António Costa e Catarina Martins travaram esta noite um debate cerrado e que foi centrado na questão sobre quem foi responsável pela atual crise política provocada pelo chumbo do Orçamento do Estado para 2022 na generalidade.

Ao longo de 26 minutos de frente-a-frente, estiveram em discussão as políticas de saúde, de trabalho e de Segurança Social — os temas que estiveram na origem do desentendimento entre governo do PS e do Bloco de Esquerda no Orçamento deste ano.

Mas foi com a questão dos obstáculos na esquerda que começou o debate desta terça-feira entre a coordenadora do Bloco de Esquerda e o secretário-geral do Partido Socialista.

Questionada sobre se Costa é um obstáculo, a líder bloquista defendeu que "o obstáculo é o desejo de uma maioria absoluta, ou seja, a ideia de que só se pode governar em Portugal se houver uma maioria absoluta e a intransigência de negociar à esquerda".

"Em 2015, o Bloco de Esquerda e o PCP, com o PS, seguramente, fizeram um acordo que nunca tinha sido feito antes e foi graças a esse acordo que António Costa foi primeiro-ministro. Tivemos quatro anos de estabilidade na vida das pessoas, de reconquista de direitos e de crescimento económico", começou por apontar.

Contudo, muito mudou desde aí. "Orgulho-me desse momento, voltaria a fazê-lo. E foi por isso que, em 2019, embora tenha sido surpreendida por uma campanha do Partido Socialista, também sobre a maioria absoluta, e que até se chegou a chamar 'Empecilhos à Esquerda', não hesitei: o BE voltou a propor ao PS um acordo, com base no trabalho e na saúde, para responder ao país. António Costa recusou e tem vindo desde aí em recusas de diálogo à esquerda, com o BE, mas também com o PCP", atirou Catarina Martins.

Assim, para a coordenadora do Bloco, o verdadeiro obstáculo não é António Costa, mas "este desejo de maioria absoluta". Contudo, deixou uma certeza sobre isto: "neste momento, acho que toda a gente no país sabe que não teremos maioria absoluta. Portanto, a nossa responsabilidade é agora criar soluções para o dia seguinte, e o que conta na vida em Portugal para criar essas soluções, é a saúde e é o trabalho, e é isso que temos de discutir", frisou.

"Foi bom termos feito um acordo escrito em 2015, foi um erro [o PS] ter recusado um acordo escrito em 2019. Mas nós cá estamos outra vez, para garantir que em Portugal há uma solução para a saúde, para o trabalho, para o que conta para a vida das pessoas", evidenciou.

Da maioria absoluta à existência de dois "Blocos"

Por sua vez, António Costa começou por evidenciar que "a maioria absoluta não é um objetivo em si".

"Ninguém me ouviu falar em 2015 ou em 2019 em maioria absoluta. Acontece que, em 2020, quando estávamos no momento mais grave da pandemia, quando não havia sequer um português ainda que tivesse levado ainda a vacina, a direção do BE decidiu romper com o diálogo à esquerda", apontou o secretário-geral do PS.

"O Orçamento do Estado para 2021, que permitiu o pagamento do lay-off a 100%, que teve um aumento histórico do reforço do SNS, que permitiu alargar o prazo do subsídio social de desemprego e do subsídio de desemprego, que aumentou as pensões sociais não contou com o apoio do Bloco. O PS teve de negociar exclusivamente com o PCP e com os Verdes", especificou.

Desta forma, Costa não mostrou dúvidas quanto a esta cisão à esquerda: "o Bloco não rompeu este ano, rompeu já o ano passado. Por vontade do Bloco, o governo do PS já tinha sido derrubado há um ano. O que está em causa não é saber se há uma maioria, é saber qual é a maioria que existe", disse.

Feita a análise dos últimos anos, António Costa deixou uma clara acusação ao partido. "Há dois Blocos: o que aparece na campanha eleitoral, que é muito mel, e depois há o que atua da Assembleia da República, que é cheio de fel. Maioria vamos ter, resta saber se é do PS para continuarmos a avançar, ou se temos uma maioria da oposição, cujo único efeito é bloquear", afirmou.

Para o secretário-geral do PS, "Catarina Martins só soma o seu voto à direita e à extrema-direita para chumbar o Orçamento do PS, mas não é capaz de juntar o seu voto à direita e à extrema-direita para aprovar um Orçamento alternativo ao PS".

