Pregos

Marta e eu fomos a Nowa Ruda comprar pregos. Os automóveis andavam devagar, uns atrás dos outros, porque a chuva havia destruído um bom pedaço de estrada. Na paragem do autocarro, apanhámos a menina Krysia que, com as suas galochas de homem, estava à chuva. Assim que entrou no carro, tirou-as e calçou os sapatinhos que trazia num saco de plástico.

Todas as ruas junto ao rio estavam enlameadas. A lama espalhada, a secar, chegava até às janelas do rés-do-chão. Os vendedores secavam os seus produtos. A dona da loja de roupas em segunda mão pendurava, em cordas, roupas usa- das que, na sua vida de trapo, já tinham passado por muita coisa — mudanças, trocas de armário, máquinas de lavar avariadas, ferros demasiado quentes, o aumento do peso dos seus donos, algumas até, a morte deles e, agora, de noite, a invasão de um rio turbulento.

Sobre um saco de areia, alguém espalhou calçado desportivo para secar, dezenas de pares iguaizinhos da Adidas e da Nike. Os atacadores pendurados pareciam melenas que tocavam a água. As suas cores garridas avivavam o pano de fundo cinzento das paredes enlameadas.

A menina Krysia agradeceu-nos a boleia e foi à sua vida, ajeitando o casaquinho cor-de-limão.  Parámos a seguir à ponte, junto à ourivesaria, e comprámos pepinos para fermentar. Foi então que o tresloucado que todos conheciam se aproximou de nós o Profeta, o Vidente —, um homem cabeludo com um poncho feito de um cobertor velho. Sorriu para Marta. Deviam conhecer-se.

Como estás? perguntou-lhe ele.

Na mesma respondeu Marta. Olhou para ela, incrédulo.

Na mesma?

Naquele momento, pareceu-me que o seu rosto se nublara, como se estivesse prestes a chorar. Marta disse-lhe para passar bem ou qualquer coisa do género e ele tirou da balança um pepino, virou costas e foi-se embora.

Livro: Casa de Dia, Casa de Noite

Editora: Cavalo de Ferro

Data de lançamento: 14 de junho

Preço: 18,89€

O Vidente

Este homem era portador de um nome belo e exótico — Lew, que significa Leão. E, aliás, ele próprio também parecia um leão.

Deixara crescer o cabelo e a barba, agora muito compridos, os quais se tornaram grisalhos durante um rigoroso Inverno não se sabe porquê.

Sim, o vidente Lew vivia de uma pensão de invalidez, pois, embora seja difícil acreditar, quando era jovem sofreu um acidente na mina e, durante dois dias, esteve soterrado a uma profundidade de quase cem metros num nicho quente de carvão preto, como no ventre da mãe, sempre dolorosamente consciente, com a mente lúcida a brilhar em torno da sua cabeça, qual auréola fosforescente. Tinha a certeza de que iria morrer, mas não morreu. A equipa de resgate retirou-o da mina e, a seguir, ele passou muito tempo no hospital. Depois de tudo ter terminado, retomou a sua vida, concentrando-se nela, ou seja, passou a ler livros de manhã à noite. Primeiramente, começou por ler tudo o que lhe vinha às mãos, mas, com o decorrer do tempo, deixou-se seduzir por textos dactilografados nunca publicados, que requisitava, por correio, numa livraria semi-legal de Cracóvia. Entre eles, havia textos de Besant, Blavatsky e Ossowiecki, bem como relatos confusos de sessões de espiritismo, profecias várias e cabalas indianas e judaicas. As tabelas reavivavam ordens de coisas há muito esquecidas e os diagramas atraíam com a sua harmonia de vários graus. Certa vez, deparou-se com o endereço da Sociedade de Astrólogos de Bydgoszcz e, a partir do livro que lhe enviaram, aprendeu a fazer horóscopos durante uma quadra natalícia. Desde então, nada lhe dava mais prazer do que mergulhar nas minúsculas sequências numéricas das efemérides. Às vezes, debruçava-se sobre elas toda a noite até de madrugada e, ao amanhecer, começava a ver o futuro. O futuro era sempre terrível, morto e vazio. Não tinha nem seres humanos, nem animais. Via o futuro surgir nos cantos sombrios do quarto e propagar-se para o exterior, para os patamares e as escadas do seu prédio, para os relvados da frente, para as ruas e praças de Nowa Ruda. Quando saía ao crepúsculo para dar um breve passeio, roçava no futuro, que lhe deixava nas mangas do sobretudo um estranho cheiro metálico.

