
Julião Sarmento (1948-2021) morreu há quatro anos, foi um dos primeiros artistas da geração pós-revolução com uma grande reputação internacional. Viajou pela Europa e Estados Unidos, viveu na Baixa de Lisboa e no Estoril com Helena Vasconcelos, que o acompanhava a toda a parte.
Na semana em que inaugurou, em Lisboa, o Pavilhão Julião Sarmento, museu dedicado à arte contemporânea com base na coleção do artista - com entrada gratuita até este domingo, 8 de junho - , falámos com Helena Vasconcelos, uma figura notável nos meios literários e que publicou um livro sobre os tempos com Julião Sarmento, “O Que Está Para Vir” (Quetzal).
Para mim foi particularmente interessante ler este livro, porque apanha Lisboa entre 1976 e 1992, uma altura em que estive fora do país. É por assim dizer a introdução ao que assisti depois, quando regressei. Mas porquê este título?
Porque quis deixar um testemunho sobre o Julião e quero que ninguém o esqueça. Creio que ele já é suficientemente conhecido e a sua obra marca perfeitamente toda a história da arte portuguesa, e não só.
Quando falei com Julião Sarmento pela primeira vez, não tinha ainda a noção da sua importância. Fui-lhe pedir para usar duas polaroides dele na capa do meu romance Vista da Praia e disse-me logo que sim. Fiquei surpreendido com a sua serenidade.
Por isso mesmo eu gostava que, no futuro, também não se esquecessem dele como pessoa, para além da obra. O que está para vir é o futuro, é aquilo que nós não conhecemos, que é sempre um mistério, mas que eu desejaria muito que houvesse um permanente reconhecimento.
O Julião era de uma generosidade absoluta, não se armava em vedeta, ajudava imensos artistas mais novos, arranjava ligações, dava contatos. Não era nada aquele género de pessoa que guarda para si, tinha uma segurança em relação a si próprio e à sua obra que é muito raro encontrar.
Foi um dos artistas portugueses mais marcantes daquela época.
Sim, e não só. Continua a a fazer exposições. A sua obra está espalhada pelo mundo todo. E marcou a nossa arte, não só pelo trabalho, mas também pela sua posição como artista, da forma como criou toda uma dinâmica que era completamente desconhecida na altura. Conheci-o em setembro de 1974 e acompanhei toda aquela dinâmica de evoluções sobre revoluções.
Como é que conheceu o Julião?
Conheci-o através de um amigo comum, com quem eu namoriscava, e ele disse-me, muito estranhamente, que tinha um amigo que era ideal para mim!
No livro há uma cena, em 1978, no Estoril, organizada pelo João Vieira, em que escreves que “houve uma invasão de militantes do PCP.”
Exato. Mas foi muito divertido. Nós adorávamos todos esses cruzamentos. O João era uma pessoa que não tinha preconceitos em relação a nada, a não ser à ignorância e às estupidez! De resto, gostava de conhecer todo o tipo de pessoas, de todas as áreas de todas as cores políticas. E também todas as inclinações sexuais, de todo o tipo. O João olhava para as pessoas e para o que elas faziam e valiam, e não para o resto. E tivemos realmente essa festa fantástica. E foi sempre assim, toda a vida.
Quando marcámos a entrevista, disse-te que, em princípio, desconfio das autobiografias, porque levanta-se o problema de dar o nome às outras pessoas e elas têm direito à privacidade, ou seja, têm direito a não aparecer num livro que não escreveram. Mas agora, que li o teu livro, percebi que há um truque para falar das pessoas sem as expor e sem ferir suscetibilidades. Consegues não emitir juízos de valor e mesmo assim dizer como era aquela pessoa ...
Eu não tenho nada dessa cultura do segredo e da revelação ... A minha cultura é muito anglo-saxónica e, como tu sabes, os ingleses, e os americanos hoje, mas principalmente os ingleses, são peritos em biografias e autobiografias, enfim, em volumes de cartas. Sempre li muitas biografias e autobiografias e sempre gostei desse equilíbrio que conseguem encontrar - embora tenha havido polémicas, como há sempre nesses casos. Mas gosto desse equilíbrio entre o desvendar da personalidade e a forma de atenuar qualquer coisa que seja mais sensível.
E, repara, que o meu livro não é uma autobiografia de maneira nenhuma. São memórias. Tive a ajuda dos meus próprios diários, que eu escrevi sempre ,toda a vida, para não deturpar certas situações.
As pessoas que eu menciono são pessoas públicas, praticamente todas. São pessoas do mundo das artes, enfim, toda a gente conhece, que aparecem em muitas publicações, portanto, não desvendo propriamente de nada.