"Aquilo que votam não é para avançar, é para parar. E o país não pode parar, o país tem de avançar. Temos de responder à pandemia, temos de virar a página, temos de recuperar a economia, recuperar a sociedade, recuperar as feridas que esta crise brutal deixou no setor na cultura, da restauração, na vida geral em sociedade. E é por isso que temos de ter uma maioria que dê estabilidade ao país", declarou.

Virado novamente o debate, Catarina Martins começou por responder que "o PS e o governo de António Costa contaram sempre com o Bloco de Esquerda — e contaram no momento mais difícil da pandemia".

"Fomos mesmo o único partido de esquerda com que o PS contou sempre quando precisou de estados de emergência, mesmo que tivéssemos algumas divergências. E também foi o único partido com que contou para o orçamento suplementar, em que viabilizámos 7 mil milhões de euros de resposta à pandemia, que depois o governo não quis utilizar", disse.

Além disso, houve tempo para responder a uma das grandes provocações de Costa: "a questão do mel e do fel é a prova do que se faz em cada momento", rebateu Catarina Martins. "Foi mel dizer às cuidadores informais que são tão esforçadas, que na verdade foi quem mais sofreu durante a pandemia, que teriam 30 milhões em cada orçamento, mas depois veio o fel e o governo guardou 98% da verba que tinha para cuidadores informais na gaveta", exemplificou.

A questão da saúde: daqui a quatro anos há um SNS "moribundo"

Referindo que "o contrato escrito [de 2015] deu estabilidade e é aí que eu acho que temos de voltar", Catarina Martins atirou que "se não for nada feito, o SNS estará moribundo daqui a quatro anos".

"Temos menos médicos desde o início da pandemia, 2 mil enfermeiros que pediram para emigrar", lembrou, garantindo que "o que o governo vem propor não é fortalecer o SNS, mas é exigir que façam horas extra".

Por isso, está em causa "uma questão de dinheiro e de estrutura no SNS". "Precisamos de uma reestruturação que o torne capaz para o século XXI, com uma população envelhecida, muita doença crónica", apontou, dizendo que também é necessário um "SNS que valorize os profissionais".

Por sua vez, António Costa acentuou que o governo PS tem "vindo a reforçar sistematicamente o SNS desde o orçamento de 2016", havendo à data de hoje mais 28 mil profissionais em termos líquidos (só este ano — 2022 — "entraram mais 2.044 médicos"), mas o BE chumbou um Orçamento que reforçava em mais 700 milhões de euros o orçamento do SNS.

"O BE falhou, entre os dois últimos orçamentos, no reforço em 1.500 milhões de euros do SNS", segundo António Costa, que deixou ainda mais acusações ao partido. "A direção do BE cansou-se de ser parte de uma solução do governo e voltou a ser um partido de protesto".

Catarina Martins respondeu rapidamente à provocação: "o Bloco de Esquerda não se cansa e a direção do Bloco de Esquerda não muda de opinião. Quando fizemos o acordo em 2015 tínhamos um objetivo e um horizonte. Quando lhe propus um acordo em 2019, foi precisamente para isso. E foi o PS que recusou".

Neste sentido, Catarina Martins defendeu que houve uma mudança de comportamento do PS na legislatura que agora termina e que se verificou nos dois últimos anos uma “intransigência” negocial por parte do Governo socialista.

A líder bloquista procurou ainda colocar em contraste a política do atual Governo e a do fundador do PS António Arnaut no plano da saúde, tendo ainda criticado o executivo por manter legislação laboral do tempo da “troika” e considerou que essa atuação se deve ao objetivo do PS de chegar à maioria absoluta nestas eleições.

O problema do Orçamento para 2022: Segurança Social e Trabalho

O tema da Segurança Social foi introduzido no debate por António Costa, que pegou na proposta do BE apresentada no âmbito do Orçamento deste ano, referente ao fim da aplicação do fator de sustentabilidade para pensionistas alvo de dupla penalização por reforma antecipada, para acusar os bloquistas de pretenderem agravar as contas do sistema em 480 milhões de euros por ano — o que seria "um rombo brutal".

