Plano de Nascimento. É esta a designação utilizada pelo PS no documento do projeto de lei que visa estabelecer “um conjunto de princípios, direitos e deveres que são aplicáveis no domínio da prestação de cuidados de saúde em matéria de pré conceção, transição para a maternidade e a paternidade, parto e nascimento, puerpério e exercício da parentalidade”, pode ler-se.

A preocupação, contudo, não vem de agora. Na Europa já existem leis sobre estes assuntos e Portugal está agora a tentar alinhar-se. Mas não é só falar de preferências. É também pensar mais além, na experiência que vai ficar na memória da mulher. Quem o explica ao SAPO24 é Sara do Vale, presidente da Associação Gravidez e Parto.

“Saíram a 15 de fevereiro as últimas recomendações atualizadas da Organização Mundial de Saúde [OMS] para os cuidados no partos. As recomendações começam exatamente por falar sobre a importância da experiência da mulher, porque está mais que provado, por evidências científicas e vários estudos, que a forma como a mulher é tratada durante o parto tem consequências muito fortes na sua vida — é uma coisa de que a mulher se vai lembrar para a vida toda”, começa por dizer.

A nível mundial — e Portugal tem acompanhado um pouco essa tendência — há agora uma tentativa de se voltar ao parto fisiológico, aquele que não é induzido e acontece naturalmente. “É aquele que se tem vindo a comprovar ser mais seguro, todas as drogas e intervenções que existem têm o seu risco. Cerca de 15% das mulheres terão uma gravidez de risco e precisarão dessas intervenções, mas aplicá-las a todas as mulheres está a criar mais problemas do que benefícios”, diz Sara.

Em Portugal, contudo, os números ainda mostram que há muita intervenção nos partos. Por exemplo, no que diz respeito às cesarianas, “a OMS recomenda que não passe os 10 a 15% e no nosso país é de 30% e ainda há sítios onde é mais”. Face a isto, documentos como o do PS podem vir a fazer a diferença, defende a diretora da associação.

“Nós temos das taxas de mortalidade infantil mais baixas da Europa, mas a fasquia não pode ser só uma mãe e um bebé vivos. Temos também de querer uma mãe e um bebé saudáveis e uma legislação que se estabelece com todas as vantagens. As intervenções no parto têm realmente consequências graves para a saúde da mãe e para a saúde do bebé e o Plano de Parto vem nesse sentido de poder discutir e também abrir o diálogo. No fundo, os profissionais e as mulheres querem a mesma coisa: um bebé saudável e um parto que corre bem. É unir esforços para que nos possamos focar nessa questão. São coisas que já se fazem na Europa há muito tempo e que está na hora de Portugal se alinhar também”, defende.

Olhando para a Europa, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem ou a da Biomedicina “têm vários pontos que focam a importância da escolha da mulher na sua experiência”, o que também é reforçado pela OMS. Todavia, a realidade por vezes é diferente. “O que acontece é que, infelizmente, pela forma como as coisas sempre foram feitas e pela resistência de alguns lobbies profissionais, as escolhas das mulheres não estão a ser respeitadas. Há muitos casos de violência obstétrica, há muitas mulheres que mudam inclusive o seu projeto de vida: gostariam de ter mais filhos e não o fazem pela experiência de parto negativa”.

É também para mudar esta situação que foi entregue no Parlamento, a 15 de maio, a Petição pelo fim da Violência Obstétrica nos blocos de parto dos hospitais portugueses, que visa, entre outros aspetos, "que todos os profissionais de saúde que se aproveitem da situação frágil da mulher para a humilhar e/ou fazer valer as suas ideias ou crenças, desrespeitando o consentimento informado e a vontade da parturiente, sejam irrepreensivelmente responsabilizados pelos seus atos".

Estas situações estão também presentes no Relatório Experiências de Parto em Portugal 2012-2015, publicado pela Associação Gravidez e Parto. “O inquérito foi respondido por mais de 3000 mulheres em todo o país e demonstra, de facto, que há coisas muito aquém do que deviam ser. Também há histórias muito felizes mas, no fim, como se vê por alguns relatos de mulheres, há histórias muito violentas e tristes”, refere Sara.

