“O cenário atual na zona do Pinhal Interior é de uma monocultura instalada, em que algumas espécies de crescimento rápido, como o eucalipto, estão naturalizadas e, se nada for feito para contrariar essa tendência, vão ocupar a mancha florestal”, lê-se no relatório da comissão eventual de inquérito parlamentar à atuação do Estado na atribuição de apoios na sequência dos incêndios de 2017 na zona do Pinhal Interior.

Da responsabilidade do deputado relator Jorge Paulo Oliveira (PSD), o projeto de relatório foi hoje apresentado na respetiva comissão, com um conjunto de 83 conclusões e 36 recomendações sobre agricultura, atividades económicas, floresta e habitação.

O incêndio que deflagrou em 17 de junho de 2017 em Escalos Fundeiros, no concelho de Pedrógão Grande, e que alastrou depois a municípios vizinhos, nos distritos de Leiria, Coimbra e Castelo Branco, provocou 66 mortos e 253 feridos, sete deles com gravidade, e destruiu cerca de 500 casas, 261 das quais eram habitações permanentes, e 50 empresas.

Relativamente aos apoios à floresta, há 14 conclusões, em que se inclui a perceção da maioria dos depoentes não governantes, ouvidos na comissão, de que “pouco ou nada foi feito em termos de reordenamento e prevenção de incêndios”, existindo receio de que uma nova tragédia volte a acontecer, “se nada for feito a curto prazo”.

“Os apoios do Estado para a reflorestação, apesar de existentes, tiveram muito baixas execuções, fruto da desmotivação dos proprietários de reinvestir em territórios que acreditam que voltarão a arder”, segundo o relatório, indicando que, entre os depoentes não governantes, não existe a perceção de onde foram investidos os milhões anunciados pelo Governo para medidas para o setor florestal.

Em oposição, a perceção dos representantes do Governo e entidades diretamente tuteladas, ouvidos na comissão, é que “houve um amplo apoio ao setor das florestas e foram aplicadas medidas efetivas no terreno”.

Com 13 recomendações sobre a floresta, das quais algumas subscrevem as propostas da Comissão Técnica Independente criada para analisar os grandes fogos rurais de 2017, realça a ideia de que o sistema de defesa da floresta contra incêndios deve ter dois eixos de atuação, designadamente a defesa de pessoas e bens e a proteção da floresta.

“Os intervenientes na prevenção e gestão florestais têm de fazer parte dos processos de tomada de decisão operacional no combate aos incêndios”, propõe a comissão eventual de inquérito parlamentar, defendendo que deve ser realizada uma avaliação global externa ao Sistema Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios (SNDFCI), que integre a análise da eficiência dos investimentos realizados.

Um maior esforço de qualificação dos recursos humanos do SNDFCI, a integração no sistema educativo nacional de opções de formação qualificada nos domínios da proteção civil e da defesa da floresta contra incêndios, a diversificação da floresta e a utilização de espécies que conduzam a formações menos combustíveis são outras das recomendações no âmbito da floresta.

“Concretamente no Pinhal Interior, recomenda-se o recurso a modelos de silvicultura com sobreiro e com medronheiro que se têm demonstrado apropriados para fazer parte integrante de uma solução que passe pela diversificação da floresta”, aponta o relatório da comissão, subscrevendo a criação de um programa que compense a perda de rendimento dos proprietários e gestores florestais devido à opção por florestas de carvalhos, castanheiros e outras folhosas.

Entre as recomendações destacam-se ainda o reforço do papel das Forças Armadas no sistema de proteção civil e a aposta na estratégia de sensibilização e autoproteção das populações, com o envolvimento ativo das autarquias, para a adoção de boas práticas e o desvio de comportamentos de risco no âmbito dos incêndios rurais.

Comissão defende criação de fundo permanente para ajuda humanitária

"Deve ser criado um fundo financeiro de caráter permanente, para onde devem ser centralizados todos os donativos para ajuda humanitária", lê-se no relatório da comissão, que recomenda que o fundo seja criado no âmbito de um novo quadro legislativo global "que regule a ajuda humanitária e solidária", que tenha previstos princípios éticos, regras sobre a definição de critérios de ajuda, procedimentos de coordenação e controlo e normas de transparência, prestação de contas e controlo financeiro.

Segundo as recomendações do relatório na área da habitação, o fundo deveria ser reforçado com financiamento estatal.

No caso de ainda sobrar dinheiro do Fundo Revita após a conclusão da construção das casas afetadas pelo incêndio de Pedrógão Grande, em junho de 2017, esse valor por aplicar deveria ser depositado nesse fundo permanente a ser criado, "aguardando oportunidade adequada de utilização".

