Sem cortesias. Foi assim que começou o debate, com Tiago Mayan a classificar o mandato de Marcelo Rebelo de Sousa como um "falhanço" e a acusar o atual Presidente da República de ter como única preocupação (e fim) o preservar da sua popularidade — o que tanto o coloca "estrategicamente ao lado do Governo", na posição de "propagandista", como o faz "tirar o tapete até a ministros".
Marcelo refutou esta ideia de um presidente seguidista — "uma coisa é estar com o Governo, outra coisa é estar com os portugueses, e eu estive com os portugueses" — e lembrou que vetou mais do que todos os outros Presidentes, com exceção de Ramalho Eanes. "Há uma coisa muito importante que é a estabilidade e que é feita disto: fazer com que as legislaturas cheguem ao fim".
Para justificar o "falhanço" de Marcelo, Tiago Mayan invocou a promessa que o Presidente da República fez de uma vacina da gripe para todos os portugueses, a não recondução de Joana Marques Vidal no cargo de Procuradora-Geral da República, ou o momento em que acompanhou o Governo no anúncio da final da Liga dos Campeões em Portugal quando o país entrava para a lista negra dos voos por causa da pandemia.
Em resposta, Marcelo lembrou que foi a própria procuradora Joana Marques Vidal a entender o seu mandato como único, disse que tomou por garantia as palavras da Ministra da Saúde sobre a vacina da gripe [que afinal não chegou a todos os portugueses] e que foi com "humildade" que assumiu a responsabilidade máxima pela gestão da pandemia, algo que nenhum outro Presidente teve coragem de fazer. Sobre a Liga dos Campeões a resposta estava a postos, mas o correr do tempo não permitiu que a ouvíssemos.
Estava definido o tom do debate e o Marcelo cordial e condescendente que se apresentada no frente-a-frente com Marisa Matias deu lugar a um Marcelo arguto, que fez das perguntas a sua estratégia de ataque. A falta de respostas de Mayan assegurou-lhe a vantagem no debate, deixando o candidato liberal na posição de defensor de uma "utopia", incapaz de dar respostas concretas aos problemas reais do país.
O caso de Ihor Homeniuk, o cidadão ucraniano de 40 anos que morreu no aeroporto de Lisboa, alegadamente vítima de agressões por parte de inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, foi o único tema a "assombrar" Marcelo. Se ontem assumiu que a forma como agiu pode ser "criticável", hoje quis fechar o flanco deixando claro que não teria atuado de forma diferente.
- "O mandato senhor Presidente é um falhanço, até pelas suas próprias palavras" - Tiago Mayan
- "Um candidato que chega aqui a primeira vez pode ser livre de prometer tudo" - Marcelo Rebelo de Sousa
- "O senhor é o candidato dos donos disto tudo" — Tiago Mayan
- "O senhor [Presidente] não tinha de esperar nove meses e aderir a um pacto de silêncio e esperar por uma entrevista à viuva [de Ihor Homeniuk] para reagir" - Tiago Mayan Rodrigues
- "Não fazia diferente hoje [relativamente à forma como reagiu ao caso de Ihor Homeniuk]" - Marcelo Rebelo de Sousa
Regionalização, sim ou não?
Marcelo só teve de fazer perguntas e assim que Mayan vacilou nas respostas, estava definido o rumo do frente-a-frente.
O candidato liberal apresenta-se como alguém com uma visão diferente para "um país em completa estagnação, ultrapassado pelos restantes países europeus, em que um jovem licenciado tem de sair do país ou se inscrever no PS para ter sucesso e em que os pequenos comerciantes estão esmagados por impostos e burocracias".
Mas se um Presidente não legisla e não governa, como espera Mayan mudar estas coisas a partir de Belém? "Um presidente tem de presidir, não governar ou legislar, tenho isso muito claro. Eu não vou ser um Presidente de um Governo [como acusa Marcelo de ser], vou ser o presidente dos portugueses", replicou, usando para isso o "magistério de influência".
