A festa começava aqui, nas Fontainhas. Muito antes de a ponte do Infante ter rasgado caminho no topo da calçada que as carquejeiras moldaram aos pés, era neste lugar, sobranceiro ao rio, do lado este da cidade do Porto, que a tradição do santo popular era mais aguerrida.
A cascata de São João Batista ali está, no fontanário, debaixo das árvores, encravada entre o sol que faísca na calçada e as sirenes dos poucos carrosséis que à volta vão apitando e entoando canções da ocasião. Passam pouco das três da tarde de São João, o que significa que faltam menos de três horas para, hoje, em tempo de pandemia, acabar a festa de São João.
Muito antes da covid-19, a festa arrancava por aqui e ia acabar já nas fogueiras da Foz. Não foi a pandemia a acabar com essa tradição, nesse caso foi o tempo que se encarregou de deixar as brasas apenas nos assadouras, que enchem a terra de pontos cintilantes, tal como os balões enchem o céu de estrelas flutuantes.
Gomes já faz isto há muitos anos. Nasceu no Porto e no Porto vive. Sempre assou muitas sardinhas — já os pais o faziam, fazem agora com ela as filhas. Mas hoje "isto nem parece noitada, não é? Às 18 horas já não podemos trabalhar... Mas pronto, fica para amanhã", espera a mulher que conversa à sombra, junto a um monte de pimentos de verde profundo e de sardinhas que brilham prateadas.
"Não percebo é porque nós [dos restaurantes no interior do recinto], com isto aqui vedado, com seguranças a controlar quem entra e quem sai, não podemos usar o mesmo horário dos restaurantes lá fora", questiona Adelaide.
"Lá fora" é como quem diz: o recinto do São João nas Fontainhas está de um lado, cinco metros à frente; do outro lado da vedação de arame está a esplanada de um restaurante que, como conta Alice, "são fechados e vão trabalhar até mais tarde", podendo servir jantares.
"Nós às 17 horas já não deixam entrar ninguém — não sei porquê!", questiona. "Olhe", diz, apontando para a esplanada que está encostada ao muro que está em cima do Douro, "temos tudo ao ar livre, conforme vê, as mesas aí ao ar livre, até eu estou a trabalhar ao ar livre. Isto é muito diferente dos restaurantes e as pessoas aqui estão muito mais seguras", defende.
"Temos de aceitar — não sei porquê, mas está bem. Eu vou-me embora e isto fica aqui tudo aberto! Estas esplanadas aqui todas fica tudo aberto. Vamos para os Poveiros, vemos lá aquela gente toda junta e a irem buscar bebidas e nas esplanadas. Só nós aqui é que não podemos trabalhar, porque a segurança não deixa entrar ninguém a partir das 17h", aponta.
"Além da tradição — que o São João é aqui nas Fontainhas, a cascata está ali! Não é na Boavista, não é lá em Lordelo do Ouro, não é nada. É aqui nas Fontainhas! Não sei porque nós pelo menos não havíamos de ter mais uma horinha ou duas de trabalho", frisa.
Ainda assim, "fez-se qualquer coisinha ao almoço. Agora aos lanches não me acredito, que as pessoas trabalham, não é? Algumas vão arranjar maneira de sair um bocadinho mais cedo, mas vão andar a correr — e eu não sei para quê".
"Só podem entrar até às 17h, nós só podemos servir até às 18h — e depois acabou. É arrumar e preparar as coisas para amanhã". Mas, lá está: "é melhor do que nada, porque o ano passado estive parada", acrescenta Adelaide.
Estava parada desde o São Martinho de Penafiel em 2019. Foi ano e meio de espera para agora estar nesta espécie de festa domesticada. Melhor dizendo, "isto não é uma festa: é um evento", conta lá mais à sombra, Vera, sublinhando o caráter regrado do espaço.
Vera está na cabine de um carrossel. Vigia o tráfego de barcos, carros, motos, helicópteros e animais que vai rodando, rodando, sem sair do lugar nesta rotunda que finge ser a volta ao mundo. É a primeira vez que aqui está a trabalhar. O patrão está na Boavista, nessa outra — e grande — rotunda, onde está outro dos pólos desta festa tripartida.