Tornou-se um vidente a sério, quando a mulher morreu. Parecia que tinha sido ela a mantê-lo junto à terra e a puxar para baixo todos os seus pensamentos e todos os seus pressentimentos. À semelhança de uma poderosa depressão atmosférica que faz descer o fumo das chaminés, criando sobre as cidades um espesso nevoeiro invernal. Como por magia, ela controlava os pensamentos dele, conduzindo-o até às filas em frente às lojas, às beterrabas da horta e ao carvão que era preciso armazenar na cave. Além disso, a voz dela perseguia-o por toda a cidade. Costumava assomar-se à janela e gritar pelo pátio afora, «Lew! Lew! Lew!», até que todas as crianças levantavam a cabeça e repetiam com ela, «Lew! Lew! Lew!» Bruxa.

Por conseguinte, quando morreu, o silêncio por fim reinou e as imagens, reprimidas anos a fio, começaram a desabrochar na cabeça de Lew e a propagar-se como geada numa vidraça húmida, abraçando-se inesperadamente, formando anéis, sequências fantasiosas que construíam aleatoriamente padrões fascinantes com sentido. E aquilo era precisamente a visão sobrenatural das coisas.

Olga Tokarczuk
Olga Tokarczuk Olga Tokarczuk créditos: SASCHA SCHUERMANN / AFP

Os seus clientes eram apenas mulheres. Somente uma vez, na sua carreira de vidente, lhe apareceu um homem um senhor de idade bem vestido, inchado devido a uma má dieta e, talvez, ao excesso de vodca. Conhecia-o de vista, mas não era capaz de o ajudar muito, porque o problema do idoso era de amor o sentimento mais sobrevalorizado do mundo e, vistas as coisas, absurdo porque fruto da sua confusão interior. O homem procurava o seu amor, uma adolescente, o que era simultaneamente triste e ridículo. Lew não queria aceitar o caso, sobretudo, porque a menor não deixara qualquer rasto, nem mesmo a coisa mais trivial, nada. Mas o desespero do homem era tão aflitivo, e ele próprio tinha um ar tão lastimável com aquele sobretudo rígido de lã, aquele chapéu de feltro, descaído sobre os olhos, que parecia estar completamente perdido, inclusive dentro da sua própria roupa.

— Onde é que ela está? É tudo o que eu quero saber — disse ele.

Lew olhou, então, para o passado. E viu, de imediato, a rapariga que ele procurava, porque era mais agitada e nítida no tempo do que os outros seres. Ela aterrorizou-o; afinal de contas, não era adolescente, nem era mulher. Meu Deus, Lew ficou seriamente assustado e apenas disse àquele triste idoso:

Ela está aqui.

Disse-o porque a via tanto no presente como no futuro.

Na cidade? — alegrou-se o homem, e Lew viu pela primeira vez os seus olhos, inchados e turvos.

Algures nas redondezas.

Antes de se retirar, o homem colocou-lhe furtivamente uma nota na mão.

Faça o favor de guardar sigilo pediu-lhe ainda.