O recandidato a Belém não perdeu a oportunidade: "que lei vetaria que eu não vetei? certamente terá uma ou duas pensadas", atirou, esperando talvez apanhar despevenido o candidato liberal ao exigir que concretizasse as suas acusações.
Tiago Mayan apontou a legislação que permitiu a eleição indireta dos presidentes das Comissões de Coordenação Regional, que considerou um “simulacro de democracia” combinado entre PS e PSD.
A frase abriu portas à primeira pergunta que deixou Mayan fora de pé: o candidato é contra ou a favor da regionalização?
Mayan disse que "o conceito de regionalização deve ser discutido", que a proposta do que deve ser a descentralização cabe ao Governo em funções e que "o problema da descentralização, da regionalização e de todos esses palavrões, é que o estado central nunca discute de que poderes teria de abdicar".
Marcelo não permitiu que fugisse à questão: "É simples, regionalização, sim ou não. O senhor doutor já viu que quando se trata das suas ideias, como é vago?".
"O meu problema é o país", replicou Mayan. "O seu problema é abstrato", sentenciou Marcelo. "É preciso ter estado lá", acrescenta, fazendo referência ao tempo em que foi autarca em Celorico de Basto.
Colocar um liberal à prova
Foi depois a vez de o moderador, o jornalista da RTP Carlos Daniel, inquirir Mayan: como é que um estado pequeno, como aquele que defende, reagia a uma pandemia como esta? O candidato liberal não foi concreto e disse apenas que não defende "um estado mínimo".
"O que um liberal defende é um Estado forte nas funções que tem de ter e que saia da frente onde não tem de estar metido. (...) Somos os únicos que não têm preconceito com quem é o dono do hospital, queremos acesso universal aos cuidados de saúde, e não acesso universal às listas de espera. Eu quero é que as pessoas escolham".
Marcelo aproveitou a oportunidade para lembrar que mesmo os estados mais liberais, quando confrontados com a pandemia, injetaram dinheiro na economia e em políticas sociais. "A pobreza vai ser um problema, como é que se resolve a pobreza com políticas liberais? Acha que a mera liberdade económica [dará resposta]?
"As políticas liberais não determinam nem acabam com o apoio social, o que fazem é trazer prosperidade, porque estarmos todos pobres não é solução para a pobreza", replicou Mayan. À ausência de uma resposta concreta, Marcelo respondeu com um sorriso enviesado que falou mais do que qualquer investida política. Mais tarde atirou: "preocupo-me em saber como um sistema liberal enfrentaria a questão dos lares", muitos deles sem mecenas privados e dependentes dos apoios estatais. Mayan não respondeu.
Daí para o estado de emergência foi um pulo: "a área política à qual pertence o candidato votou sempre contra o Estado de Emergência", lembrou Marcelo. "Eu pergunto-me o que seria o saldo de mortos não havendo Estado de Emergência, com a mobilização que este permitiu de meios sanitários, de segurança, ao nível da mobilização Forças Armadas, dos recursos extraordinários para ir buscar recursos que não existiam nem em públicos nem em privados, ventiladores. (...) É muito fácil avançar com ideias do estado liberal daquele sonho, daquela utopia, e depois votar contra o Estado de emergência".
"Este estado de emergência, que o senhor escreveu e assina por baixo, é de um país que está a enfrentar a destruição económica e social, é [o Estado de Emergência] do país em que as pessoas se concentram nos supermercados por causa do cheque em branco que deu ao Governo", replicou Mayan, mais uma vez sem ir direto ao ponto.
Seria suficiente o uso de máscara e o distanciamento para travar a pandemia, perguntou na sequência Carlos Daniel a Tiago Mayan. A resposta ficou por dar.
"Estaria o país a enfrentar uma destruição económica e social menor se a pandemia alastrasse?", atirou Marcelo. A resposta (mais uma vez) ficou por dar.