Segundo António Costa, "o que foi impeditivo de um acordo no último ano foi a intenção do BE de minar a sustentabilidade futura da Segurança Social".  "Foi isso que nos impediu de chegar a acordo no Orçamento”, rematou.

"Nós temos de ter uma Segurança Social que respeite o equilíbrio entre gerações, que respeite as que neste momento têm as pensões a pagamento, mas que garante a todos aqueles que estão a trabalhar e descontam mensalmente para a Segurança Social que vão ter a sua Segurança Social no futuro", lembrou.

O secretário-geral do PS disse ainda que a proposta do Bloco, que o seu Governo recusou, minaria a sustentabilidade do sistema público e a confiança na Segurança Social por parte dos cidadãos, o que, na sua perspetiva, iria abrir a porta às correntes liberalizadoras que defendem a introdução de um sistema misto no país.

“É a sustentabilidade que dá garantias aos pensionistas de hoje e de amanhã. Se minarmos a confiança no futuro da Segurança Social, ganha a direita que propõe um sistema misto e vem dizer que o Estado não tem capacidade de garantir a sustentabilidade”, apontou.

A coordenadora do Bloco de Esquerda rejeitou os números antes referidos por António Costa, tanto em termos de pensionistas abrangidos pela sua proposta, como, sobretudo, em relação ao respetivo impacto financeiro anual.

“Há um número residual de pessoas que ainda têm esse duplo corte. Teria custado 16 milhões de euros não ter esse corte nas pensões. Além disso, há 42 mil pensionistas que têm esse corte desde o tempo da troika. É um grupo reduzido de pensionistas, que é penalizado e que trabalhou toda a vida”, acrescentou.

Por sua vez, o líder do PS frisou que 180 mil pessoas podiam beneficiar com o fim do factor de sustentabilidade. E insistiu no número que foi desmentido: “Bastava um terço para que o custo anual fosse de 480 milhões de euros por ano”.

Na questão do trabalho, o líder socialista culpou a atuação do BE por ter adiado a aprovação pelo parlamento da “Agenda para o Trabalho Digno”, que considerou essencial para combater a precariedade, enquanto a coordenadora do Bloco observou que António Costa, em 2012, criticou o então líder do PS, António José Seguro, por ter viabilizado a revisão das leis laborais proposta pelo executivo de Passos Coelho. Mas agora, sendo Catarina Martins, António Costa quer mantê-la.

No que diz respeito a temas mais específicos, Costa terminou a sua série de ataques citando uma parte do programa do BE em que se prevê a reversão das privatizações de empresas como a EDP, CTT, REN ou GALP, o que, alegou, “agravaria a dívida pública” portuguesa em 14,5% do Produto Interno Bruto (PIB).

“Este discurso de agravamento da dívida para fazer uma bravata ideológica é que efetivamente cria um problema muito difícil entre nós”, assinalou.

Costa vai bater com a porta?

Questionado pelo jornalista João Adelino Faria sobre o que fará se perder as eleições, ou se vencer com maioria relativa, tal como em 2019, Costa não hesitou em repetir o que já havia dito noutras circunstâncias.

"Já disse que saio se perder as eleições, porque isso significa um voto de desconfiança dos portugueses. Caso contrário, estou cá para assumir as minhas responsabilidades”, declarou o líder socialista, após ser interrogado se baterá com a porta se não tiver maioria absoluta.

Questionado novamente sobre o que fará se o PS não tiver maioria absoluta nas eleições legislativas antecipadas de 30 de janeiro, António Costa reiterou: “Não, não bato [com a porta]”.

“Eu não faço essa chantagem, eu não sou o professor Cavaco [Silva], o professor Cavaco é que disse: ou me dão maioria absoluta ou vou-me embora. O que eu digo é que, obviamente, quem é primeiro-ministro seis anos, se ao fim de seis anos perde as eleições, tem de tirar uma ilação, é um voto de desconfiança dos nossos cidadãos”, respondeu.

Assim, segundo o líder socialista, a 30 de janeiro “os portugueses decidirão” como se vai governar o país.

“O que me compete dizer é que, nestas condições, com partidos como o Bloco [de Esquerda], nós, de facto, precisamos de uma solução de estabilidade, que o Bloco não oferece. E para isso a solução é termos uma maioria estável do PS", disse, num momento em que a coordenadora bloquista já não dispunha de tempo para contrapor.