Um dos casos que tem gerado mais controvérsia é relativo à taxa de episiotomia, o corte que se faz para abrir a vagina para o bebé ter mais espaço. “A OMS dizia que não devia ultrapassar os 10%, agora veio retirar isso e diz que não faz sentido ser feito sob nenhum pretexto e, em Portugal, temos uma taxa de episiotomia de mais de 70%. Somos só nós e o Chipre em toda a Europa. Nós e Espanha tínhamos uma taxa de 80% há uns anos e três anos depois Espanha baixou para 40% e nós para 70%. E é uma violência! Pode causar incontinência quando a mulher for mais idosa, é uma recuperação muito mais dolorosa e o velho lema do ‘vale mais cortar do que rasgar’ está mais do que ultrapassado. E infelizmente poucas mulheres em Portugal escapam a isso”, explica a diretora da associação.

O plano A, B e C...

É para mudar isso que o Plano de Nascimento deve constar da lei. Segundo o documento apresentado pelo PS, este pode ser apresentado "preferencialmente até às 36 semanas de gestação" e deve ser "discutido com a equipa da unidade de saúde onde se prevê que o parto venha a ocorrer, envolvendo os profissionais de saúde, a grávida ou o casal". Este documento deve ser elaborado pela grávida ou pelo casal num modelo a definir pela Direção-Geral da Saúde.

Sara do Vale explica que “o plano de parto, por definição, é um documento que é pessoal e intransmissível. É um documento que não é uma lista de regras escritas na pedra, ao estilo ‘é para ser assim, é para ser assim, e pronto’. Uma das coisas que nós encorajamos — e este trabalho deve ser feito com a mulher — é um plano de preferências. Claro que podem ou não acontecer, porque o parto, pela sua natureza imprevisível, pode mudar. Aliás, costumamos dizer que é importante fazer o plano A, o plano B, o plano C, porque não é na altura em que as coisas podem correr mal que a mulher tem de se confrontar com isso ou a equipa ficar nervosa porque aquela mulher tem na cabeça que há-de ser assim. Tudo isso é muito importante. O processo da construção do plano de parto é talvez mais importante do que o plano em si”.

Contudo, se a equipa médica considerar estar em causa "a segurança da mãe, do feto ou do recém-nascido", o Plano de Nascimento não será aplicado, uma vez que deve "englobar procedimentos para os quais a equipa de saúde considere ter condições ou experiência para os realizar com segurança”, lê-se no projeto de lei.

Mais do que ser um documento escrito que pode ter utilidade no momento do parto, este Plano é uma oportunidade de diálogo entre o casal. “Se calhar há coisas em que nunca pensaram, sobre intervenções que podem acontecer, e em vez de chegarem ao parto assim muito verdinhos, sem saberem nada, já há uma reflexão prévia”, afirma Sara. Além disso, é também uma forma de se perceber o que esperar da equipa médica. “Há uma discussão com a equipa, também para que percebam a filosofia de vida daquela mulher, as suas expectativas. Há toda uma série de questões e pormenores que podem ajudar a mulher a ficar mais descansada relativamente ao parto, aquele bicho desconhecido. Há aquele ‘quem é que eu vou apanhar’ e uma resposta que nos chega muito é que depende da equipa. ‘Como é que é parir neste hospital?’, ‘Ai, depende da equipa. Se apanhares uma equipa mais humanizada é mais fácil; se não…’. E não pode ser assim! E isto também é uma forma de acabar com as disparidades no país, não é tudo igual em todo o lado”.

Deixar a natureza acontecer. Agora é esta a tendência dos partos

Cada vez mais se ouve falar de partos que recorrem a métodos não farmacológicos de alívio da dor, ou seja, partos onde não são utilizados quaisquer medicamentos, como por exemplo a habitual administração da epidural. Desde massagens de relaxamento, utilização da água, bola de pilates ou música, tudo conta.

“Cada caso é um caso. Mas, à partida, se olharmos para a população portuguesa, que é maioritariamente saudável e bastante homogénea, podemos afirmar que o parto mais seguro é o parto fisiológico. Normalmente as drogas para induzir fazem com que as dores sejam muito mais fortes e a mulher vai pedir a epidural muito mais facilmente e aumenta as hipóteses de o bebé entrar em sofrimento e o parto ser instrumentado. À partida, deixar começar o parto naturalmente, deixar a mulher deambular, para poder lidar com a dor de outra forma, permitir o acompanhamento de uma doula [assistente de parto], métodos não farmacológicos de alívio da dor, posição vertical para a expulsão… Tudo isso ajuda e há imensos benefícios para o bebé”, defende Sara do Vale. No fundo, “é como se estivéssemos a redescobrir tudo o que a natureza já nos disse que é mais seguro”.

