Ninguém aprecia tão bem o valor da memória como os que sabem que está a desaparecer. A memória, especialmente a coletiva, é um património imaterial de valor incalculável, um museu vivo cuja conservação requer um trabalho altruísta, muitas vezes ingrato e quase sempre solitário.
Xavier Rodríguez sabe isso bem. É um homem jovem, de gargalhada pronta, natural da fronteiriça aldeia galega de As Neves (Pontevedra, Espanha), que no seu tempo livre desce às águas do Minho para absorver os segredos da arte milenar da pesca com ‘masoira’.
Nesta arte os detalhes são apenas conhecidos por um punhado de idosos de ambos os lados do rio, uma fronteira natural que separa política e administrativamente a Galiza do Norte de Portugal, mas também, e sobretudo, a artéria que durante séculos ligou ambas as margens e o seu povo.
"Há 25 anos que mantemos a cultura galega e a cultura do Norte de Portugal, ou seja, o minhoto. É uma cultura comum", defende Xerardo Feijóo, antropólogo e membro da Associação Cultural e Pedagógica “Ponte...nas Ondas!", uma das 176 entidades consultivas acreditadas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) em todo o mundo e a única na Galiza.
"Ponte...nas Ondas!” estuda o património imaterial transfronteiriço e participa no projeto de cooperação “Smart Minho”, liderado pela Câmara Municipal de Pontevedra e cofinanciado em 75% pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER).
A iniciativa "Los tesoros humanos vivos del río Miño Transfronterizo" ("Os tesouros humanos vivos do rio Minho", em português) tenta documentar, para evitar a sua perda, a memória cultural galego-portuguesa acumulada durante séculos e que agora apenas reside na cabeça de uns poucos idosos.
Esta iniciativa encontrou um aliado em Xavier, que não só desistiu de seguir os passos de muitos outros, que procuravam na emigração uma válvula de escape ao desemprego e à falta de horizonte vital, como também é companhia assídua dos "tesouros humanos vivos", com a esperança de eventualmente se tornar num deles.
"Parece-me uma riqueza e não quero que se perca", afirma Xavier, que por esta altura já é um livro aberto sobre a pesca da lampreia com ‘masoira’ e sobre as pesqueiras ou pestos.
As pesqueiras, explica, são formações pedregosas, possivelmente construídas pelos romanos há cerca de 2.000 anos, que entram estrategicamente pela água naquelas zonas onde as lampreias têm menos possibilidades de as contornar. É aí que são colocadas as ‘masoiras’, um aparelho de pesca artesanal que consiste numa rede em forma de funil e que se estende debaixo das águas com uma boia e um peso, com uma grande boca aberta com uma armação de metal pela qual passam os peixes.
As pesqueiras são propriedade privada, mas também património cultural, explica José Manuel Camiña, um desses "tesouros humanos vivos" cujo saber é absorvido por Xavier.
Apesar dos seus 70 anos, José Manuel desce pelas encostas íngremes que conduzem ao Minho como se fosse um jovem. E ali, o seu galego fronteiriço e lusitano torna-se nostálgico com a canção de embalar do Minho que recorda outros tempos, não tão antigos, em que as pesqueiras davam de comer a uma família inteira. Foi um tempo, diz, em que se pescava de tudo. Também gulas, que se “utilizava para adubo" ou para alimentar as galinhas. "Agora, a pouca que há vai para o Japão, é um negócio", lamenta.
É por isso que a arte de pescar com ‘masoira’, hoje, "é artesanato", diz José Manuel: "Quase ninguém a pratica, os jovens não querem saber porque ela não dá. Antes, as pessoas dedicavam-se a fazer redes porque o rio dava muito e sustentava a família. Agora é um hobby e uma perda de tempo”. E mostra a rede.
"Isto agora por menos de 500 ou 600 euros eles não te fazem". Cada rede é feita à medida, em função do tamanho da pesqueira. Isto está feito malha a malha e depois não se desconta na vida", acrescenta.
Estes não são os únicos obstáculos que esta arte milenar enfrenta para tentar contornar a sua própria extinção, pensa Xavier, que fala de excesso de exploração e alterações climáticas: "Além disso, um grande problema são as cascatas que foram construídas rio acima, que variam muito o seu leito. Portanto, ao mesmo tempo que é mau para a pesca, é mau para a própria reprodução da lampreia, porque quando desova, ao baixar o rio, os pássaros, os corvos-marinhos, comem as crias".
Depois, há a hiper-regulamentação e a burocracia, que José Manuel critica amargamente: licenças de pesca emitidas pelo Comando Marítimo do Minho, taxas, controlos rigorosos ao tamanho das redes, restrições à reparação das pesqueiras e multas elevadas pelo incumprimento da regulamentação, tornando deficitária uma atividade que nos seus bons tempos permitiu aos que a praticavam apanhar até 40 ou 50 lampreias numa só noite.
Tudo isso é história ou estaria a um palmo de o ser se não fossem pessoas como Xavier: "Enquanto viver vou tentar não perder os meus costumes e gostaria, quando for mais velho, de fazer como eles fazem, que estão muito agradecidos de que a gente jovem esteja interessada no tema. E espero que um dia eu possa ensinar estas artes, que são, afinal de contas, costumes. Realmente, antes, as pessoas faziam-no para comer, por necessidade, e agora fazem-no por tradição, não por outra coisa”.
