Mesmo com as regras excecionais para o voto antecipado para as eleições Presidenciais, só ficaram elegíveis para votar aqueles cujo confinamento obrigatório foi declarado pelas respetivas autoridades de saúde até dez dias antes da eleição, 14 de janeiro.

É o estipulado no artigo 3.º da Lei Orgânica n.º 3/2020, que regula o direito de voto antecipado para os eleitores que estejam em confinamento profilático, devido à pandemia da covid-19, em atos eleitorais e referendários em 2021.

Alguns cidadãos apresentaram queixa à Comissão Nacional de Eleições (CNE) por se considerarem privados do seu "direito constitucional de voto", no entanto, como o SAPO24 apurou, a situação não pode ser considerada inconstitucional.

O partido Livre defendeu o alargamento do prazo de inscrição de voto domiciliário nas eleições presidenciais para os eleitores confinados até ao dia 24, alegando que “face aos números que vão sendo divulgados e com os atrasos no reporte de casos, estima-se que sejam mais de 100 mil os cidadãos e cidadãs impedidos de votar”, referem em comunicado.

“Desta forma ninguém seria privado do seu direito constitucional, garantindo-se a votação em condições de segurança para todos os portugueses, confinados ou não”, concluem.

De acordo com os números do boletim desta sexta-feira, há 157.660 casos ativos e as autoridades de saúde têm em vigilância 200.730 contactos.

Apesar de o artigo 49.º da Constituição da República Portuguesa ressalvar o direito ao sufrágio de todos os cidadãos, declarando-o como um dever cívico, e o direito de participação política estar previsto no artigo 109.º, neste momento de pandemia, estes direitos entram em conflito com o artigo 64.º que visa o direito à Saúde.

“Havendo um conflito entre direitos, estes têm de ser comprimidos na proporção daquilo que é razoável que cada um deles seja comprimido, ou seja na ponderação dos valores que cada um representa”, explicou ao SAPO24 a advogada Ana Luz.

Os eleitores cujo isolamento profilático foi declarado entre os dias 15 e 24 de janeiro, encontram-se na situação descrita por Ana Luz – veem o seu direito de participação política comprimido pelo direito à saúde, ambos consagrados na Constituição.

“O artigo 19.º redefine as situações do estado de emergência e do estado de calamidade e diz que os direitos podem ser suspensos ou condicionados em função de um interesse maior e, aqui, o interesse maior é o que está no ponto 2 no segmento final. Temos de conjugar isto com o artigo 64.º, que refere que todos têm direito à proteção da saúde e ao dever de a defender e promover”.

Também Pedro Fernández Sánchez, professor da Faculdade de Direito de Lisboa e sócio da Sociedade de Advogados Sérvulo e Associados, concordou que o direito de participação política tem de ser sempre ponderado com outros fundamentais e não menos relevantes do que este.

Em suma o direito da proteção à saúde (artigo 64.º) deve ser ponderado com o direito de sufrágio, previsto no artigo 49.º.

Porque é que o direito à saúde prevalece?

Temos direitos fundamentais que não podem ser restringidos de modo algum, mesmo em caso de estado de sítio ou estado de emergência. Entre os direitos considerados prioritários pela Constituição, nomeia Pedro Sánchez, estão, “obviamente, o direito à vida e à integridade física”.

“Além desses direitos, há outros considerados prioritários, como são os direitos do foro criminal e os direitos de natureza religiosa”, acrescenta, explicando que não existe a mesma proteção constitucional no caso de um direito de participação política.

Segundo o professor, embora a Constituição vise uma norma geral de participação democrática, esta precisa de ser concretizada por regras específicas que determinem como a respetiva participação deve ser feita.

“Uma coisa é enunciar de forma genérica que os cidadãos têm um certo direito; outra é dizer como é que o direito vai ser exercido. Para isso precisamos de mecanismos específicos através da organização de atos eleitorais e essa preparação obriga a compatibilizar com outros direitos fundamentais”, detalha Pedro Sánchez.