Alguns hospitais “encorajam mais estas técnicas do que outras”. No entanto, há a tendência de começar a adotar pelo menos alguns dos métodos não farmacológicos. “Acho que no geral podemos dizer que todos os hospitais têm uma bola de pilates. Mas se calhar nem todos têm um CTG wireless [cardiotocografia], que permita à mulher mover-se livremente, por exemplo. Mas no geral as mulheres têm acesso livre ao chuveiro, o que também ajuda; às massagens, permitindo à mulher que seja acompanhada por uma doula que a apoie além do marido. E também há casos em que a própria mulher pode levar os seus fones, com a sua música, pode levar uma luzinha, aroma-terapia. Isso também depende de o hospital ter a possibilidade de acolher esses pedidos. Já vai acontecendo! Em relação à imersão durante o trabalho de parto, só na Póvoa de Varzim e em Vila do Conde é que tem essa possibilidade. Não é parto na água, mas a mulher pode ir para dentro de água durante a dilatação, o que ajuda imenso”, exemplifica.

O projeto de lei apresentado pelo PS refere que os serviços de saúde devem assegurar estes métodos “de acordo com as preferências da mulher grávida e a sua situação clínica”, bem como os farmacológicos “de acordo com as condições clínicas da parturiente e mediante seu pedido expresso, conhecedora das vantagens e desvantagens do respetivo uso”.

No seio da comunidade médica as opiniões são muitas. Contudo, há sempre um ponto em comum: o mais importante é o bem-estar da mãe e do bebé.

Ao SAPO24, Ana Fonseca, médica obstetra no Hospital Soerad em Torres Vedras, refere que tanto os partos fisiológicos como aqueles em que há intervenção médica são justificáveis, sendo que "é preciso é haver condições para que corra pelo melhor".

Além disso, a obstetra reforça que "as pessoas têm de saber o que gostariam, e essa parte é o diálogo com o médico. Primeiro quer-se tudo 'zen', mas depois não se suporta a mínima dor e pede-se a epidural. Há pessoas que conseguem acreditar e fazer, há outras que não", explica.

Contudo, a intervenção ou não no parto é também uma questão de responsabilidade médica. "O parto não é aquilo que as pessoas acham que é, como uma festa do casamento. Aí podem programar, podem pôr um vestido diferente se fizer sol ou chuva. Mas no parto, a certa altura, há uma responsabilidade maior e a própria grávida não tem esse saber", diz.

"Em Portugal o que se passa é que a responsabilidade [quando algo corre mal] é sempre dos médicos. O que se vê na prática é achar que todas as observações são incómodas, que tudo o que é 'agressivo' é invasão. Mas nós não temos a educação da Inglaterra, em que as pessoas têm essa responsabilidade [sobre o parto] e os próprios pais, se o bebé nascer mal, sabem que têm essa responsabilidade — assinam um papel e é mesmo seguido tudo como os pais querem e o médico não tem, mais tarde, de assumir nada. Aqui não. Quer-se tudo ao ar livre, tudo 'zen', mas há cada vez mais responsabilidade da obstetrícia".

Neste sentido, e falando dos métodos não farmacológicos, a médica salienta que "uma coisa é a teoria, outra é a prática", pelo que cada caso é um caso. E tudo tem consequências, seja à base de medicamentos ou não. "Tudo o que seja para tirar a dor, tudo bem. Mas o quê que tem para tirar a dor? É a bola [de pilates]? É a água, as piscinas? Higienicamente o que é isso? É voltar um bocadinho ao antigamente. Dentro de água não tem CTG. Pode não ser preciso, mas e se for? As mães podem até voltar a dar à luz em casa, mas a responsabilidade não pode ser do obstetra".

Já sobre o Plano de Nascimento, a obstetra reforça que nem tudo pode ser planeado. As hipóteses estão todas em aberto porque um parto é sempre inesquecível, mas também imprevisível.