* Por Diogo Ferraz, Joana Oliveira, Maria Madalena Ramos, Mariana Silva e Sofia Nunes

“Terceira idade, terceira guerra” é uma reportagem multimédia, elaborada no passado mês de junho, por alunos de Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social, no âmbito da cadeira de Laboratório de Jornalismo III, e que o SAPO24 agora publica.

O Medo
A Incerteza
O Futuro

O que o futuro reserva é incerto, mas, para as gerações mais recentes, a pandemia do coronavírus representa, até ao momento, o acontecimento mais marcante das suas vidas.

Para os mais velhos, esta deveria ser uma altura de tranquilidade e sossego, que lhes permitisse aproveitar ao máximo os anos que lhes restam. Contudo, o vírus trocou-lhes as voltas e foi-lhes roubada a pouca independência que ainda tinham. Os noticiários não os deixam esquecer que pertencem ao grupo de risco. Depois de sobreviverem a eventos que, para as futuras gerações, não passarão de uma realidade distante e desconhecida, surge agora mais uma guerra. Desta vez, contra o inimigo invisível.

Há meses que passam os dias entre quatro paredes, isolados do mundo lá fora, que começa agora a regressar, progressivamente, à normalidade. Nesta nova fase, não podem, por enquanto, ser protagonistas. Limitam-se a assistir na plateia. Em comum, têm a idade e o medo.

Uma avó que teve de manter a distância da família e que encontrou numa janela a hipótese de se aproximar da vida lá fora. E um avô privilegiado, que pôde manter o contacto com a família, privado apenas de sair à rua, ritual que lhe garantia a sanidade mental.

Esta é a história de duas pessoas a quem foi roubada a liberdade e o sossego que o fim de vida pede. É a história de como o futuro está agora, uma vez mais, em suspenso.


O Medo:

O ano é 1938. Um pouco por toda a Europa, a perspetiva de uma nova guerra parece cada vez mais real. Os Nazis ganham força e a perseguição aos judeus nunca foi tão violenta. Os Aliados preparam-se para o inevitável confronto contra Hitler. Nos Estados Unidos, os efeitos da Grande Depressão ainda ecoam e milhões de americanos lutam para conseguir sustentar as suas famílias. Num Portugal profundamente atrasado e rural, o regime Salazarista ganha força.

No mesmo ano, na vila ribatejana de Samora Correia, nasce um bebé. Maria dos Prazeres Alemão, nascida a 4 de agosto, veio ao mundo no seio de uma família pobre de camponeses. O pouco dinheiro que havia era para alimentar as cinco bocas daquela casa. Não sobrava nada para comprar brinquedos ou roupas novas. O único luxo a que tinha acesso, mesmo num país assombrado por uma ditadura, era a liberdade. Liberdade para correr e brincar descalça pelas ruas. A mesma liberdade que hoje lhe foi tirada.

créditos: Madalena Ramos

Montijo, maio de 2020

O dia está quente. Quase tão quente como a chávena de chá que tem na mão. Na televisão disseram que as temperaturas deveriam atingir os 35º graus. A casa já é antiga e não há ar condicionado, por isso a única corrente de ar entra pela janela da sala, que está entreaberta. O calor é quase sufocante. Ainda assim, não tão sufocante como estar fechada há mais de 60 dias. Maria dos Prazeres, 81 anos, nunca esteve tão familiarizada com as paredes brancas da sua casa como agora.

Lá fora, a vida acontece. Ouvem-se carros, pessoas, cães a ladrar. Efeitos do desconfinamento. Mora numa das avenidas mais movimentadas da cidade e o barulho  da rua contrasta com o silêncio que se faz ouvir naquele 2º direito. Desde que o bicho atacou, que os dias são passados apenas na companhia dos seus fiéis gatos, Mimi e Tareco. A porta da rua agora só se abre três vezes por semana, para receber as compras que as netas lhe trazem. Não há abraços nem conversas longas e os sorrisos ficam escondidos atrás das máscaras. As tardes de passeios a pé no parque e de lanches com as amigas são agora uma realidade distante.

A interromper o silêncio, que ameaça ser o protagonista deste capítulo, está o ocasional barulho da máquina de costura. Dedal, linha, e pé no motor. Uma e outra vez. Mas os dias continuam a passar e já não há mais bainhas por fazer nem tecidos por remendar. O medo e a ansiedade começam a assumir o controlo. Medo da doença. Medo de sofrer. Medo de estar isolada por muito mais tempo. Medo de morrer.