Assim, se “o exercício do direito de natureza política coloca em risco outros direitos fundamentais, como é o caso do direito à saúde, então o direito de participação política não tem obrigatoriamente que prevalecer”.

Neste sentido, compreende-se que as autoridades determinem que o exercício do direito de voto seja submetido a condições restritivas, mais exigentes, por forma a não colocar em perigo a saúde pública.

Além disso, o direito à saúde não resulta apenas da necessidade de o Estado respeitar a saúde dos cidadãos e não fazer nada que a prejudique – o Estado tem também o dever de adotar atitudes ativas para a proteger, tais como a recolha de votos em lares de idosos ou medidas como o voto antecipado em mobilidade ou confinamento, por forma a garantir que mais cidadãos vejam dois direitos constitucionais concretizados, o direito à saúde e o direito de sufrágio.

Para o professor, impedir o direito de participação política seria tão inconstitucional como a medida de encerramento das escolas.

Porque não é inconstitucional?

“A Constituição também garante o direito ao ensino e garante a liberdade de aprender e ensinar. Se lêssemos só esse artigo a que conclusão chegávamos? Que o Governo não podia ter determinado a suspensão das aulas e ao fazê-lo estaria a violar a Constituição num direito fundamental. Mas ninguém diz isso e porquê? Porque esse direito, mais uma vez, tem de ser compatibilizado com outros direitos relevantes como o tal direito à saúde e o próprio direito à vida”, explica o profissional.

Tendo em conta que se trata de um vírus que ameaça a vida, além de visar o direito à saúde, Pedro Sánchez defende que também está em causa “o direito à vida, que está no artigo 24.º, e ainda o direito à integridade física que está no artigo 25.º”.

O Estado tem de promover um conjunto relevante de direitos que justifiquem, na sua opinião, a restrição de outros. Esta situação verifica-se atualmente em relação aos direitos de natureza cultural – tendo sido suspensos os eventos culturais –, os direitos ao ensino – como aconteceu com a suspensão que foi decretada esta manhã – e outros direitos de natureza política.

Porque não adiar as eleições?

Há quem tivesse sugerido a possibilidade de se adiar a data das eleições. Há, porém, um problema: a Constituição fixa um intervalo de datas muito limitado para a realização de eleições presidenciais.

“Imagine que se colocava a hipótese de adiar as eleições para que os cidadãos votassem... Não conseguiríamos adiar pelo tempo necessário para eliminar o perigo para a saúde pública”, sugere Pedro Sánchez.

Assim, “ponderando o direito de participação num ato eleitoral e o direito à saúde pública, a solução que foi adotada foi a melhor possível para tentar compatibilizar os dois. No fundo, para permitir que o maior número possível de cidadãos exercesse os seus direitos”.

Apesar de estarmos em contexto pandémico desde março do ano passado e de se saber que haveria eleições, as várias regras excecionais só foram alvo de um processo legislativo no Parlamento em outubro do ano passado. Também nunca antes um Presidente tinha deixado chegar ao fim o prazo estipulado pela lei para marcação das presidenciais – até 60 dias antes do ato eleitoral.

Em situações em que os direitos fundamentais entrem em conflito, o direito à vida prevalecerá sempre. No contexto pandémico em que nos encontramos, mesmo tendo o Governo adotado medidas como o voto antecipado em mobilidade e confinamento não foi possível assegurar o direito de sufrágio a todos os eleitores. A pandemia veio tornar-se em mais um fator a contribuir para a abstenção, num país que nas últimas eleições presidenciais, em 2016, registou uma taxa de 51,3%, segundo a Secretaria – Geral do Ministério da Administração Interna (SIGMAI).

"O Sistema de Informação e Gestão do Recenseamento Eleitoral é um passo indispensável que pode permitir, no futuro, o voto em mobilidade", a solução para este problema poderia passar por aqui, mas como refere o Portal do eleitor: "atualmente não é possível votar pela Internet, por falta de habilitação legal".

[Notícia atualizada às 10:35 de 23/01]