Por: Marco Lopes da Silva (texto) da agência Lusa


À entrada da vila de Monchique, no Algarve, é preciso fazer cerca de três quilómetros numa estrada sinuosa para chegar à zona da Picota. Depois, surge um caminho de terra batida, com forte inclinação, mas com uma vista que, num dia de céu limpo, permite contemplar uma grande área.

A casa de João Furtado está completamente queimada, tal como os terrenos à volta. Sobram apenas as paredes principais. As telhas amontoam-se e o artesão vai procurando, entre destroços e cinzas, aquilo que pode recuperar.

“Olhe, olhe a fechadura! Estava bem trancada, mas o fogo entrou”, brinca, enquanto continua a vasculhar a antiga manjedoura, colada à habitação, e que transformou na sua oficina.

Pela experiência de outros anos, e pelo que ia vendo na televisão, João calculou que o fogo, que começou no dia 03, uma sexta-feira, na Perna da Negra, só chegasse à sua zona na terça-feira, dia 07, “se não fosse travado antes”.

“Enganei-me nas contas, redondamente”, admite, porque o fogo acabou por chegar na “triste” noite de domingo, dia 05. Era um “caldeirão” de chamas e de fumo que avançava, com a ajuda do vento forte e da baixa humidade.

“Tinha a casa toda preparada. Reguei tudo, cortei as trepadeiras todas, alaguei a rua. Em meados de maio já tinham sido cortados todos os eucaliptos”, garante, acrescentando que em junho foram cortados os pinheiros mais próximos da habitação: “Eu até dizia que aquilo estava um deserto, que era impossível arder”.

Com a “azáfama” toda, João nem tinha almoçado. Tinha umas postas de bacalhau com cebola para “desenrascar”. A mesa acabou por ficar posta como a deixou, mas não dispensou um copo.

“Estou a beber o melhor vinho no meio do fogo”, escreveu por mensagem a um familiar.

Cerca da uma da manhã, enfiou-se no tanque de água, onde, por segurança, já tinha colocado duas botijas de gás, levando consigo apenas o telemóvel. “Agora explodiu o gerador. ‘Tava’ farto de o aturar”, escreveu noutra mensagem, enviada ao amigo Leonel, seguida de um sorriso.

“Ele é muito animado”, justifica Leonel, que pouco depois tentou outro contacto com João.

“Como estás?”, escreveu, obtendo como resposta: “Vivo para contar. Enquanto tiver bateria tiro fotos!”. A troca de mensagens prossegue: “Estás no tanque?”. “Estou”, responde o artesão.

Nesta altura, já Leonel estava no posto de comando da Proteção Civil, no centro da vila de Monchique, para tentar convencer alguém a ir com ele salvar João. Chegou mesmo a mostrar as mensagens a elementos da GNR, mas ninguém se disponibilizou.

A preocupação cresceu quando o artesão deixou de responder. “O telemóvel ‘fritou’” com o calor e a água do tanque, explica João, admitindo que tinha “perfeita consciência de que ninguém ia aparecer” para o ajudar: “Não se viu ali ninguém, nunca”.

Saiu do tanque cerca das 04:00 e deitou-se no muro para tentar dormir um pouco, mas isso foi “impossível”, porque a parede de cimento da estrutura "era muito dura”.

Pegou num balde e começou a apagar o que ainda ardia. Marcaram-no a devastação total à volta da sua habitação, o fumo e a quantidade de cinza com que ficou nos olhos.

“Quatro gatos safaram-se, mas os bigodes arderam e estão muito desorientados. Coitaditos”, diz à Lusa, enquanto coloca água e comida para um deles, que, entretanto, se aproximou.

Só cerca das 06:00 é que um elemento da GNR aceitou ir com Leonel procurar João, mas o amigo não sabia exatamente como chegar à habitação. Foi uma colega artesã que, ao telefone, foi dando indicações ao operacional que conduzia a viatura.

Perto das 07:00, lá encontraram João, de calções e chinelos de plástico de enfiar no dedo, a apagar o que por ali ainda ardia.

“Não podia ir muito longe, mas eu não sou de fugir, nunca fui”, garante.

Nos últimos dias, tem tentado recuperar das cinzas algumas das ferramentas. Perdidas ficaram máquinas de costura, diluentes, acetona, motosserras, tintas, bem como as peles que usava no seu ofício, que avaliou em cerca de 20 mil euros.

As marcas do fogo no corpo não deixam João esquecer os incêndios pelos quais já passou - em 1991, 2003 e este ano -, pelo que se considera um “veterano dos incêndios”.

“Já tenho um currículo de fogos”, brinca, enquanto mostra as feridas nos braços e as cicatrizes nas pernas.

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