“Nós somos sobreviventes do cancro, até o deixarmos de ser”, pode ler-se no post intitulado “Lutar Contra o Cancro”, no blog de Pieter Hintjens, antigo presidente da Foundation for a Free Information Infrastructure (FFII) e criador e dinamizador da comunidade ZeroMQ, uma biblioteca de comunicação para implementação da comunicação entre sistemas de software.
No passado dia 4 de outubro, o autor deste post morreu.
Hintjens era escritor e arquiteto de software e uma inspiração para muitos, tendo dedicado décadas da sua vida a criar sistemas de software e comunidades online, que o próprio classificava como “sistemas vivos”. Escreveu vários livros, mas foi através dos mais de 30 protocolos que criou que ficou reconhecido. Era nestes contratos, que estabelecem regras de conduta, normas de utilização e formas de regular a comunicação, que se espelhava o seu trabalho - ou pelo menos o trabalho de que mais se dizia orgulhar. Em abril, escreveu o seu último protocolo, sobre si, para si e para os outros: um protocolo para morrer.
Em 2011, Pieter foi diagnosticado com cancro do ducto biliar. Uma das características deste cancro é o perigo de propagação pelo corpo, visto que a função dos ductos é transportar os fluidos do fígado e da vesícula biliar para o intestino delgado.
Este ano, uma tosse intensa que se foi intensificando ao longo de dias obrigou-o a consultar o seu oncologista. Depois de vários exames (TAC, PET e exames sanguíneos), foi possível perceber que os seus pulmões estavam repletos de metástases. O médico deu-lhe a notícia que ninguém quer ouvir: teria apenas mais alguns meses de vida.
Entre os dois diagnósticos, durante os cinco anos, Pieter nunca sentiu que venceu verdadeiramente o cancro. O fantasma nunca o largou. Ele próprio disse, numa entrevista publicada em podcast no The Changelog, que aquele tempo era apenas emprestado.
Isto aconteceu em abril. Um mês antes, o seu pai tinha morrido. Ou melhor, escolheu morrer através da eutanásia, que na Bélgica é permitida a doentes em fase terminal ou a pessoas que vivem em situações limite.
O futuro que o esperava era negro. O cancro iria espalhar-se pelo estômago e ele não poderia comer; as dores iriam aumentar-se e tornar-se mais intensas com o decorrer do tempo.
A eutanásia era algo que Pieter queria, mesmo antes de lhe ter sido diagnosticado cancro. Quando viu o pai morrer, quando viu que toda a família esteve envolvida no processo e pode acompanhar o seu pai até ao seu último suspiro, quando viu a tranquilidade com que ele morreu soube que queria morrer daquela forma, conta no Reddit o próprio, em resposta a um comentário, das centenas que foram deixados num post da sua autoria em que abordava a sua condição.
Na perspetiva de Pieter - um homem apaixonado por pessoas e por comunidades que se esforçou para tentar colocar essa ‘humanidade’ nos seus protocolos -, a eutanásia devolve um carácter social à morte, uma característica que, segundo ele, se perdeu ao longo dos tempos. Antes, disse em entrevista ao The Changelog, as pessoas reuniam-se e morriam em casa, junto dos seus. Hoje, é algo solitário. “A eutanásia vai permitir, assim como permitiu ao meu pai, que a família se envolva no processo da morte”, explicou.
O seu protocolo de morte explica tudo isto. Mas vai mais além. Vai até à forma como Pieter explicou aos seus filhos - de doze, nove e cinco anos-, que iria morrer, utilizando uma metáfora com Legos. Pediu-lhe que imaginasse uma caixa cheia daqueles brinquedos. E colocou a questão da seguinte forma: “Se utilizares os blocos de Legos desta caixa para construir uma casa, e depois outra casa, e outra e outra, sem nunca derrubares as construções mais antigas, vai chegar a uma altura em que ficas sem Legos. Nós somos casas de Lego, e quando nós morremos voltamos para a caixa para que novos bebés possam nascer”.
A certa altura, no protocolo, surgem duas personagens fictícias, o ‘Bob’, um doente em fase terminal, e a ‘Alice’, a pessoa amiga ou familiar que convive de perto com ele.
Pieter pede que expressões de falsa esperança ou apenas lamentos não sejam proferidos por Alice, nem mesmo de alento. Na fase terminal, segundo o autor, uma pessoa já fez tudo o que podia, já lutou e tem de encarar a realidade. Em vez de lamentos, sugere a partilha de histórias, o relembrar ‘dos bons velhos tempos’.
Para os doentes terminais, Pieter deixa uma mensagem sob o título: os comportamentos que o Bob deve adotar. Segundo o programador, Bob precisa de ter uma postura feliz, não cair em falsas esperanças, organizar a sua vida, ser honesto e transparente para com os outros.
Pieter partiu, escolheu quando queria partir e deixou tudo preparado para a sua morte. Desde um repositório de vídeos, livros, notícias e fóruns para que mais tarde os seus filhos se pudessem relembrar dele. Deixou o futuro da comunidade ZeroMQ entregue. Preparou o seu próprio funeral.
O homem das comunidades, o programador que se apaixonou pela escrita, partiu e deixou um legado, um protocolo, um relato na primeira pessoa e uma mensagem para todos aqueles que vivem no suplício de uma doença terminal.
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