O calor persiste e insiste em roubar a atenção. E a janela da sala continua entreaberta na esperança de deixar entrar uma brisa envergonhada. A mesma janela na qual Maria dos Prazeres passa horas e horas, sentada numa cadeira. Vê a rua, as árvores e as pessoas lá em baixo. É espetadora da vida real e permanecerá assim até poder descer as escadas do seu prédio e dar um passo em direção a uma nova normalidade. A televisão, essa, há muito tempo que deixou de ser uma companhia agradável: “Só falam do vírus e eu tenho pena das pessoas. Tenho pena de quem tem estado sempre a trabalhar. Das pessoas que deixaram de ver a família porque estão a trabalhar nos hospitais. E depois vejo aqueles que não respeitam ninguém e que vão para a rua passear. Prefiro não ver. Uma pessoa já está mal e depois com estas coisas ainda fica pior.”. De facto, a ignorância nunca trouxe desconforto.

A pandemia colocou-a frente a frente com as suas inseguranças. E com o medo, que só se equipara ao que sentiu durante o 25 de Abril de 1974. No dia da Revolução, estava sozinha em casa. A filha estava no infantário e o marido  tinha ido para Lisboa trabalhar, mesmo no olho do furacão. Maria dos Prazeres soube pela rádio que a vida nunca mais seria a mesma. Mas o vírus não se limitou a obrigá-la a viver com receio. Roubou-lhe os afetos e o toque. O contacto físico chegou meses depois do início do confinamento, quando, excepcionalmente, deu um abraço de parabéns à neta mais nova. Até então, refugiara-se apenas no carinho dos seus gatos. Tirou-lhe ainda o descanso e as noites bem dormidas. O sono agitado é culpa da ansiedade. Sonha com o início de vida em Samora. Sonha com o marido, que já faleceu. Sonha com tempos que já não voltam mais.

Samora Correia, décadas antes

créditos: Museu Municipal de Benavente

A pequena casa da família Alemão ficava no centro da vila, numa rua estreitinha, cheia de outras casas iguais. Lá dentro moravam Madalena e Eduardo, com os três filhos. Para a pequena Maria dos Prazeres, os dias passavam-se, quase sempre, entre aquelas quatro paredes. Foi proibida de ir à escola e ocupava-se a cuidar do irmão mais novo, Joaquim. “Fazes mais falta a tratar da casa”, dizia-lhe o pai. E assim foi, durante anos. O irmão mais velho, Sarraíl, era a figura de referência. Para defender a mãe, deixava que o pai lhe batesse. Roubava brinquedos em feiras para dar aos irmãos. Tinha em si uma revolta sem fim por querer mais para a sua vida.

Os dias, os meses e os anos foram passando.

Na saúde e na doença

O nome dele era João. Nasceu em Vila Franca de Xira, mas era ainda um menino de sete anos quando se mudou com os pais, Henrique e Teresa, para o Campo de Tiro, mesmo a chegar à vila de Samora. Faziam da terra e do gado o seu sustento. Tinham uma casa maior do que Maria alguma vez vira.

Ele tinha 17 anos. Ela tinha 14. Foi nas estreitas ruas da vila, as mesmas onde Maria brincava descalça anos antes, que se conheceram e se apaixonaram. Um descuido fez com que, subitamente, tivessem de se preparar para ser pais. Seguiu-se o inevitável casamento à pressa. Deveriam ter soado os sinos da igreja. Deveria ter havido um vestido branco e um véu. Deveriam ter estado dezenas de convidados. Mas nada disso aconteceu. A família do noivo era contra a união. A cerimónia só contou com a presença dos pais e irmãos do casal. E quem a oficializou foi o humilde dono de uma farmácia na vila, que estava autorizado a fazer casamentos.

O bebé dos dois, um menino, nasceu morto aos oito meses de gravidez. Foi enterrado no terreno da casa dos avós paternos. E é lá que permanece até hoje. O choque, o desespero de não se poder fazer nada e a dor sufocante levaram Maria e João a tomar uma decisão. Estava na altura de sair daquele lugar e de deixar aquelas memórias para trás. Tinha chegado o tempo da emancipação.

Alcochete, anos 60

A mudança está a acontecer um pouco por todo o mundo. A televisão nunca foi tão popular. Os protestos pela igualdade racial começam a ganhar força nos Estados Unidos. A Inglaterra domina o mundo inteiro com uma arma potente chamada The Beatles. Em Portugal, e pela primeira vez em décadas, o regime de Salazar começa a perder força à conta da Guerra Colonial.