Terminado o processo de reconstrução das casas de primeira habitação, a comissão considera que deveria ser feito um levantamento do número correto das casas de segunda habitação afetadas.

"O Estado deve suportar o custo da reconstrução total ou parcial das segundas habitações afetadas pelos incêndios de junho de 2017" e o novo fundo permanente a ser criado poderia ser "utilizado excecionalmente" para essa reabilitação, acrescenta a comissão.

Nas conclusões, o relatório sublinha que o processo de apoio às segundas habitações (em que os municípios poderiam contrair um empréstimo para ajudar numa parte das obras) "tornou o processo de reconstrução injusto, tratando de forma desigual pessoas que foram, da mesma forma, afetadas pelos incêndios".

Para a comissão, as segundas habitações desempenham "um papel fundamental como motor de desenvolvimento socioeconómico da região", considerando que os apoios "não foram comunicados de forma clara aos cidadãos, tendo alimentado confusões e expectativas em relação às segundas habitações".

Relativamente às suspeitas de fraude na reconstrução de habitações, a comissão sublinha que o não envolvimento da sociedade civil no processo "poderá ter levado a falhas na identificação das reais necessidades".

Além disso, após os primeiros levantamentos, feitos por equipas multidisciplinares que "favoreciam a independência na análise", os diagnósticos passaram a depender "quase em exclusivo de pareceres dos municípios", ficando "feridos na sua independência".

"A execução de qualquer plano de ação em contexto de gestão de crise tem a beneficiar imensamente com a avaliação e acompanhamento permanente de técnicos ou entidades independentes", segundo a comissão, registando que, no caso de Pedrógão Grande, o processo "foi sobretudo gerido ao nível do poder local".

Atuação do Estado nos apoios às empresas "considerada eficiente”

“Algumas das empresas que receberam apoios comunitários conseguiram reerguer-se de forma mais robusta, melhorar as suas infraestruturas e criar mais postos de trabalho”, lê-se também no relatório.

Sobre os apoios à atividade económica e às infraestruturas municipais, a comissão avança com 15 conclusões, destacando-se a ideia de que “a atuação do Estado no campo das medidas de emergência e recuperação foi considerada eficiente”.

O relatório da comissão indica que, através do Programa Centro 2020, foram aprovados 25 projetos nos concelhos afetados pelos fogos de 2017, com a disponibilização de 12 milhões de euros, ainda que o financiamento elegível total candidato foi de 22 milhões de euros.

“O ramo das indústrias transformadoras foi o mais afetado pelos incêndios e foi também o maior recetor dos fundos aprovados, tendo concentrado 72%”, lê-se no relatório.

Segundo a comissão eventual de inquérito parlamentar à atuação do Estado, após as audições realizadas, a perceção generalizada é a de que “as empresas receberam os apoios necessários para retomar a sua atividade com alguma celeridade, não tendo sido colocados em causa os postos de trabalho existentes”.

Quanto aos apoios à recuperação e reposição das infraestruturas e equipamentos municipais dos sete concelhos afetados pelos incêndios e considerados no levantamento da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Centro, designadamente Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos, Góis, Pampilhosa da Serra, Pedrógão Grande, Penela e Sertã, “foram quase totalmente cobertos” em relação ao valor das candidaturas, sem indicação de que os municípios tenham tido a necessidade de financiar despesas com orçamento próprio.

O relatório da comissão refere que o investimento total elegível foi financiado em 85% pelo Programa Centro 2020 e em 15% pelo Fundo de Emergência Municipal (FEM), indicando que “o valor aprovado foi de 15,4 milhões de euros”, montante inferior ao valor estimado pelos municípios para recuperação das infraestruturas municipais, na ordem dos 17,2 milhões de euros.

Nas medidas de investimento e incentivo à economia, “apesar da elevada taxa de execução (90%), reclamada pelo Governo do Plano de Revitalização do Pinhal Interior, não existe, por parte dos autarcas ouvidos, a perceção dos impactos de investimento realizado pelo Estado no desenvolvimento económico da região”.

Com nove recomendações sobre atividades económicas, a comissão defende que se deve “renovar incentivos às regiões afetadas pelos incêndios”, nomeadamente através da criação de incentivos financeiros e fiscais, e fomentar o desenvolvimento de entidades nacionais de financiamento, não bancário, do investimento empresarial, e atrair os fundos de investimento e capitais de risco internacionais.

