Lisboa foi hoje palco de uma manifestação que juntou milhares de pessoas num apelo para que a lei que criminaliza os maus tratos a animais não seja declarada inconstitucional, como pediu o Ministério Público.
Uma petição pública “em defesa da lei que criminaliza os maus-tratos a animais”, e a inclusão da proteção dos animais na Constituição, já recolheu mais de 71 mil assinaturas.
O que está em causa?
O Ministério Público pediu ao Tribunal Constitucional (TC) que declare inconstitucional a norma que criminaliza com multa ou prisão quem, sem motivo legítimo, mate ou maltrate animais de companhia — esse pedido de inconstitucionalidade surge após três decisões do TC nesse sentido.
É crime maltratar animais de companhia?
Sim, desde 1995, sendo que a alteração mais recente se deu em 2014. No artigo 387.º do Código Penal está tipificado o crime de maus-tratos a animais de companhia (por exemplo, cães e gatos) a conduta de quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus-tratos físicos, com o crime a ser punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.
Em caso de morte do animal, “privação de importante órgão ou membro” ou “afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção”, a pena pode ir de prisão até dois anos ou multa até 240 dias.
A questão é que, como recordou o Expresso, o TC já tinha declarado a inconstitucionalidade desta lei casos graves, como o da cadela Pantufa, que morreu em agonia depois de ter sido sujeita a uma cesariana a sangue-frio. O dono, que deitou os cachorros ainda vivos para o lixo, foi condenado na primeira instância, mas depois absolvido.
Segundo o semanário, o TC argumenta, nomeadamente, que o artigo 66.º da Constituição, que protege o Ambiente e a Qualidade de Vida, não pode ser invocado para a proteção dos animais de companhia, como cães e gatos. “O artigo 66.º não protege os animais enquanto tais, de um modo que permita entendê-los como ‘indivíduos’, mas protege-os somente na medida da sua relevância para o ambiente como um todo”, diz o acórdão citado pelo Expresso.
E agora?
O plenário de juízes do TC prepara-se para decidir o futuro desta versão da lei de proteção dos animais. É esta decisão que levou hoje milhares às ruas, numa manifestação convocada pela organização Intervenção e Resgate Animal (IRA).
Tendo tido início às 16:00, o protesto começou com uma concentração na praça do Marquês de Pombal e teve como destino o Palácio Ratton, onde está sediado o Tribunal Constitucional.
Como correu a manifestação?
A Agência Lusa, que acompanhou a manifestação, classificou-a como “ruidosa mas ordeira”.
A organização estima em 70 mil o número de participantes na manifestação, enquanto a PSP aponta para cerca de dez mil manifestantes.
O cortejo teve apenas uma breve paragem, para que a comitiva da União Zoófila, que exibia uma faixa onde se lia "A salvar vidas desde 1951" pudesse parar frente à porta do TC, clamando também por Justiça.
Depois dos protestos, os promotores da manifestação avisaram que a visita do Papa a Portugal pode ser o próximo grande momento de protesto. “Se esta manifestação não for suficiente, temos outros truques na manga”, garantiu à Lusa Tomás Pires, presidente do IRA.
Faixas em várias línguas, a ser colocadas por altura da Jornada Mundial da Juventude, em Agosto, quando o Papa Francisco deve fazer nova visita a Portugal, pode ser o próximo protesto de grande visibilidade, “para que o mundo saiba o que querem fazer em Portugal”.
O PAN (Pessoas, Animais, Natureza) foi o único partido a apoiar formalmente o protesto, exibindo o cartaz onde se lia "Criminoso e Inconstitucional é maltratar um animal". De resto, esta força política não só se opõe ao potencial retrocesso do TC, como quer que a lei se agrave.
Como assim?
O PAN quer que se criminalize os maus tratos a todos os animais e não apenas aos de companhia.
O partido defende também, num projeto de lei de 2022 que baixou à comissão da especialidade na sexta-feira, o aumento dos “limites máximos previstos para as penas de multa dos crimes de maus-tratos e abandono de animais, bem como da pena de prisão pelo dano morte”.
De acordo com o PAN, a morte de um animal deve ser punida com pena de prisão de seis meses a três anos (em vez de dois anos) ou com pena de multa de 60 a 360 dias (em vez de 240 dias) e o abandono com pena de multa até 90 dias (em vez dos atuais 60).
Inês Sousa Real, líder do PAN que se juntou ao protesto encabeçando uma comitiva do partido com uma faixa a lembrar o caso da morte de dezenas de animais em Santo Tirso, destacou essa iniciativa legislativa do partido para alterar o Código Penal, mas defendeu que nada disto é verdadeiramente necessário para a questão em debate.
