmea; é para ser escolhido.

Mas na nossa espécie não é assim, é ao contrário.

Não. Se formos ver, o que não faltam são homens pavões .

Mas, em geral, assumimos que as mulheres são mais vistosas do que os homens.

Não é para serem escolhidas. É para criar a ideia de competição, para depois serem elas a escolher. É uma situação um bocadinho mais complexa.

O homem acha que a conquistou mas, na verdade, é a mulher que aceitou ser conquistada.

Na nossa espécie essa particularidade é muito interessante, porque isso ajuda a explicar a distribuição de inteligência entre homens e mulheres. Em média, é igual, mas a distribuição é diferente. As mulheres geralmente ficam na média; há poucas abaixo e poucas acima. Nos homens, há mais muito inteligentes e mais muito burros. Isso advém da competição, do interesse sexual. Os homens competem entre si para ser escolhidos. Tudo o que acontece, em geral, resulta dessa dinâmica.

É mesmo tudo sobre sexo. O poder é apenas uma forma de obter mais sexo

Então é verdade aquela afirmação de que na vida tudo é sobre sexo, menos o sexo, que é sobre poder?

Não, não concordo com essa afirmação. É mesmo tudo sexo. O poder é apenas uma forma de obter mais sexo. Por isso é que os homens querem tanto o poder.

Mas nós temos homens obcecados com o poder e que, aparentemente, têm pouco interesse em sexo. Os mais conhecidos são Hitler e Estaline, mas não é preciso procurar muito para encontrar outros.

Isso é o que nós sabemos. Mas pode ser uma substituição para alguns, o poder é afrodisíaco. Mas as exceções só confirmam a regra. Na generalidade dos casos, em termos de espécie, a luta, a ânsia por estatuto e por poder é muito mais acentuada entre os homens do que nas mulheres.

Alías, a propósito disso, vi uma critica a condenar os fatalistas da Inteligência Artifical; qualquer coisa que evolua para ser mais inteligente do que nós, vai querer conquistar-nos e dominar-nos. Mas não é inteiramente verdade que uma inteligência superior queira necessariamente dominar-nos. Já vivemos com criaturas altamente inteligentes (entre nós) que não têm nenhum desejo de conquista ou de domínio. São as mulheres.

Mas voltado à questão do poder; porque é uma obsessão? Ter o estatuto e tudo o que está associado, e não o poder em si mesmo? Mais uma vez voltamos à lógica reprodutiva. O poder permite mais estatuto, mais estatuto mais rendimento, mais rendimento mais sexo. Vai dar tudo sempre ao mesmo.

Agora, quanto à situação de haver cada vez mais casais que não querem ter filhos, interrompendo uma linhagem de milhares de anos; é preciso mais tempo para ver se essa tendência se mantém, mas é evidente que há uma preocupação maior com a qualidade do que com a quantidade. Não é preciso ter tantos filhos (uma vez que a mortalidade infantil é menor).

Há várias hipóteses sobre isto. A luta pelo estatuto e pela diferenciação social podem ter impacto na fertilidade.

Já vivemos com criaturas altamente inteligentes (entre nós) que não têm nenhum desejo de conquista ou de domínio. São as mulheres.

É sabido que as sociedades mais evoluídas têm uma taxa de natalidade mais baixa. 

A ideia com que se fica, olhando para os números, é que a redução da natalidade aumenta a riqueza.

Há uma outra situação que aparece no seu livro que é a relação entre sentido de humor e inteligência.

O facto é que conheço pessoas inteligentes que não têm sentido de humor, mas para ter sentido de humor é preciso ser inteligente.

Realmente é assim. Agora, o sentido de humor é mais importante para os homens do que para as mulheres. Basta ver os standup comedians (humoristas a solo); em dez, nove são homens. Também é o rácio da criminalidade e de muitas outras coisa, 90/10. O homem gosta de ser engraçado, mas não gosta muito de mulheres engraçadas. O comum é elas rirem-se com o humor deles.

Devo ser uma exceção, porque gosto de mulheres com sentido de humor.

Como já disse, as exceções confirmam a regra. De facto é um proxy (indicador) de inteligência, logo de recursos. Mais uma vez, na montra da escolha, podem dar-se vários sinais do valor para o acasalamento, e o humor é um deles. É outra cauda do pavão. Olha só que inteligente eu sou, com este humor todo!

