Esta é uma opinião partilhada, em declarações à agência Lusa, por habitantes dos três municípios mais atingidos pelo fogo de 17 de junho de 2017, Castanheira de Pera, Pedrógão Grande e Figueiró dos Vinhos, alguns dos quais sofreram prejuízos materiais avultados e tiveram de enfrentar as chamas para sobreviver.

“Perdeu-se uma oportunidade fabulosa de dar a volta a isto tudo. Caiu-se já na rotina e temo que já não vá acontecer”, disse Jorge David, residente na Castanheira de Pera.

Na tarde da tragédia, este funcionário público reformado, de 64 anos, estava no Torgal, a conviver com a família.

O lugar foi evacuado e a sua mãe, na altura com 82 anos, teve de sair de casa com ajuda dos meios de socorro.

“O almoço ficou em cima da mesa até ao outro dia”, recordou.

Jorge David alertou que “as feridas abertas vão-se sarando”, as do corpo e as da alma, mas os moradores temem que outros fogos venham a ocorrer, devido às alterações climáticas e tendo em conta “ainda há áreas que não arderam”.

Também ao nível do emprego, “não aconteceu uma mudança”, afirmou.

No mesmo concelho, o acupuntor Pedro Kalidás, de 49 anos, reconhece que a situação “melhorou um pouco” ao nível da gestão de combustível nas faixas da responsabilidade das entidades públicas.

Todavia, nos terrenos privados, verifica-se “um desmazelo muito grande” e em geral as árvores queimadas ainda não foram removidas.

“Não apareceram investidores e a descentralização de serviços públicos para o interior não se vê”, disse, para lamentar que “o marasmo continue” quanto à criação de empregos nesta zona do distrito de Leiria.

A professora Deolinda Campos nasceu em Figueiró dos Vinhos, onde vive, mas tem “uma perceção maior do que se passa em Pedrógão Grande”, onde trabalha.

Neste município, “as feridas ainda estão bastante abertas” e a elas juntam-se polémicas e processos judiciais relacionados com o incêndio, donativos e reconstrução de casas.

“Em Figueiró, não se nota que tenha havido essa controvérsia”, mas em Pedrógão Grande “há um sentimento de vergonha e as pessoas evitam falar do assunto”, acrescentou.

Deolinda Campos, de 57 anos, salientou que “em termos emotivos” o incêndio “deixou marcas para a vida toda” nas populações afetadas.

Quanto à instalação de novas empresas, “está tudo muito parado”, admitiu.

Na sua opinião, os dois concelhos “têm investido na limpeza e tentado fazer o melhor” na reflorestação.

Com ligações afetivas a Escalos do Meio, Carlos Cristo, de 69 anos, não residia em Pedrógão Grande quando o fogo eclodiu na vizinha aldeia de Escalos Fundeiros.

Emigrou aos 13 anos com os pais para o Brasil e radicou-se em 2018 no município de Pedrógão Grande.

“Para modificar o presente e o futuro, não se percebe que esteja a acontecer alguma coisa”, declarou.

O reformado realçou que, apesar de “alguns rancores, ódios e situações pouco éticas”, verifica-se que no concelho “em geral as pessoas foram atendidas e houve uma reconstrução das casas”, no rescaldo de “uma experiência extremamente dramática”.

Entretanto, “não se nota que esteja a acontecer a reflorestação nos moldes diferentes que foram anunciados”.

“A região está verde, sim, mas tomada pelos fetos e pelos eucaliptos, que já têm novamente três metros de altura”, criticou Carlos Cristo.

A ausência de ordenamento florestal na região afetada pelo grande incêndio de 17 de junho de 2017 é a questão que mais preocupa a Associação de Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande (AVIPG), dois anos após o fogo.

"Aqui, devia ser o exemplo", defende a presidente da AVIPG, Nádia Piazza, relatando que no território assiste-se essencialmente à regeneração natural de eucaliptos, que continuam a crescer junto às estradas da região.

Segundo a responsável, no país assiste-se a "um problema de ordenamento florestal" e, apesar de reconhecer que é um processo que vai levar "muito tempo", entende que o trabalho devia ter arrancado logo após o incêndio que matou 66 pessoas.

"Temos que ter as nossas zonas de proteção, as casas preparadas para a passagem do fogo" e uma floresta ordenada e limpa, realçou, considerando que as autarquias deveriam eleger prioridades e apostar mais no cumprimento das faixas de gestão.

Durante estes dois anos após o incêndio, Nádia Piazza congratula-se por se ter ido para lá dos estudos e "do papel".

A criação de uma estrutura de missão que pegasse nas conclusões da comissão técnica independente, o fim de um calendário fechado para a época de riscos dos incêndios, o maior foco na gestão de combustível e o arranque do projeto-piloto do cadastro de prédios rústicos são exemplos de mudança, aponta.

"Se se continuar a caminhar, vai-se caminhar sempre no bom sentido. O meu receio não é que não se caminhe no bom sentido, é que não se caminhe", frisou a presidente da AVIPG.

Segundo Nádia Piazza, desde que se ande, vai-se sempre "caminhar num bom sentido".