Uma questão de popularidade
Tiago Mayan sabia exactamente como arrancar este debate e insistiu bastante na ideia de um Presidente apenas preocupado consigo mesmo, cujas decisões e posicionamentos estão mais condicionados pela sua popularidade do que pela defesa do país e dos portugueses.
"No seu discurso de candidatura apresenta-se como o mesmo e esse é que e o problema", começou por dizer. Assim, teceu várias críticas ao Presidente que tanto atua como "propagandista de governo" como "está disposto a tirar o tapete até a ministros quando sente a sua popularidade ameaçada".
"Muitos dos seus vetos foram realizados este verão, quando começou a olhar para as sondagens. (...) Quando a sua popularidade baixa é ai que começa a reagir, veta", acusou Mayan.
Marcelo replicou: "Se há coisa que é muito evidente para mim é que me é indiferente a popularidade, eu vetei a lei de financiamento dos partidos contra o parlamento todo", lembrou.
O recandidato foi sempre escusando as investidas. “Eu intervim consoante haver razões ou não para intervir em relação aos respetivos ministérios", disse, reiterando que o Presidente tudo deve fazer “para que as legislaturas cheguem até ao fim”.
Se neste ponto Marcelo fez face às críticas sem grande esforço, o mesmo não se pode dizer relativamente ao caso do cidadãos ucraniano assassinado no aeroporto de Lisboa.
Ihor Homeniuk, a "sombra" de Marcelo
"O senhor [Presidente] não tinha de esperar nove meses e aderir a um pacto de silêncio e esperar por uma entrevista à viuva [de Ihor Homeniuk] para reagir", acusou Tiago Mayan.
Marcelo lembrou que a sua primeira intervenção sobre o caso foi em abril e defendeu a opção de não falar com os familiares da vítima num primeiro momento — tal como tinha feito ontem frente a Marisa Matias, apesar de reconhecer que as suas opções podem ser alvo de crítica.
"Não falei por duas razões, uma é que estando a decorrer um processo criminal eu não iria falar com uma cidadã ucraniana antecipando o juízo da Justiça portuguesa. Eu sempre disse que era criticável". No entanto, ressalva "não fazia diferente hoje". A segunda razão, que não esclareceu neste debate, estará relacionada com a hierarquia de funções do estado. Sábado, no frente-a-frente com Marisa Matias, disse que foi uma "opção de estado". "Achei que não devia ser o Presidente da República a substituir-se ao SEF e a toda a hierarquia do Estado nesse contacto".
Mais tarde, foi a vez de Marcelo salientar a "ironia" de ter Mayan a lamentar os mortos por covid-19 quando é fundador do partido, o Iniciativa Liberal, que sempre votou contra o Estado de Emergência.
Contrariamente ao que aconteceu no debate entre Marisa Matias e Marcelo Rebelo de Sousa, aqui não houve um único ponto de contacto entre os dois candidatos a Belém.
Tiago Mayan chegou ao debate com uma mão cheia de ideias (e frases) feitas: Marcelo é "o candidato dos donos disto tudo", o "propagandista do governo", que "só se preocupa com a sua própria popularidade", mas falhou em concretizar as suas acusações e 'encostado à parede' em temas concretos, vacilou. E foi esse vacilar — ao qual não foi alheia a expressão corporal — que lhe custou este frente-a-frente.
"O Presidente tem essa limitação enorme como candidato, o Presidente é candidato e pode ser atacado por 1500, 2000, 3000 razões. Um candidato que chega aqui a primeira vez pode ser livre de prometer tudo", disse Marcelo.
As eleições presidenciais têm lugar no próximo dia 24 de janeiro. Marcelo Rebelo de Sousa, Ana Gomes, Marisa Matias, Tiago Mayan, João Ferreira, André Ventura e Vitorino Silva estão na corrida a Belém.
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