«Não precisava de ter dito aquilo», pensou Lew mais tarde. Nunca se deve falar de assuntos como aquele. Quem iria acreditar? Que se aquilo que não existe. Que o homem não é totalmente humano. Que todas as tomadas de decisão são uma ilusão. Graças a Deus que as pessoas têm a capacidade de descrer, um dom de Deus verdadeiramente caridoso. As mulheres, quando faziam perguntas sobre o  amor, eram sempre mais concretas; queriam ser abraçadas, caminhar de mão dada pelo parque, queriam ter filhos com determinado homem, lavar as janelas no sábado, cozinhar uma canja para alguém. Quando ele fechava os olhos, via a vida delas, que lhe parecia a ele aborrecida, tendo dificuldade em concentrar-se nos detalhes que lhes interessavam a elas. Um homem loiro ou moreno. Dar à luz um ou dois filhos. Ter um corpo saudável ou doente. Ter dinheiro ou gavetas vazias. Mas, quando se esforçava, era capaz de ver o futuro. Nas suas visões, era capaz de contar os filhos delas, espreitar para dentro das gavetas e avaliar a cor do cabelo dos homens, que, trajando camisolas interiores brancas, comiam a canja domingueira. Ainda assim, as vidas das mulheres enterneciam-no. Sentadas diante dele, com os olhos fixos no rosto dele em grande expectativa, eram como animais assustadiços, como as corças, como as lebres na Primavera frágeis e tímidas, mas, ao mesmo tempo, sábias na arte de se esquivar, escapulir e esconder. Às vezes, chegava a pensar que ser mulher implicava ter uma espécie de máscara que se punha no rosto logo à nascença para que nunca tivessem de se revelar inteiramente aos outros. Uma máscara que lhes permitia passar pela vida camufladas. Ele achava que elas nunca lhe perguntavam aquilo que deveriam perguntar.

Cambiava por dólares o (pouco) dinheiro que ganhava como vidente. Queria ir à Índia, um desejo que nunca realizou, porque a Índia, como tudo o resto, deixara de existir.

Mas, antes de mais, via frequentemente o futuro das pessoas, o que, na sua mente, se fundia num só futuro comum e universal. Sabia que o fim do mundo chegaria em breve, sendo apenas uma questão de cálculo.

Certa vez, viu o vale sobre o qual pairava um céu baixo e alaranjado. Os contornos daquele mundo eram pouco nítidos e as sombras desfocadas e expostas a uma estranha luz. No vale, não havia casas, nem quaisquer vestígios humanos, não crescia nem uma moita de urtigas, nem um arbúsculo de groselhas silvestres. Também não existia o riacho e o leito onde este correra havia desaparecido sob a erva grossa e dura, cor-de-ferrugem. O lugar onde correra o riacho parecia uma cicatriz. Naquele mundo, não havia nem dia nem noite. O céu alaranjado brilhava sempre da mesma maneira nem quente nem frio, sem qualquer movimento, indiferente. A floresta continuava a cobrir a colina, mas, quando ele a examinou com mais atenção, viu que estava morta, que, a dada altura, se convertera em pedra e petrificara. Nos abetos, havia pinhas penduradas e os seus ramos continuavam cobertos de agulhas grisalhas, porque não havia vento que as deitasse abaixo. Teve um pressentimento assustador — se, naquela paisagem, surgisse qualquer movimento, a floresta desmoronar-se-ia com grande estrépito, desfazendo-se em pó.

Era assim que imaginava o fim do mundo. Não era uma inundação, nem uma chuva de fogo, nem Auschwitz, nem um cometa. Era assim que o mundo seria, quando Deus — quem quer que fosse — o abandonasse. Uma casa abandonada, um cósmico a cobrir todas as coisas, bafo e silêncio. Tudo o que estava vivo congelaria e apodreceria sob uma luz sem pulsação, uma luz morta. Tudo se desfaria em pó, sob aquela luz fantasmagórica.

Este homem que via, todos os dias, o fim do mundo vivia com tranquilidade. De vez em quando, ia a Cracóvia comprar livros, olhava pelas janelas do comboio para as paisagens que iam ficando para trás, principalmente para a Alta Silésia, com os seus templos industriais e, mais adiante, para os campos da região de Opole, que se estendiam até à linha do horizonte, regularmente semeados com colza, que, todos os anos, dava flor no dia 10 de Maio. Na mochila de lona, carregava visões apocalípticas transcritas centenas de vezes à máquina (as últimas cópias eram quase ilegíveis, mas, ainda assim, emanava um estado de espírito sublime), depoimentos de fantasmas sobre a queda da civilização, relatos das aparições de Nossa Senhora e a intrincada poesia de Nostradamus.