Felizmente para os conservacionistas deste património imaterial, a relação que Xavier e José Manuel mantêm com o rio e as pesqueiras é reproduzida do outro lado do Minho, porque, como explica Xerardo Feijóo, lá "existem as mesmas pesqueiras, exatamente como aqui, com pessoas que conhecem e partilham os mesmos conhecimentos sobre as artes do rio".
Nesse outro lado, em território português, sobe-se desde o vale junto ao rio por estreitas estradas arborizadas, que ziguezagueiam colina acima até Castro Lameiro, uma minúscula e isolada aldeia do distrito de Viana do Castelo perdida entre um denso nevoeiro. Os seus poucos habitantes mantêm resquícios de um modo de vida de outro século que a iniciativa "Los tesoros humanos vivos del río Miño Transfronterizo" conseguiu documentar.
É ali que vive há 76 anos Isalina Fernandes, uma idosa que encadeia frases como uma máquina de costura. Fá-lo em castrejo, um português rústico repleto de arcaísmos, cuja sonoridade galega se relaciona com variedades dialetais do outro lado do rio. E com esta forma particular de falar, Isalina dá livre curso à sua memória, que é tão torrencial e desordenada como as águas do Minho quando desabam bravas.
"A minha vida tem sido muito dura, muito dura", diz, sentada junto ao fogo de uma lareira, que despeja um fumo espesso. Os seus olhos escondem-se animados entre as estrias do seu rosto esquartejado, que se retraem como um acordeão cada vez que ri, algo que faz frequentemente quando fala dos galegos, com os quais tem uma relação algo contraditória.
Isalina e a sua filha Leonor, cujas formas de vida estão tão intimamente ligadas à natureza e às montanhas como determinadas por elas, são também "tesouros humanos vivos", os protagonistas do projeto europeu "Smart Minho".
São as únicas em toda a aldeia que ainda praticam a transumância. Antes da chegada do aquecimento, das estradas ou dos automóveis, a prática estendia-se por toda a aldeia, que a cada inverno fugia da montanha para evitar ficar presa pela neve.
Então, pouco depois da matança do porco, nas carroças puxadas por bois carregando galinhas e coelhos, seguidos de cabras e vacas, começou uma complexa transferência para o vale, onde todos os aldeões tinham uma segunda casa, a que chamavam “inverneira": "Natal na 'inverneira' e Páscoa na 'branda'", ainda dizem na aldeia para distinguir ambas as casas e o tempo que passaram nelas.
"Levávamos tudo. E íamos pelos caminhos abaixo. Agora há estradas, mas antes eram caminhos, e gente chegou até a morrer nos caminhos. Nós colocávamos uma escada, com algumas barras cruzadas e com roupas debaixo, porque não havia colchões, nem havia nada disso, e então lá íamos com os mortos para baixo", conta Isalina.
Ninguém faz mais essas transferências tediosas e arriscadas, exceto Isalina e a Leonor, mas contam agora com uma carrinha, um trator e estradas que lhes facilitam a descida, razões que ratificam a sua decisão de se recusarem a abandonar o seu modo de vida.
"Alguns dão-se conta que estão melhor lá em baixo, outros que estão melhor aqui, e como eu estou bem de um lado e no outro ainda faço a viagem", diz Isalina, sorridente.
"As pessoas foram para as cidades e agora a maioria delas volta, porque nas cidades não há empregos e não têm nada para comer. Aqui não nos falta comida", assegura Leonor, de 54 anos, para quem na serra "só morrem à fome os que não querem trabalhar".
Produzem leite, queijo, enchidos e tudo o que a natureza pode dar aos que aprenderam a domesticá-la. Em suma, dizem, nada lhes falta.
Existem exceções, mas é por isso que existem as feiras que frequentam nos arredores, de um e outro lado do Minho, onde os galegos e os portugueses se misturam tão naturalmente como a maioria dos seus costumes. Uma mostra dessa relação delas é o Carnaval, festa profundamente enraizada na Galiza, onde se chama Entroido, e que, devido à influência galega, se chama Entrudo no Norte de Portugal.
No interior da sua ‘branda’, Leonor mostra o seu fato de Entrudo e explica pacientemente as partes que o compõem: o lenço, o avental, as calças, o saiote e um véu que lhe tapa a cara e lhe permite envolver no anonimato faltas de respeito e verdades apenas aceitáveis nos alegres dias de máscaras que antecedem a Quaresma.
Esses são também os dias para alimentar a comunicação com as pessoas do outro lado do Minho, com os quais Isalina, que gosta de compor cantigas, mantém uma relação com bastantes entraves, porque nos galegos não se fia muito.
No entanto, gosta de lhes dedicar cantigas que ela própria escreve, como esta: "Eu recebi um galego / com todo o amor e carinho, / espero que ele não se perca pelo caminho. / Para vir a minha casa por alguém foi guiado, / mas ele veio a um sítio certo, ele não deu um passo errado".
* Ramón Martínez (texto), Salvador Sas (foto) e Eliseo Trigo (vídeo) da agência Efe
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