Na pequena e pacata vila de Alcochete, com Lisboa mesmo ali à vista, um casal recém chegado de Samora Correia começa a refazer a sua vida. João arranjou trabalho como camionista na Firestone, uma fábrica de pneus, e só vem a casa aos fins de semana. Maria dos Prazeres passa os dias em casa, mas nunca sozinha. Tem a porta sempre aberta para receber as vizinhas. É que aquela é a primeira casa da rua com televisão. O expoente máximo da modernidade e inovação.

créditos: Madalena Ramos

Em julho de 1969, Aldrin, Armstrong e Collins chegam à lua. Dois meses depois, a 9 de setembro, a filha mais nova do casal, Susana, vem ao mundo. Mudaram-se para o Montijo e João continuava a trabalhar na mesma fábrica. Maria ocupava os dias com a filha e com o salão de cabeleireiro que tinha aberto numa das divisões da casa nova. Mas a chegada de 1974 não trouxe apenas mudanças extremas para o país. Também naquela família começava agora uma revolução.

E Depois do Adeus

Henrique, o pai de João, faleceu com cancro. Para trás deixava uma fazenda e uma esposa com problemas psicológicos, incapaz de viver sozinha. Maria, João e Susana fizeram as malas e disseram adeus à vida na cidade, a que se tinham habituado nos últimos anos. Regressavam agora, uma vez mais, a Samora Correia e ao campo, para se ocuparem das terras que herdaram. Durante este tempo, tornaram-se criadores de gado e fornecedores agrícolas para a Compal e a Matutano. Foram 20 anos de prosperidade sem igual e os mais felizes da família. Tivessem podido, e ainda hoje lá fariam a sua vida.

Mas, em meados dos anos 90, o cenário mudou. Os terrenos que tinham faziam parte do Campo de Tiro e o Estado decidiu que queria que toda aquela área fosse utilizada, exclusivamente, pelo exército, como zona de treino militar. Chegaram a acordo e indemnizaram João.  Era, mais uma vez, altura de dizer adeus.

O regresso à cidade

O apartamento no Montijo ainda lá estava à sua espera. E foi para lá que voltaram. Era altura de assentar e de passar a velhice em paz. Maria seguiu o plano à risca e ficou em casa, a cuidar das netas pequenas. Mas João decidiu que ainda não estava pronto para deixar de trabalhar. Comprou terrenos com pinheiros a perder de vista e vendia as pinhas a uma fábrica, para depois extrair pinhão. E a rotina era sempre a mesma. A época da apanha era de novembro a abril.

Durante estes meses, os dias começavam às cinco da madrugada. Ainda o sol estava escondido e já Maria andava levantada a preparar a marmita para o marido. Quando, no relógio, batiam as seis, João saía de casa em direção ao trabalho. Com ele, iam a marmita, o boné e uma espingarda, caso fosse preciso proteger as terras. E assim foi até 2010, ano em que adoeceu e foi hospitalizado.

João, o rapaz de 17 anos cujo olhar cruzou com o de Maria nas ruas de Samora Correia décadas antes, faleceu a 27 de novembro de 2011. Para trás ficava uma vida inteira de trabalho e amor pela família. Tinham chegado ao fim 57 anos de casamento. Maria moraria agora, pela primeira vez na vida, sozinha.

Montijo, maio de 2020

O sol já se pôs, mas, ainda assim, o calor teima em permanecer. O chá foi completamente esquecido e já arrefeceu. As memórias de uma vida derrotaram, pela primeira vez em meses, o silêncio ensurdecedor daquele 2º direito. Enquanto as horas passaram, perdidas no meio da conversa, a realidade que se vive hoje foi temporariamente esquecida. Agora, de volta ao presente, os medos continuam os mesmos. E o futuro? Esse é agora, mais do que nunca, dominado pela incerteza. A perspetiva de uma vida normal está ainda muito distante e o pessimismo em relação aos próximos tempos prevalece. Enquanto aguarda pela liberdade, Maria continuará à janela. A ver a vida passar.


A Incerteza:

O ano é 1935. A Alemanha Nazi acaba de aprovar as Leis de Nuremberga, que vêm oficializar o anti-semitismo do regime. Em Memphis, nos Estados Unidos, nascia Elvis Presley. Em Portugal, celebra-se o início da Emissora Nacional e a reeleição de Óscar Carmona para o cargo de Presidente da República.