Aliás, a confiança e a inteligência são as duas primeiras características da seleção sexual. Seguimos quem confiamos e quem consideramos inteligente.

A confiança e a inteligência são as duas primeiras características da seleção sexual. Seguimos quem confiamos e quem consideramos inteligente

Apesar de as pessoas seguirem líderes que são pouco inteligentes, não é?

Essas pessoas também não são muito inteligentes!

Uma coisa que o livro diz é que a adaptação (do Homem) ao ambiente está sempre atrasada. O exemplo que lá está é as gorduras e os açúcares. Gostamos de alimentos gordos e salgados por causa da época em que eram bens escassos.

Porque esses bens tinham vantagens adaptativas e reprodutivas. É estranho o cérebro não fazer um upgrade (atualização) em relação ao ambiente, o que daria efeitos positivos, como evitar doenças provocadas pelo excesso do consumo de gordura e sal. Os mecanismos evolutivos não se adaptaram as novas condições, em que esses consumos já não são escassos, antes pelo contrário, são excessivos.

Porque talvez seja muito recente, a situação em que as gorduras e o sal estão disponíveis à vontade.

Aí é que está. Quais são as hipóteses? Uma, é uma situação muito recente do ponto de vista evolutivo - se os últimos 200 anos correspondem a um minuto, a abundância é ainda mais recente.

Estou a lembrar-me que, por exemplo, no até ao século XVII, XVIII, as mulheres gordas eram consideradas belas porque significava que eram mais saudáveis. Basta ver as pinturas de Rubens.

Então, ou é porque a abundância é recente, ou porque o cérebro é uma máquina forreta e quer poupar energia. O cérebro é apenas 2 a 3% da massa corporal mas gasta 20 a 25% da nossa energia, portanto faz uma gestão muito cuidadosa, se calhar desactualizada. Há abundância agora, depois de milhares de anos de carência, e por isso estamos a pagar o preço deste desfazamento. O mundo andou mais depressa e os mecanismos evolutivos não se adaptaram.

Acontece o mesmo na liderança. Continuamos a escolher um grande homem: alto, de boa saúde, boa aparência e, de preferência, rico.

Há uma coisa que o professor diz, “as coisas estão melhores mas continuamos pessimistas”. Lembrei-me de uma entrevista que a Laurie Enderson fez a um grande filósofo a quem perguntou se as coisas estavam melhores ou piores. Ele respondeu: “As coisas estão melhores, mas as pessoas não sabem”.

Isso é verdade. As pessoas não dão valor ao que têm. Mas esse pessimismo também pode ser auxiliador do progresso. Há uma espécie de deformação mental em relação à maior parte das coisas que acontecem. Todos os anos fazemos estatísticas sobre o ambiente global da vida e tem tido melhorias incríveis, mas as pessoas estão desfazadas em relação ao que acontece em indicadores como homicídios, guerras, doenças. Tivemos uma década fantástica - foi a melhor década da espécie.

Tivemos uma década fantástica - foi a melhor década da espécie.

Em termos de qualidade de vida?

Sim, "n" situações. Por exemplo, a taxa de mortalidade infantil tem caído a pique.

Mas é muito desigual. 

A taxa é global. Há sempre desigualdades.

Mas quando globalizamos um índice, estamos a desvalorizar as assimetrias.

Há sempre perspetivas diferentes. Pode ver-se sempre de uma forma pessimista. O que é mais importante? Deve considerar -se a taxa de mortalidade infantil na espécie humana como um todo. São milhões e milhões de crianças salvas. No sítio A ou B não é assim? Uma coisa não elimina a outra. E há outros indicadores que se alteram. Até há pouco, nunca tínhamos tido tanto tempo de paz.

Bem, nunca houve nenhum dia - já nem digo ano - em que não houvesse uma guerra num ponto qualquer do globo. 

Mas isso foi sempre assim. Faz parte da luta pelos recursos e da competição que sempre existiu. Mas há menos guerras e menos vítimas. Agora, é uma atitude tipicamente masculina. Quando é que, alguma vez, uma aldeia foi invadida por mulheres, matou as outras mulheres e violou os homens? Conhece algum caso? É a natureza da guerra.

Então, como é que podemos encerrar isto de uma maneira optimista?

Bem, eu acho que apesar de haver apenas 8% das pessoas a viver em democracias plenas, comparando com o que acontecia há cinco minutos atrás, na nosso processo evolutivo, é um grande progresso!