Outras das propostas da comissão são a recuperação do programa Jovens Técnicos para a Indústria, a introdução de uma discriminação positiva para os territórios de baixa densidade na promoção do emprego dos jovens e desempregados de longa duração, e o desenvolvimento da zona do Pinhal Interior, “criando circuitos e atividades turísticas mais diversificadas, no âmbito da natureza, gastronomia, artesanato, história e produtos locais”.

Agricultores foram apoiados “de forma desigual” nos concelhos afetados

Os agricultores lesados residentes nos concelhos de Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos e Pedrógão Grande, distrito de Leiria, tiveram apoios do Fundo Revita, mas a atribuição dessas ajudas “constitui um incumprimento do regulamento interno”, aponta o relatório.

Relativamente às recomendações, a comissão propõe que a agricultura passe a ser “um auxiliar precioso” para o combate ao abandono dos territórios de baixa densidade, a desburocratização dos processos de candidatura aos programas de apoio nacionais, a criação de um enquadramento legal extraordinário a aplicar em casos de calamidade e emergência, e a criação de um gabinete de crise.

Sobre a atribuição de parte dos donativos do Revita para apoiar os agricultores, a decisão foi tomada ao abrigo do regulamento de funcionamento e gestão do fundo, designadamente a alínea que prevê “outras necessidades de apoio devidamente identificadas, desde que não cobertas por medidas de política pública, em vigor ou de caráter extraordinário, dirigidas às áreas e populações afetadas pelos incêndios”.

No entanto, acontece que já estava em vigor uma medida de política pública de apoio aos agricultores, através do despacho n.º 6420-A/2017, que adapta o regime de aplicação da operação 6.2.2 para o Restabelecimento do Potencial Produtivo do Programa de Desenvolvimento Rural do Continente (PDR 2020) para uma subvenção não reembolsável de 100% até 5.000 euros.

O relatório da comissão eventual de inquérito parlamentar refere que a decisão do Conselho de Gestão do Fundo Revita de canalizar parte dos donativos para o apoio aos agricultores foi tomada por “desconhecimento do despacho n.º 6420-A/2017”.

Através do Revita, foram apoiados 1.131 agricultores, num montante total de 3,4 milhões de euros (3.440.358,26 euros) de subsídios concedidos, “o que correspondeu a 58% da dotação total do fundo”.

Considerando que o primeiro-ministro, António Costa, afirmou que o apoio aos agricultores pelo Revita foi uma decisão do Governo, e que o Estado disponibilizou 2,5 milhões de euros para cobrir esse investimento, “fica assim por ressarcir o fundo em 900 mil euros que foram gastos para além do valor investido pelo Estado”, conclui a comissão, lembrando que a fiscalização destas ajudas foi considerada “pouco transparente e sem critérios de avaliação” na auditoria do Tribunal de Contas.

“O facto de 58% do valor do Fundo Revita ter sido atribuído para o apoio aos agricultores impediu que fosse considerada a possibilidade de canalizar esse valor para outras necessidades habitacionais”, lê-se no relatório.

Entre as 23 conclusões sobre os apoios à agricultura, verificou-se que os residentes nos concelhos de Ansião, Alvaiázere, Arganil, Góis, Penela, Pampilhosa da Serra, Oleiros e Sertã não tiveram acesso às ajudas do Fundo Revita, tendo disponível o apoio decorrente da operação 6.2.2. para o Restabelecimento do Potencial Produtivo, com as candidaturas até 5.000 euros a receberem 100% de financiamento a fundo perdido, mas a medida “não era do conhecimento geral”.

Quanto aos apoios superiores a 5.000 euros, a perceção de “burocratização e complexidade excessivas” do processo de candidatura ao PDR 2020 obstaculizou a candidatura de grande parte dos agricultores lesados, expôs a comissão.

Outra das conclusões é que nos levantamentos de danos e prejuízos agrícolas “existe um diferencial 2.267.967 de euros”, com a Direção Regional de Agricultura e Pescas (DRAP) do Centro a estimar um valor de 19.300.000 de euros e a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Centro a apontar 21.567.967 de euros.

Tal como o Tribunal de Contas, a comissão “não encontrou uma justificação cabal” para a origem deste diferencial nos levantamentos.

Quanto à expetativa do Governo de criar ou desenvolver 33 parques de madeira queimada, em resultado dos incêndios de 2017, “apenas 14 entraram em funcionamento para o fim destinado, o que corresponde a uma execução de 42%”, revela a comissão, acrescentando que, segundo o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), da proposta de armazenamento de 1,66 milhões de toneladas de madeira, os parques de madeira criados armazenaram, até 31 de julho de 2020, 158 mil toneladas, representando “uma taxa de execução de 15%”.