No dia 15 de junho do mesmo ano, em Elvas, nasce um bebé. Contudo, foi em Campo Maior, outrora uma povoação Romana dominada por mouros, que cresceu, A terra famosa pelas Festas das Flores é berço de muitos alentejanos. Também o foi para António Ventura da Silva. Entretanto, a velhice já lhe tirou muito. A memória falha e as palavras fogem-lhe da ponta da língua, como se de um jogo de apanhada se tratasse. Frequentemente frustrado por não se conseguir expressar, atribuiu uma conotação universal ao termo ‘coiso’. Quando o nevoeiro se apodera do seu raciocínio, vai jogando às charadas com a filha e a neta, numa tentativa de encontrar as palavras que teimam em escapar.

créditos: Madalena Ramos

A visão engana e os ouvidos estão cada vez mais moucos. Os reflexos já não são o que eram e o cérebro insiste em pregar partidas. Ao completar 84 anos, chegou um presente envenenado. Representava um perigo na estrada e nem por milagre passaria no exame de renovação da carta, pelo que teve de se despedir do seu Citroën. Foi mais um hábito quebrado, menos uma prova de independência.

Mas António (ou Toi, como todos o conhecem) não foi sempre assim. Tornou-se, para muitos, um exemplo do envelhecer bem. Na origem pode estar o facto de encarar a velhice com uma postura de negação. Para tal, tenta preservar o espírito jovem. A alma da festa, o tio favorito, o avô babado, o Comandante.

Sacavém, maio de 2020

“Eles dizem aí que, a partir dos 70 anos, uma pessoa fica em maus lençóis. E eu às vezes ponho-me assim a pensar...”, desabafa Toi. Com a chegada do coronavírus, que, segundo os “senhores da televisão”, é particularmente letal para o elo mais fraco, chegou também uma nova fase na sua vida. A ameaça proveniente da China colocou um ponto final nas idas ao pão - que tem sempre de ser do mesmo sítio, ou não presta - e à farmácia. Gastar a reforma nos medicamentos não parecia tão mau quando envolvia passar um bom bocado com as meninas que lá trabalham. “Aquelas moças são um espetáculo!” Há meses que não sabe delas. Nem elas dele. Em finais de fevereiro, uma das últimas vezes que foi à rua, para ir à mercearia, “o chinês já estava de máscara”.

A pedido de quem o ama, ficou ‘preso’ em casa. Mesmo assim, “a não ser que venha aí uma vacina”, não pretende ir à rua. Criatura de hábitos, necessita de um propósito que o mova. Sair por sair, sem um objetivo, um recado, uma missão, não o convence. Por agora, limita-se a planear o que fará. A ida ao barbeiro é certa. “Este cabelo já não tem jeito nenhum”, vai dizendo à filha, como quem não quer a coisa. Entretanto, o cabelo vai crescendo, tal como a revolta e a tristeza.
Passa os dias embrenhado nos seus pensamentos. Para disfarçar, vai lavando a loiça, tarefa antes assumida pela esposa, entretanto derrotada pelas sequelas do AVC a que sobreviveu. Até nisto Toi conseguiu formar hábitos: primeiro os copos, seguidos dos talheres, e só depois os pratos. E ai de quem o fizer de outra forma. Para descansar, utiliza as tecnologias. Vai ao Facebook, onde pode ver fotografias dos parentes; ouve os fados, que lhe aquecem o coração há anos, na Rádio Amália; mantém-se a par das notícias, que aumentam o seu nervosismo, e joga Solitário.

Com o deteriorar da sua audição, os auscultadores tornaram-se os seus melhores amigos. Ainda que se irrite, faz questão de assistir aos programas de debate e escolhe sempre favoritos. Quando começou a ouvir falar do ‘raio do bicho’, “dava a impressão de que aquilo lá da China não vinha para lado nenhum”. Mas o problema ultrapassou fronteiras.

E há dias em que os esforços do isolamento parecem ser em vão, quando tem conhecimento dos ajuntamentos em manifestações, praias e estabelecimentos comerciais. Aponta-lhes o dedo por estarem sem máscara e por quebrarem as regras que ele tão rigorosamente tem cumprido.

Os dias passam lentamente e o aborrecimento cresce. A incompreensão, a raiva e a saudade albergam-se na mente de um idoso que achava já ter visto tudo. Não só pela idade, mas também devido aos problemas respiratórios provocados por anos e anos de cigarro na mão, Toi pertence ao grupo de risco. O medo de morrer, esse, já existia muito antes do vírus.