"Erra-se de um lado, aprende-se do outro, vão-se limando as arestas. Quando o cadastro começou, não era perfeito, tinha muitas falhas, mas lá se foi limando", vincou, considerando que o importante era, dois anos depois, as consequências dos incêndios não ficarem remetidas apenas a estudos e sem qualquer ação consequente.

No início, os principais objetivos da AVIPG eram apenas de ter acesso à lista de todas as vítimas do incêndio, de garantir que a narrativa em torno da tragédia não fosse controlada pelo Estado e que os estudos desenvolvidos não deixassem dúvidas, como aconteceu na tragédia da ponte de Entre-os-Rios, disse.

"Eu não imaginei que fôssemos mexer com as estruturas ao ponto a que mexemos", salientou.

Apesar de os problemas estruturais levarem algum tempo a resolver, "o que é preciso é continuar a caminhar", acrescentou.

créditos: PAULO NOVAIS/LUSA

Despovoamento e desemprego continuam por resolver na região

O despovoamento e a falta de investimentos que promovam o emprego destacam-se também entre os problemas por resolver em Pedrógão Grande e concelhos vizinhos, dois anos após o incêndio de 17 de junho de 2017.

“Ainda há muito por fazer”, disse à agência Lusa o presidente da Câmara de Pedrógão Grande, Valdemar Alves, lamentando não terem chegado a concretizar-se os investimentos previstos por diferentes empresas para este município do distrito de Leiria.

Valdemar Alves é um dos 43 arguidos no inquérito às alegadas irregularidades nas ajudas à reconstrução de casas atingidas pelo fogo de 2017.

“Tínhamos duas ou três empresas estrangeiras que queriam vir investir em Pedrógão Grande. Mas, depois, começaram a desculpar-se com tudo o que a comunicação social tem dito e desistiram”, afirmou.

Eleito pelo PS em outubro de 2017, após um primeiro mandato pelo PSD, ele é igualmente arguido no processo para apuramento de responsabilidades na ocorrência do incêndio, condição que partilha com o presidente da Câmara de Figueiró dos Vinhos, Jorge Abreu (PS), e Fernando Lopes (PS), que liderou o município da Castanheira de Pera, entre outros.

“Temos muita gente amiga no concelho. Mas há também pessoas, não mais que meia dúzia, que ainda têm força para espalhar o ódio”, disse, sem mencionar nomes.

Em março, ao assinalar o arquivamento de outro inquérito do Ministério Público, relacionado com suspeitas de fraude na entrega de donativos às vítimas do incêndio, Valdemar Alves alegou que a polémica em torno do assunto teve origem em movimentações políticas locais contra si.

Segundo o autarca, os projetos abandonados pelos promotores eram nas áreas do turismo e plantas medicinais.

Há dois anos, logo após a tragédia, em que morreram 66 pessoas e mais de 200 ficaram feridas, o grupo Lusiaves anunciou um investimento de 60 milhões de euros na produção de aves em Pedrógão Grande, Castanheira de Pera e Figueiró de Vinhos, totalizando a criação de 300 empregos, mas nenhum dos empreendimentos avançou.

Aos “problemas de ordenamento florestal e do território”, o seu colega de Figueiró dos Vinhos junta “o declínio demográfico e um insuficiente desenvolvimento económico, comum aos territórios de baixa densidade”.

Estas questões “irão obrigar a uma resposta alargada e reforçada, pois só desta forma se corrigem desequilíbrios estruturais que permanecem há décadas”, refere Jorge Abreu, numa declaração escrita enviada à Lusa.

Quanto ao “projeto-piloto de reflorestação” das áreas ardidas, dando primazia às espécies autóctones, “vê-se pouca coisa ou mesmo nada”, criticou, por sua vez, Valdemar Alves.

O autarca referia-se a um projeto anunciado pelo primeiro-ministro, António Costa, no dia 28 de junho de 2017, onze dias após o fogo, numa reunião com autarcas da região.

“Os jovens continuam a sair do território que, se estava desertificado, desertificado está”, acrescentou.

Já em Figueiró dos Vinhos, “a reconstrução física (…) está próxima da sua conclusão, no entanto, inúmeros desafios permanecem e vão obrigar a uma atenção redobrada”, de acordo com Jorge Abreu.

“A maior vulnerabilidade à ocorrência de incêndios ainda não está debelada. Refiro-me aos problemas de ordenamento florestal e do território, ao declínio demográfico e um insuficiente desenvolvimento económico”, opinou.

O autarca realçou a “ampla resposta” na ajuda às famílias e na reconstrução de casas e infraestruturas públicas, bem como “o apoio à atividade económica através do restabelecimento produtivo das empresas, a proteção dos recursos hídricos e de alguns elementos naturais mais relevantes”.

“Houve da parte do Governo central o apoio que se exigia e hoje a reconstrução daquilo que é possível reconstruir, num tão curto espaço de tempo, é uma realidade observável e muito próxima da conclusão”, referiu.

A Lusa tentou obter também o testemunho da presidente da Câmara da Castanheira de Pera, Alda Carvalho (PSD), que não se mostrou disponível.