Dormem nas ruas, na escola, na secretaria do posto administrativo, em cada recanto possível de Quitunda, a aldeia construída de raiz para reassentar quem morava no perímetro do investimento, uma povoação novinha em folha e que só por si já acolhia 1.200 pessoas.

Ao lado fica a pista do aeródromo exclusivo do projeto de gás e a seguir estão as instalações, vedadas, com cancelas e torres de vigilância, onde representantes da população têm ido bater à porta com uma lista dos nomes de todos os que ali estão desamparados.

Para comer há quem “tente a sorte” e vá a pé, escondido, até Palma, um percurso de quatro a cinco quilómetros, para tentar encontrar sacos de arroz ou farinha, mas alguns não regressam, relata a mesma sobrevivente, que conseguiu chegar a Pemba, a capital provincial de Cabo Delgado.

Os residentes recordam que os grupos armados atacaram na mesma altura em que chegou a Palma um barco com comida e outros mantimentos, chamariz da violência, e temem se isso não poderá acontecer outras vezes.

Mas, sem ajuda, a fome grassa e há pessoas que passam mais de dois dias sem comer.

A rede de água de Quitunda deixou de funcionar.

Casos urgentes de feridos, grávidas ou doentes têm sido transportados em aviões de apoio humanitário para Pemba.

Viagens de navio organizadas pela Total e pelas autoridades moçambicanas têm transportado milhares de pessoas para a capital provincial, 200 quilómetros a sul, mas outros milhares continuam em fuga e Afungi é só uma parte.

Nem autoridades locais, nem agências humanitárias arriscaram ainda um número para o total de deslocados provocado pelo ataque de dia 24 a Palma, sede de um distrito com 62.000 habitantes – e onde outros ataques nos meses anteriores, como em Pundanhar e Quionga, já tinham colocado residentes em fuga.

As comunicações móveis continuam instáveis e a rede sem fios do projeto de gás tem sido uma alternativa.

Segundo a sobrevivente, os deslocados em Afungi ficaram a saber que outros como eles morreram afogados quando fugiam pela praia que rodeia Palma, desde Qiwia, em maré baixa, ao tentar atravessar um braço de mar para Maganja, onde teriam barcos à vela.

No domingo, foi relatada a decapitação de algumas pessoas de um grupo que estava em fuga, mas que foi apanhado pelos insurgentes – que se voltaram a esconder no mato quando um helicóptero se aproximou, deixando corpos abandonados.

O movimento terrorista Estado Islâmico reivindicou na segunda-feira o controlo da vila de Palma.

Além de Afungi, a população fugiu também em direção ao norte.

Centenas estavam na segunda-feira em Namoto, fronteira com a Tanzânia, no rio Rovuma, disse hoje à Lusa um dos integrantes do grupo que dizia que o número não parava de aumentar.

“Temos muitas crianças aqui. Muitas crianças estão a morrer no mato. Uma senhora deu [à luz] aqui e foi socorrida para a Tanzânia”, descreveu Denis Liloko, um dos integrantes do grupo que chegou a Mueda, no interior de Cabo Delgado, circulando pela margem tanzaniana.

Na altura, até 500 pessoas estariam junto à povoação ribeirinha após 50 quilómetros a pé desde Palma.

Os residentes passam dias a caminhar, sem comida e sem água, um relato que se repetiu durante 2020 após cada grande ataque que fez do ano o mais grave da crise humanitária em Cabo Delgado – levando o número de deslocados de 156.400 para quase 700.000, quatro vezes mais.

O número de total de mortos ronda os 3.000, segundo estimativas conservadoras.

Agências humanitárias sem dinheiro nem 'stocks' para acudir a Cabo Delgado

As agências humanitárias das Nações Unidas enfrentam falta de dinheiro para socorrer o norte de Moçambique e faltam 'stocks' de itens essenciais, como comida e medicamentos, disserem à Lusa duas fontes da organização.

Os doadores ainda só cobriram 10% do apelo de 254,4 milhões de dólares (216,31 milhões de euros) feito em dezembro para apoiar Cabo Delgado, numa altura em que ainda não se contava com o agravamento decorrente do ataque a Palma, referiu fonte oficial.

O ataque de dia 24 aconteceu ao lado do maior investimento privado em África da ordem dos 20 mil milhões de euros, liderado pela petrolífera Total, para exploração de gás, uma das principais riquezas naturais da região norte de Moçambique.
A situação é crítica, acrescentou à Lusa outra fonte humanitária no terreno: nalguns casos, os itens à disposição da assistência humanitária satisfazem 30% das necessidades identificadas.

Algumas comunidades deslocadas já nem aceitam receber equipas técnicas para realização de levantamentos caso não levem comida, disse uma pessoa envolvida nas operações. "Se não tem comida, não vale a pena", disse.

A fome grassa junto dos 700 mil deslocados do norte de Moçambique, cerca de metade crianças (sem contar com o impacto do ataque a Palma), que chegam a ficar vários dias sem comer ou recorrem a plantas silvestres - esta é também a época baixa da produção agrícola, que só deverá ter novas colheitas a partir de abril e maio.

No terreno, quem presta ajuda humanitária pede um reforço de 'stocks' que, para já, não se sabe de onde virá, alertando em especial para o impacto da desnutrição infantil, que terá reflexos por muitos anos.

Além de comida (o kit habitual inclui arroz, milho ou feijão e óleo), faltam os itens não alimentares (roupa, abrigo e utensílios básicos para cozinhar) e medicamentos.

Antibióticos fazem parte de qualquer lista de necessidades, além de antidiarreicos (baseados em zinco) e antimaláricos, específicos para Cabo Delgado onde a cólera está sempre à espreita e a malária está entre as principais causas de morte.

"O que está em armazém não chega", disse a fonte ligada à ONU, temendo o impacto acrescido dos deslocados pelo ataque a Palma.

Em declarações feitas à Lusa 20 dias antes do ataque a Palma, a coordenadora residente das Nações Unidas em Moçambique, Myrta Kaulard, classificou como "muito grave" a falta de recursos financeiros para acudir à crise humanitária, reflexo do impacto da covid-19 nos principais países doadores.

"O problema dos recursos financeiros é muito grave", referiu.
Aquela responsável chega hoje a Pemba para acompanhar a situação juntamente com as autoridades moçambicanas.

Dezenas de civis foram mortos pelo grupo armado que atacou a vila na quarta-feira, segundo o Ministério da Defesa moçambicano.

A violência está a provocar uma crise humanitária com quase 700 mil deslocados e mais de duas mil mortes.

O movimento terrorista Estado Islâmico reivindicou na segunda-feira o controlo da vila de Palma, junto à fronteira com a Tanzânia.

Vários países têm oferecido apoio militar no terreno a Maputo para combater estes insurgentes, cujas ações já foram reivindicadas pelo autoproclamado Estado Islâmico, mas, até ao momento, ainda não existiu abertura para isso, embora existam relatos e testemunhos que apontam para a existência de empresas de segurança e de mercenários na zona.

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