Campo Maior, décadas antes

créditos: Madalena Ramos

Toi, filho de Maria Amélia e Silvino, era o segundo de sete irmãos. O primeiro menino. Cresceu em Campo Maior, onde morou até aos 11 anos. Das janelas de sua casa conseguiam ver o Largo. Os dias eram passados a brincar e a explorar com os irmãos. E os peões nunca paravam de rolar. A correria findava apenas quando era hora de roubar favas. No restante tempo, ia para a escola, de onde se escapava sempre que conseguia, para ir nadar num ribeiro lá perto. Conseguiu concluir a quarta classe, mas ficou por aí. “Gostava mais de comer do que de estudar”, conta, em tom de gozo. Apesar disso, sempre foi esguio - o que o livrou de entrar para a tropa, mais tarde.

Quando o mundo entrou em Guerra novamente, Toi era criança. À medida que foi ouvindo os homens da terra falar do assunto e tomando consciência do mundo à sua volta, percebeu o que estava em causa. Aos 11 anos, a família despediu-se de Campo Maior e mudou-se para Portalegre. A estadia foi curta. Aos 15, já estava no comboio a caminho da capital. Pernoitaram numa pensão na Baixa até o pai arranjar uma alternativa. Foi num quarto de um rés-do-chão em Moscavide que os Silva assentaram.

Moscavide, anos 50

O dinheiro que traziam revelou-se insuficiente para sustentar o custo da vida na capital. O chefe de família telefonou ao seu pai, avô de Toi, pedindo auxílio. O ancião, que trabalhava nos caminhos de ferro, consentiu, mas acabou por dar o dito por não dito. “O meu pai ficou todo danado com ele. O que ele sofreu”, sublinha o protagonista. Em busca de uma solução para sustentar a família, Silvino tornou-se caixeiro viajante, profissão que lhe gastou as solas dos sapatos. Quando conseguiu arranjar um emprego em Marvila, fazia o caminho todos os dias a pé. Era raro não levar consigo o seu manjar de eleição: bacalhau e um papo seco.

Ao contrário do pai, Toi conseguiu emprego na zona onde morava. Através de uma cunha foi colocado na Fábrica Nacional de Munições para Armas Ligeiras, ao fundo da Avenida de Moscavide. Trabalhou lá até se reformar. Enquanto chefe de secção, cabia-lhe controlar o trabalho dos colegas, a partir da sua sala privada.

Até que a morte nos separe

Num dia como qualquer outro, uma tia sua apareceu-lhe em casa com uma moça. Era Maria Emília, uma jovem, que, apesar de tímida, lhe despertou a atenção. Anos mais tarde, encontrar-se-iam, por acaso, num casamento. O destino tem destas coisas. Ao cruzarem olhares, ela soltou um sorriso, e não tardaria até começarem a namorar. “Ela não disse logo que sim. Disse que ia ver, mas ela já sabia que, se dissesse que não, havia logo outra que pegava”, afirma Toi, antes de soltar uma risada. Mila - como todos a tratam -, presente durante a conversa, olha de esguelha e abana a cabeça, em sinal de reprovação, como se tivesse ouvido um disparate.

O namoro à distância motivou várias cartas de amor. Ela morava com o pai, em Turquel, vila do concelho de Alcobaça, longe do apaixonado. Para findar este afastamento, Toi ajoelhou-se. Os sinos soaram a 17 de setembro de 1961. No início do matrimónio, foram viver com uma irmã de Toi, também em Moscavide. Algum tempo depois, os recém casados mudaram-se para Benfica, onde partilharam casa com uma amiga da família.

Na madrugada de 28 de fevereiro de 1969, o país tremeu. Um sismo de magnitude 7.9 provocou um rasto de destruição e acordou Toi e Mila, que, ao sentirem o chão vibrar, se dirigiram à ombreira da porta. Nesta altura, e ainda sem saberem, já havia um bebé a caminho.

A menina dos seus olhos

Depois de descobrirem a novidade, regressaram a Moscavide. Finalmente viveriam sozinhos, no 3º direito de um prédio acabado de construir. Dora Alexandra nasceu a 6 de novembro. Ao contrário dos pais, que cresceram em casas cheias, a menina não teve irmãos. Toi conseguiu arranjar emprego para Mila na mesma fábrica, no controlo de qualidade. Ganhavam o suficiente para terem uma vida modesta. Só depois do 25 de Abril de 1974, que, para além de liberdade, lhes trouxe salários acrescidos, conseguiram juntar o suficiente para alugar uma casa de férias na Nazaré. Até então, apenas tinham tirado uns dias na terrinha. As melhores férias, no entanto, eram passadas no campismo.