Houve já alguém que escreveu sobre o meu livro e disse que eu deixo muita coisa por dizer. É evidente que eu não quis contar uma história íntima, quis mostrar a minha posição como observadora. É quase como... uma escriba que está ali ao lado a tomar notas e vai passando.
Tu consegues isso porque és muito suave… Falas das pessoas, dos defeitos e das qualidades, sempre de uma maneira que não parece que estás a criticar, simplesmente a observar, sem juízos de valor. É uma coisa difícil de fazer e que tu fazes muito bem.
Não tenho a tendência para criticar a vida das pessoas. Há pessoas que me agradam mais que outras, evidentemente. Mas respeito muito a personalidade de cada um e afasto-me dos que são tóxicos,
Eu tinha uma teoria que mudou um pouco depois de ler o teu livro. Achava que a revolução política tinha sido em 1975 e que a revolução cultural tinha sido mais no final dos 90. A revolução cultural que atribuo muito ao Manuel Reis, porque não sendo um artista, era um criador de artistas, digamos assim.
Era um artista à sua maneira, era um artista na forma como ligava as pessoas, criando um espaço único e especial onde elas poderiam ser elas próprias e mostrar toda a sua maneira de criar e de viver, de se expressar.
Fico sempre um pouco aborrecido quando dizem que ele era o “Senhor da Noite”, porque o que ele fez em Lisboa ultrapassa muito isso. Era um homem muito inteligente, com uma visão do potencial de Lisboa, das pessoas que conhecia e de tudo aquilo que poderia acontecer se houvesse realmente um lugar para as pessoas se encontrarem e falarem à vontade dos seus projectos, cruzando ideias.
É muito interessante, porque havia gente não só as artes visuais, mas também cineastas, escritores, o Zé Ribeiro da Fonte, do São Carlos, por exemplo, gente da ópera, dança, teatro, moda. A Moda Lisboa nasceu lá. A moda como arte era muito interessante.
O Manel Reis, era o grande personagem da época. Muito amigo do Julião, aliás. Essa espécie de movida também aconteceu em Madrid e depois também desapareceu.
É difícil, hoje em dia, pensar num mundo sem Internet, sem ligações da web, sem mails, sem o Zoom, mas não havia nada. Portanto, era naqueles encontros que se desenhavam exposições, espetáculos, etc. Face a face, as pessoas encontravam-se para pensar tudo isso. Estávamos sempre a inventar.
Uma grande diferença, no caso de Lisboa, é que naquela época foi criada por nós, os lisboetas. E hoje em dia isso são os estrangeiros que, de alguma maneira, dão o tom à cidade. Os autóctones já não têm a força que tinham na altura.
Isso faz parte de uma evolução que não conseguimos parar. Nós desejávamos tanto, nessa altura, que pessoas de outros países viessem a Portugal! O Julião teve uma parte importante nessa troca, porque começou a conhecer artistas, galeristas e curadores em todo o mundo e convidava-os a vir cá. Muitas vezes ficavam em nossa casa.
Outra diferença é que os estrangeiros que vêm agora não são os mesmos que vinham nessa altura. Gente nova que quer divertir-se.
Os tempos alteram-se completamente. E por isso é que eu queria fazer este livro. Voltamos sempre ao princípio da conversa: quando o Julião morreu - foi um choque enorme para mim - o que eu quis foi escrever algo que deixasse esse rastro, essa marca de um tempo que não existe mais.
Nunca nada está estático ou parado. Há sempre movimento e evolução.
Mas queria deixar sem sentimentalismo, sem nostalgia de espécie nenhuma. Tenho saudades do Julião, evidentemente.Para mim era como um irmão.
Um dos artistas de Nova Iorque de que falas é o Kenny Sharf, que eu conheci e era muito doido. Fazia esculturas com peças de plástico e tralha, uma coisa entre o futurista e o barroco. Havia um clube da Rua 14 decorado por ele. Tinha dinossauros de plástico colados nos auscultadores dos telefones!
Era arte urbana. Como o Keith Haring, que já morreu. E o Basquiat que ainda conheci. O Keith era muito tímido, não gostava de aparecer. Parecia que tinha vergonha de ser reconhecido.
No livro conto uma história com o meu amigo Juan Munhoz em Madrid. O Juan levou-o levou ao Prado e ele só queria ir à cafetaria comer hambúrgueres. Não estava nada interessado na arte.
Tens saudades daquela época?
Tenho saudades das pessoas, mas não fico a chorar a pensar nessa época. Foi muito boa e era ótimo ter amigos tão interessantes e tão vivos e vitais. Gosto muito quando ainda encontro alguns, mas não tenho saudades de nada. Interessa-me mais as coisas vou vivendo no momento.
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