1.Palavras e palavrões

Os cientistas de cada disciplina costumam ter um vocabulário especializado, utilíssimo para conseguirem comunicar entre si, mas que pode ser uma barreira quando é necessário falar do que sabem com outras pessoas — que até podem ser cientistas do departamento ao lado. Em muitos casos, a comunicação de ciência aproxima-se do trabalho de um tradutor: temos de usar outras palavras para chegar a mais ouvidos.

Foi para conversar dessa tensão entre as palavras de todos e as palavras dos cientistas que a Cristina Soares e eu criámos um podcast, produzido pela MadreMedia, com o nome Palavrões da Ciência. A Cristina é especialista em comunicação de ciência; já eu costumo olhar para as histórias das palavras. Assim, em cada episódio, falamos de palavras comuns e dos palavrões de cada área — mas, confesso, esta ideia é também uma desculpa para levar os convidados a revelar ao mundo o que andam a investigar.

Já gravámos oito conversas (uma já está no ar — ou melhor, na rede). Ficámos a saber mais sobre a saúde dos morcegos, sobre as diferenças culturais dos ovos, sobre neurónios criados a partir de dentes para tratar doenças, sobre árvores a conversar, sobre o mar e o que lá está escondido, entre tantos outros fios de conversas.

O primeiro convidado foi Rogério Martins, investigador da Universidade Nova e apresentador do programa Isto É Matemática. Os podcasts são uma maneira de conversar, de trocar ideias — é há muito que dizemos ali, numa conversa livre, que talvez não disséssemos de outra maneira. Por exemplo, perguntámos ao Rogério por que razão foi parar a matemática. A resposta talvez seja surpreendente...

2.Uma palavra com pessoa dentro

No primeiro episódio, coube-me dar o pontapé de saída, olhando para a origem de três palavras do dia-a-dia (o palavrão ficou a cargo da Cristina e do Rogério). Uma das palavras que escolhi foi «algarismo». Aquela sílaba inicial denuncia parte da história: a palavra foi-nos trazida pelo árabe, mas teve origem no nome do matemático persa Al-Khwarizmi, que viveu entre os séculos XVIII e IX.

Al-Khwarizmi foi importantíssimo para o desenvolvimento da matemática; uma das suas principais contribuições foi a divulgação da ideia de usar a posição de cada algarismo (lá está...) para marcar o seu valor relativo. Assim, o algarismo 1 no número 100 não representa uma unidade, mas sim uma centena — esta ideia não só permite usar um número limitado de símbolos para representar qualquer número, como ajuda a fazer contas com muito mais facilidade do que noutros sistemas (como a numeração romana, por exemplo).

Note-se: Al-Khwarizmi não inventou estas forma de representar os números. Ajudou, isso sim, a divulgá-la. Uma ideia útil tem de ser inventada, mas se nada for feito para a espalhar, desaparece. É também por isso que conversar com investigadores é tão importante. É numa constante conversa que as ideias são criticadas, afinadas, melhoradas e aplicadas.

«Algarismo» é apenas uma de muitas palavras de origem persa que usamos no dia-a-dia. A nossa língua tem materiais de muitas paragens — mostra bem que estamos numa ponta do mundo antigo, onde vinham parar palavras de muitos povos. Conhecer estas histórias é difícil, porque as palavras viajam primeiro de boca a boca e só depois pela escrita. É difícil reconstruir as viagens — mas aquilo que entrevemos é suficientemente interessante para nos levar a arriscar.

3.Língua e matemática

Nestas conversas pelos milénios fora, as palavras vão ganhando novos sentidos, vão fugindo da origem, vão desaparecendo e reaparecendo. A linguagem humana é extraordinariamente complexa e difícil de apanhar. Uma palavra pode ter um sentido ligeiramente diferente em cada conversa. É também disto que se alimenta a arte e a criatividade humana (foi um dos temas do episódio).

A matemática é, entre muitas outras coisas, uma forma de domar esta capacidade linguística dos seres humanos, de criar definições rigorosas e ferramentas conceptuais que nos ajudem a explorar abstracções e a reconhecer padrões que a linguagem do dia-a-dia ignora, distraída como está com as nossas dores e as nossas histórias. Se as línguas humanas são flexíveis, cheias de duplos, triplos, quádruplos sentidos, com piscares de olhos em cada pausa, concretas e sujas, a matemática obriga-se a usar definições rigorosas e símbolos precisos que nos permitam explorar a abstracção.

Dito isto, não me parece que a matemática exista em oposição à linguagem humana. É, provavelmente, uma das mais poderosas manifestações dessa mesma linguagem — se virmos bem, tal como a literatura, a matemática é fruto da imaginação humana e expressa-se em símbolos e palavras. Os números são, antes de mais, palavras — e são palavras particularmente úteis para conhecer o mundo que nos rodeia.

Fica o convite: oiça o primeiro episódio dos Palavrões da Ciência. O nosso convidado usa com mestria a língua portuguesa para nos entreter com a matemática.

Oiça o primeiro episódio em: Spotify | Apple Podcasts

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Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. Apresenta, com Cristina Soares, o programa Palavrões da Ciência.