De repente, a planície terminava e as montanhas começavam. O comboio entrava numa floresta de abetos, abria caminho por entre desfiladeiros rochosos e atravessava vales até que, por fim, se encontrava no centro de Wałbrzych. Havia quem descesse na Estação Municipal, mas Lew seguia viagem até à Estação Central, onde havia ligação para Kłodzko.

A Estação Central de Wałbrzych era uma estação escura e deserta com um quiosque onde os mineiros do turno da noite compravam cigarros e preservativos. No bar, vendiam-se pastéis de massa tenra, regados com toucinho derretido, e um chá fraco que mal conseguia libertar o seu sabor na água morna. O comboio para Kłodzko via Nowa Ruda ia geralmente vazio. Lew gostava de se sentar no andar de cima para ter uma vista melhor, já que aquele era o mais belo trajecto de comboio que já fizera. Passava por altos viadutos sobre largos vales, pelas encostas das montanhas, por aldeias e ribeiros. A cada curva abriam-se novas vistas de tirar o fôlego, que punham a descoberto os contornos suaves das montanhas, o céu acetinado, as faixas de vegetação. em baixo, havia pessoas pelo caminho que levavam vacas a pastar, os cães corriam, um homem desatava a rir de repente, os badalos soavam nos pescoços das ovelhas, a pele fazia comichão, mais acima um homem com uma mochila acenava com a mão, o fumo das chaminés subia aos céus e os pássaros voavam indiferentes rumo ao Ocidente. Naquele comboio, não era possível ler. Era forçoso olhar.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

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Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Lew começou a escrever um livro e iniciou-o com um título: O Fim Há-de Chegar. Era sobre o fim do mundo. Nele, fazia uma profunda análise do céu. O mundo começaria a chegar ao fim no dia 2 de Abril de 1995, quando Urano entrasse em Aquário, e terminaria de uma vez por todas em Agosto de 1999, quando o Sol, Marte, Saturno e Urano criassem no céu uma grande cruz. Começou a escrever o livro em 1980, no Inverno, numa altura em que ainda não se sabia ao certo o que aconteceria na Polónia, apesar de terem começado as greves do Solidariedade e, em Wrocław, os eléctricos, que estavam em greve, formarem uma grande cruz em toda a cidade. Lew admitiu, então, que talvez se tivesse enganado nas suas observações cuidadosas e na leitura dos minúsculos algarismos das efemérides, e que o fim do mundo estivesse mais próximo do que pensara. E, no fundo, estava desejoso que chegasse. Passou, então, a viver na expectativa. Desgastava as botas velhas, a roupa interior rasgava-se nas costuras, os elásticos das cuecas rasgavam-se, as meias ganhavam buracos e os seus calcanhares tornavam-se uma rede fininha de fios de nylon, através da qual se via uma pele endurecida. Deixou de guardar mantimentos de reserva para «mais tarde». Os frascos de maionese vazios pediam geleias e doces para o Inverno ou sumos de fruta, em caso de internamento súbito. Mas o Inverno poderia não chegar e o próximo Verão poderia não existir. Era preciso comer o pão até ao fim, até à última migalha, era preciso usar o sabão até à última lasca, que ainda seria útil para lavar a roupa.

Previu uma inundação para o Verão de 1993. Que o gelo haveria de derreter subitamente no Norte e que a água dos oceanos subiria. A Holanda desapareceria sob a água. O mesmo aconteceria com Żuławy. Poderia ser até bem pior à superfície da terra ficariam apenas montes e montanhas.

Nowa Ruda iria salvar-se porque ficava situada no alto. Depois, haveria uma guerra no Próximo Oriente que, no período de um ano, se transformaria numa guerra mundial. E, mais uma vez, os exércitos haveriam de atravessar as planícies pantanosas. A Catedral de Wrocław seria transformada em mesquita. E, mais tarde, no início do ano de 1994, o céu ficaria escuro durante vários dias por causa de explosões nucleares. As pessoas começariam a adoecer. Graças a Deus, nada disso aconteceria em Nowa Ruda.