"É melhor do que estar em casa, isso é certo", conta a jovem. "Mas tem vindo pouca gente. Muitos ainda devem ter medo de sair de casa."
"E foi este presidente, que foi corajoso e bateu o pé à Direção-Geral da Saúde e pronto", adianta Adelaide. O São João assinalado assim desta maneira resulta da vontade quer da autarquia de Rui Moreira, quer da de Eduardo Vítor Rodrigues, que, em Vila Nova de Gaia, do outro lado do Douro, criou também espaços com divertimentos para assinalar o São João.
Segundo a câmara municipal do Porto, os três pontos de diversão "seguem um rigoroso plano aprovado pela Direção-Geral da Saúde. Desde a vedação dos locais, ao álcool-gel e à medição de temperatura à entrada, a lotação do espaço, o policiamento e a limpeza sistemática dos equipamentos, estão garantidos", diz o gabinete de comunicação, num comunicado enviado à imprensa.
Com a passagem da cidade à mais avançada fase de desconfinamento, o horário destes espaços foi mesmo alargado — exceto para esta quarta-feira — das 12 às 23 horas, e às sextas-feiras e sábados das 12 às 24 horas.
A câmara apoia, mas ainda assim os comerciantes gastaram e investiram nas Infraestruturas de apoio. "Gastamos dinheiro aqui nestas vedações, na segurança, nas casas de banho — a câmara já teve despesa connosco, com a PSP, só que eles vêm aí é para não nos deixar trabalhar..."
"Mas se tem de ser...", tem de ser. Em noitada de São João, seria de esperar festa. "Até agora tem sido um bocadinho fraquinho — incomparável com os anos anteriores à covid-19", acrescenta Vera. "Isso não, nunca na vida".
"Nós temos as condições todas: temos álcool-gel, temos as distâncias todas diretinhas — tanto é que não podemos deixar andar muitos meninos juntos, optamos sempre por ter um em cada carro; mas mesmo as pessoas respeitam, as mães, os pais respeitam muito".
"Tem-se trabalhado", diz Francisco Alves, mais conhecido por Lavrador. "Não é o normal dos outros anos, não pode ser, porque isto mete muito poucochinha gente aqui. Porque também não há nada que puxe o pessoal: quem vem aqui é para comer sardinhas e farturas; divertimentos quase não há nada e o pessoal não vem; se tivesse mais divertimentos e coisas que puxassem as pessoas, talvez fosse melhor."
"E logo hoje que é a noitada de São João temos de fechar às 18h. Isso arrasou connosco — mas, epá... Se não houvesse nada era pior. Havendo isto, sempre ajuda a malta que vem aqui a ganhar algum dinheiro que já há ano e meio que não ganhávamos um tostão".
"Oxalá que venham. Que a sardinha é fresca, é boa e esperamos cá pelos clientes", acrescenta Francisco.
"Andamos de festa em festa, daqui ia para outras — mas como está tudo cancelado, em vez de ir para outra vou para casa outra vez. É a vida que temos", lamenta o proprietário do Lavrador. Ainda assim, o negócio compensa. Afinal, "se não compensasse, não estava aqui. Mas este ano está mais fraco".
"A nossa perspetiva é amanhã", diz Vera, com esperança. Amanhã é feriado no Porto e à roda dele. "Vamos ver se fazemos mais alguma coisa amanhã, no dia de São João mesmo".
"Isto aqui está tudo tão sossegado — lá os senhores de Lisboa é que têm a mania! E se fizessem em Lisboa o que mandaram fazer em Ovar [uma cerca sanitária], isto se calhar não havia assim tantos casos, porque o problema vem lá de Lisboa e do Vale do Tejo", aponta Adelaide. "Nós aqui no Norte não temos nada a ver com isso", defende.
"No Porto ninguém está doente: aqui há muita saúde e recomenda-se — os senhores de Lisboa que se deixem estar onde estão, que eles é que trazem o vírus cá para baixo — ou cá para cima, eu já nem me sei situar bem." "Só que olhe... Aqui é só até às 18h", lamenta Adelaide.
"Isto é lanche — quem é que vem lanchar sardinhas?"
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