“O TC tem o dever e o poder de manter esta lei em vigor. O tribunal pode e deve fazer uma interpretação atualista da Constituição. (…) Temos mais do que margem para o tribunal declarar a constitucionalidade da lei em vigor”, disse a deputada única do PAN.
Inês de Sousa Real recordou os “inúmeros processos em curso”, entre os quais o da morte à fome dos galgos do cavaleiro tauromáquico João Moura, e os “milhares de animais apreendidos ao abrigo de processos-crime”.
“Se esta lei cair, mesmo que venhamos a ter uma outra legislação que corrija e criminalize os maus tratos, vão cair todos estes processos. Isso significa que os animais vão ter que ser devolvidos aos agressores, que as pessoas vão ficar absolvida e impunes (…). Seria de uma injustiça grotesca”, defendeu a deputada.
Como reagiram as outras forças políticas?
Para já, apenas o PS reagiu — o que não é de somenos, visto que detém maioria absoluta no Parlamento e, assim, pode viabilizar os projetos legislativos do PAN.
Em declarações à agência Lusa, o vice-presidente da bancada parlamentar do PS Pedro Delgado Alves disse que os socialistas estão disposto a mexer na Constituição e na lei para tornar o bem-estar animal “claro para todos”.
O deputado do PS alertou que a temática do bem-estar animal tem hoje “um consenso social e uma adesão muito maior do que tinha há 10 ou 15 anos” e, nesse quadro, uma eventual declaração de inconstitucionalidade provocaria “um grau de perplexidade por parte da população”.
Perante este cenário, Pedro Delgado Alves garantiu que o PS está “focado” em “encontrar uma solução que salvaguarde e que permita manter, de forma perfeitamente clara para todos, esta forma adicional de proteção do bem-estar animal”. Para tal, o deputado referiu que o projeto de revisão constitucional do PS procura “precisamente deixar sem margem para dúvidas que a Constituição consagra e acolhe o bem-estar animal de forma expressa”.
Por outro lado, o PS mostra também abertura para “continuar a melhorar” a lei que criminaliza os maus-tratos a animais de companhia, de 2014, salientando que há quem indique que a legislação “não é suficientemente determinada, não é suficientemente clara”.
Quanto ao projeto do PAN, Pedro Delgado Alves diz que o PS compromete-se a "olhar para as propostas apresentadas" e, caso haja "algum ponto de entendimento que permita superar estas dificuldades”, mostrar abertura para discuti-las.
E por parte do Governo?
Resposta semelhante à do PS. O ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro, afirmou hoje que o Governo apoia uma clarificação da lei sobre criminalização de maus-tratos de animais de companhia, para que não haja retrocessos nesta matéria.
"Independentemente da decisão que vier a ser tomada pelo Tribunal Constitucional sobre a constitucionalidade das normas penais, o Governo vai acompanhar a Assembleia da República no trabalho de densificação da lei que vier a ser necessária, para salvaguardar que não deixemos de condenar qualquer ato bárbaro sobre animais", disse Duarte Cordeiro.
Sobre se é necessária uma revisão constitucional também nesta área, o ministro do Ambiente disse que a clarificação da lei "é, para já, o que pode vir a ser necessário para ultrapassar esta eventual decisão do Tribunal Constitucional".
Questionado sobre manifestações como a que aconteceu hoje em Lisboa, que juntou milhares de pessoas em defesa da criminalização dos maus-tratos a animais, Duarte Cordeiro considerou que "são muito importantes" na defesa das convicções e dos valores sobre o bem-estar animal. "Devemos elevar os padrões de proteção animal e não o contrário, não retroceder. Não ter um retrocesso que era dificilmente compreendido pelos portugueses", disse.
E Marcelo Rebelo de Sousa?
Depois de ser criticado pelo IRA devido ao seu “silêncio indescritível”, o Presidente da República também se pronunciou hoje quanto ao tema.
Numa nota divulgada na página oficial da Presidência da República com o título "Presidente da República defende respeito pelo bem-estar animal", Marcelo Rebelo de Sousa afirma que “tem recebido diversas mensagens relativamente à proibição e punição de maus-tratos a animais”.
“Esta matéria constitui hoje, para a nossa sociedade, um valor largamente partilhado e uma exigência indiscutível, que o Presidente da República partilha e defende, e que deve ser devidamente legislado”, lê-se no comunicado.
O chefe de Estado recorda que, “estando em curso um processo de revisão constitucional, pode o parlamento abordá-lo neste contexto, como também pode o legislador, em sede de legislação ordinária, densificar e reforçar as normas e sanções aplicáveis no domínio do bem-estar animal”.
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