O próprio Lew publicou este livro com o dinheiro que ganhara como vidente, em 1990, quando, na Polónia, o papel já não era racionado. Esperou três anos pelos primeiros sinais do fim do mundo, mas eles não chegaram, apesar dos frascos vazios e do pão comido até à última côdea ressequida. No Verão de 1993, fez muito calor e ele tomou aquele tempo abrasador como o princípio do fim, mas tudo terminou na hora certa, na altura em que as crianças regressaram à escola, as pessoas começaram a fazer bolos com ameixas e a colher as batatas dos campos. Na cozinha de Lew, o esquentador a gás avariou-se e, como os dias estavam cada vez mais frios e ele precisava de água quente, teve de consertá-lo. Escarafunchando nos bocais da chama do Junkers, teve uma sensação arrepiante de futilidade. Se o mundo estava prestes a acabar, toda a actividade se tornava uma doença.

Todavia, para Lew, o mundo não acabou no dia 14 de Novembro de 1993, durante a grande conjugação de Urano e Neptuno no décimo oitavo grau de Capricórnio. Chegou a essa conclusão certa noite, deitado na banheira — a única maneira eficaz de aquecer todo o corpo rapidamente. Ao final da tarde, ouviu na televisão que uma seita do Uruguai estava à espera do fim do mundo naquele dia. A seguir, o Papa, com o braço direito ao peito num suporte, abençoou o mundo com a mão esquerda e, no boletim meteorológico, alertaram para as tempestades de neve. No fim, apareceu ainda uma locutora cansada que, ao desejar boa-noite, acrescentou de sua lavra algo com sarcasmo evidente:

«Apesar do anúncio pessimista da seita uruguaia, o mundo continua.» Nesse momento, Lew pensou que ainda restavam quarenta e cinco minutos para o final do dia, ou seja, a duração de uma aula na escola. E foi tomar banho.

Estava Lew sentado na banheira, quando a luz se apagou na casa de banho, a televisão se calou e a torneira começou a deitar água gelada. Ficou paralisado de pavor e nem sequer tentou procurar ajuda na escuridão. Pela sua cabeça, galopavam as colunas de algarismos das efemérides e o diagrama sombrio e silencioso do sistema solar. Os canos da casa de banho começaram a troar como trombetas do Juízo Final e o corpo despido de Lew começou a tremer. Pensou, então, em todos os que lhe eram próximos, se bem que fossem apenas parentes afastados, já que outros não tinha. Pensou no que estariam a fazer todos os animais da cidade, cães, gatos, porquinhos-da-índia e hámsters, se acaso também estariam com medo e se os animais continuariam a acompanhar-nos. Se, em todas as casas, haveria de aparecer uma espada incandescente, até mesmo nos décimos primeiros andares dos arranha-céus, e onde é que a terra haveria de se rachar e abrir, se nem sequer havia lugar para estacionar. De repente, na escuridão da casa de banho, viu claramente uma imagem que o fizera tremer quando era criança: mortos a sair da terra, despidos e ensonados, a pestanejar, levando as mãos à cara porque a luz os encandeava; cruzes de pedra a balançar nos cemitérios, campas a afastarem-se das sepulturas. Acima da linha do horizonte, um anjo com o seu belo rosto a contorcer-se de repugnância e ira; em redor da sua cabeça, um furacão enfurecido. Eram estas as imagens nos olhos de Lew e na sua mente.

A casa de banho continuou às escuras.

As paredes tremiam levemente com os rugidos dos canos. Os maxilares de Lew começaram a bater e ele, por fim, ouviu-se a si próprio chocalhar os dentes, mas não de medo. O único sentimento que experimentava era a desilusão. Primeiro, pequena, tal como quando era menino e encontrava debaixo da árvore de Natal, não o desejado cavalinho de baloiço, mas um pijama que a mãe lhe comprara; depois, essa desilusão tornara-se cada vez maior e, por fim, insuportável. Com que então era assim? Com escuridão e o rugido dos canos nas paredes?

O homem que previra o fim do mundo bem podia ter-se enganado no que tocava à data exacta — afinal de contas, ele era um optimista. Queria ser testemunha de tudo, como se fosse ele próprio a desencadear as coisas. Chegou até a lembrar-se de certa conjugação raríssima, em que Neptuno e Urano roçaram um no outro rangendo e chocalhando as suas energias.