Os anos passaram. Dorinha cresceu e conheceu o amor da sua vida na faculdade. Em 1999 nasceria a única neta de Toi e Mila. “Eu fiquei tão contente. Até agora foram 20 anos em que não houve mais nada para além dela. Senti-me sempre um homem pronto para tudo, disposto ao que ela precisasse. Gosto tanto dela. Tanto, tanto, tanto.” Toi não esconde a sua alegria ao falar da sua bebezoca, apelido que inventou. Foi por ela que largou instantaneamente o vício de fumar. Prestes a ser avô, os médicos alertaram-no de que, continuando a deteriorar os pulmões dessa forma, não lhe restaria muito tempo de vida. Optar por ver a neta crescer e passar mais anos ao seu lado foi uma decisão imediata.

​ Incapazes de continuar a subir até ao terceiro andar, mudaram-se para Sacavém, onde residem atualmente. E onde passarão os seus últimos anos. A filha, o genro e a neta moram no apartamento em frente, pelo que têm contacto diário e a ajuda que se torna indispensável com a velhice. Vivem agora tempos difíceis, mas com a certeza de que nunca estarão sozinhos.

Sacavém, maio de 2020

Em tempo de pandemia, ao contrário de grande parte dos idosos, Toi e Mila são privilegiados. Lá fora, o mundo parou. O vírus obrigou ao isolamento e, durante meses, impediu o contacto com os entes queridos. Dentro das quatro paredes da sua casa, a vida permaneceu igual. À exceção das idas à rua, que se tornaram inexistentes, puderam continuar a conviver com a família todos os dias. A neta, a filha e o genro cumpriram as regras de confinamento impostas desde o início, nunca tendo representado uma ameaça à saúde do casal. Durante este tempo, o terraço foi o único contacto com o exterior. Permitiu-lhes arejar, sentir o sol e ter uma amostra da liberdade que lhes foi tirada.

Há vários anos que Mila perdeu a consciência daquilo que a rodeia. Para si, a pandemia não existe. Apenas persistem as memórias a longo prazo. Por isso mesmo, apesar de fazer companhia ao marido, não consegue ser uma confidente. Por não compreender o que se passa no mundo, limita-se a ouvir as inquietações de Toi, eterno pessimista.

Como um pássaro preso numa gaiola, começa a perder a esperança. “Eu acho que isto agora não acaba. Não tenho grande fé. Não sei se voltamos à rua como antes”, afirma, sem lhe faltarem as palavras, como se já tivesse matutado sobre o assunto vezes sem conta. Resta imaginar o que o futuro lhes reserva. Por enquanto, reina a incerteza.


O Futuro

Maria dos Prazeres cresceu e viveu a maior parte da sua vida no campo. Talvez por isso tenha encontrado no mar, e nas poucas oportunidades que teve para estar perto dele, a sua verdadeira paixão. Por isso, quando pensa no que quer fazer quando lhe for devolvida a liberdade, a resposta é imediata. Sentir o cheiro a maresia e os pés molhados. Ver o azul do céu refletido na água salgada. Ouvir as ondas a rebentar. Esse mesmo som que ouviu, pela primeira vez, de mãos dadas com o seu grande amor.

créditos: Madalena Ramos


António Ventura da Silva acampou pela primeira vez nos anos 70. Quando tudo passar, a sua prioridade é regressar ao parque de campismo que o conquistou. Os verões eram obrigatoriamente vividos lá. Em 2014, por já não aguentar o cansaço da vida campista, desmontou o atrelado e o espaço vagou. As carumas voltaram a cair naqueles metros de chão que durante anos pertenceram à sua família. Despediu-se dos pinheiros, dos grelhados, dos vizinhos e da praia. A pandemia fê-lo refletir acerca do tempo que lhe resta e daquilo que realmente importa. Assim que se tornar seguro, deseja voltar a pisar o areal infindável do Malhão. Mesmo que, para isso, tenha de reunir as últimas forças que ainda tem.​

Maria dos Prazeres. António. Os dois têm uma história de vida diferente. Os seus desejos e ambições não são os mesmos. Os medos e inquietações também não. No que à pandemia diz respeito, até as suas realidades e perspetivas divergem. A única certeza que fica é que cada um deles anseia por mais. Mais tempo para viver. Mais tempo com a família. Mais tempo para serem livres. Mais tempo para fazer o que mais amam, nem que seja uma última vez.