Tudo o que agora desejava era contemplar o céu e ver se tinha desaparecido, se os planetas tinham saído das órbitas, se as galáxias aceleradas tinham colidido, se a poeira apocalíptica tinha solidificado a 0.º Kelvin. Cerrou os maxilares trémulos e saiu da água arrefecida.

Nessora, um dos momentos mais incompreensíveis da vida de Lew, a lâmpada nua acendeu-se, a torneira rosnou e jorrou água a ferver e a voz do televisor propagou-se da sala até ele, como se aquele aparelho com milhões de rostos fosse justamente o único ser que tivesse ressuscitado. Surpreendido com o imprevisível rumo dos acontecimentos, Lew ficou paralisado com a perna à beira da banheira, piscando os olhos espantados com a luz. Novelos de vapor condensavam-se no espelho partido. As toalhas desgastadas pelas lavagens continuavam imóveis nos seus ganchos. A garrafa de bolso achatada com a inscrição da firma WARS continuava ali tão desapaixonadamente como dantes.

Lew saiu da banheira, abriu a porta para o corredor e pôs-se à escuta. Alguém andava no patamar das escadas, arrastando as pernas. Na casa do vizinho do andar de cima, fluía uma música monótona e mecânica. Lew atravessou a sala e abriu a janela para a varanda. O seu corpo apreensivo não sentiu o frio. Viu diante de si a cidade, igual à cidade que vira ontem e uma hora. Nos vales, havia luzes acesas e o murmúrio do costume. Mas Lew tinha a impressão de que já nada era como dantes. Naquela vista familiar e perigosa, pressentia falsidade. Fungou o ar como se esperasse encontrar o cheiro a queimado. passados alguns minutos, durante os quais o seu corpo enregelou, compreendeu que o mundo acabara, embora mantivesse as aparências da existência. Era assim o verdadeiro fim do mundo.

Por qualquer razão, as pessoas não conseguem imaginar os fins, não só o fim das coisas grandes, mas também das mais pequenas. É possível que imaginar algo esgote a realidade de alguma forma; talvez a realidade não queira ser imaginada pela mente das pessoas; talvez queira ser livre como um adolescente rebelde e precisamente por isso é sempre diferente daquilo que imaginamos.

A partir daquele dia, Lew começou a viver num mundo que já não existia, que era uma pura ilusão, um sonho do momento, um hábito dos sentidos.

Casa de Dia Casa de Noite
Casa de Dia Casa de Noite créditos: Cavalo de Ferro

E não lhe era nada difícil viver assim; na verdade, aquela vida era mais fácil do que a anterior. Agora, saía para a cidade como quem entra no nevoeiro ou num palco. Fazia caretas às pessoas e ria-se quando, surpreendidas, olhavam para ele. Inclusivamente, dava-se ao luxo de surripiar pequenas coisas nas confeitarias, nada de especial, caso contrário, sentir-se-ia mal consigo próprio. Deixou de cuidar da roupa, apenas acautelando-se para não passar frio. Calçava sapatos diferentes e, quando, certa vez, entornou sem querer óleo sobre o casaco, trocou-o por um cobertor; cortou nele um buraco e passou a usá-lo como poncho. Como atirara para um canto as suas efemérides e outros cálculos, dispunha agora de muito tempo; portanto, sentava-se no parque à beira-rio, olhando para cada pedra, cada parede. Examinava as coisas em busca de sinais de decomposição. Encontrava-os e de que maneira! O rio mudava de cor quase todos os dias. Umas vezes, era castanho, outras, escuro como café e, ainda outras vezes, era rosa como champanhe. As pedras começavam a ganhar rugas. O passadiço esboroava-se e Lew aguardava com impaciência o momento em que os fantasmas das pessoas começassem a cair para a água irreal. Passava pelas bancas do mercado e tirava dos cestos os frutos mais maduros. Alguns vendedores gritavam com ele, outros não. Metia-se com as raparigas jovens que estavam no portão, mais por brincadeira ou, então, para superar o seu medo perante a sedutora feminilidade de saias justas, apesar de não ter vontade de se dar com pessoas que afinal não existiam.

Também contemplava o céu e isso despertava nele nostalgia. O céu tinha todos os dias um aspecto diferente, tal como o rio colorido, pois as estrelas moviam-se caótica e imprevisivelmente. Passava horas e horas à procura de Marte, que não estava no lugar onde devia estar. A Via Láctea tornara-se quase invisível. Sobre o Monte de Anna surgia, às vezes, uma luz clara, mas ele não sabia o que era aquilo. Às vezes, via pessoas, fantasmas de pessoas que também olhavam para o céu, mas que não pareciam preocupadas. Beijavam-se ao luar, embora, a partir daquele dia, fosse difícil prever as fases da Lua. Ela fazia o que queria.

Lew ia dormir e sonhava que não dormia, sonhava que andava pela cidade, tirava das bancas do mercado fruta e observava o rio. Às vezes, agia assim: enfiava um dedo num muro e esgravatava o seu interior quente e decadente. A pedra cedia à ponta do dedo, esboroava-se, recuava ao toque. Ficava um buraco que não era capaz de sarar. Certa vez, viu uma casa murchar à beira-rio. Quis parecer-lhe que secara, que se tornara frágil e indefesa. Afundara sob o seu próprio peso e caíra silenciosamente por terra. Só ficara de pé uma parede, sustentada pelo prédio contíguo. As pessoas-fantasmas não devem ter reparado naquilo. Também evitavam passar por aquele lugar vazio, como se nada ali tivesse existido e no lugar onde a casa estivera tivesse crescido vegetação.

Em tais momentos de triste espanto meditava sobre si próprio: será que existia ou não existia? Lew tocava nas suas mãos e no seu rosto, mas não era capaz de se obrigar a tocar na barriga. Receava que, também ali, a ponta do seu dedo não resistisse à tentação e começasse a esgaravatar um buraco e, então, Lew se perfuraria e a ferida nunca mais sararia, ficando assim para sempre.

Cruzava-se ainda com pessoas cujos rostos lhe pareciam familiares, mas cada vez menos. A vendedora de hortaliças foi substituída por outra, que tinha uma cara indistinta e mais parecia uma couve-flor do que um ser humano. Deixara de ver o director do liceu, o seu vizinho do primeiro andar. Tinha a impressão de que, no seu grande apartamento, morava agora outra pessoa, um tipo liso e viscoso, com uma cara lustrosa, todos os dias escanhoada, sempre com o auscultador do telefone ao ouvido, debitando a sua sabedoria livresca e ganhando todos os concursos da rádio. Também deixara de ver duas meninas, parecidas uma com a outra como duas gotas de água, que, durante anos, brincaram no telhado da garagem. Agora, quando fazia calor, expunham-se ali ao sol mulheres novas e magras, exibindo os seus ventres claros a raios solares acinzentados. Aliás, o Sol já não bronzeava a pele como dantes, mas acinzentava-a, fazendo com que se tornasse encardida como uma saca de juta lavada vezes sem conta.

Esses rostos familiares eram: uma mulher que ele julgara já ter há muito morrido, pois conhecera-a ainda antes da guerra, e um homem novo com os cabelos até aos ombros, um hippy da província, que ele via todos os dias de manhã na ponte, junto à estátua erodida de São Nepomuceno. Atravessava a ponte e cuspia para o rio. Talvez se dirigisse para o trabalho, pois provavelmente havia por ali alguns empregos. Lew ouvia, por exemplo, o barulho da fábrica de Blachobyt atrás da montanha e havia noites em que vinha de um clarão de luz amarela e suja.

«Chora», dizia a si próprio, porque era o que lhe parecia ser mais adequado naquelas circunstâncias, embora, na verdade, não sentisse qualquer tristeza. Ainda assim, às vezes, conseguia senti-la. Estacado no cruzamento da Rua dos Piast e da Rua Podjazdowa, punha-se a chorar, enquanto as carripanas que por ali circulavam não eram capazes de lhe fazer mal.