Uma semana e meia após a queda do regime de Bashar al-Assad, em 08 de dezembro, multiplicam-se os relatos de descobertas de valas comuns associadas à repressão dos antigos serviços de segurança em vários pontos do país, uma das quais de enormes dimensões nos arredores de Damasco.

Mas não há confirmação de nenhuma entidade oficial das novas autoridades que tomaram o poder na Síria e subsistem muitas dúvidas sobre a sua origem, bastante especulação e até notícias falsas, mas também relatos de movimentações das antigas forças de segurança junto destes locais e a circulação de viaturas de carga refrigeradas em zonas proibidas à população.

Em al-Qutayfah, a cerca de 40 quilómetros a norte da capital síria, a organização Syrian Emergency Task Force, sediada nos Estados Unidos, indicou na terça-feira a existência de uma de cinco grandes valas comuns do país, onde estariam enterrados mais de cem mil corpos, “numa estimativa muito conservadora” a partir de dados de satélite e testemunhos, segundo o seu responsável, Mouaz Mustafa, que visitou o local após a partida do ex-Presidente al-Assad para a Rússia.

Nesta zona desértica dos arredores de Damasco, permanecem vestígios de armazenamento de corpos sem sepulturas, mas poucas respostas sobre a proveniência daquelas pessoas, numa área de grande extensão e fechada por muros altos, cujo acesso é feito por um pórtico sem sinalização.

No interior, veem-se apenas duas sepulturas identificadas, e longas linhas paralelas de cerca de 150 metros de comprimento e três de largura, enquadradas por pequenos lancis de cimento, e que parecem ter sido escavadas previamente. Pelo menos uma delas encontra-se aberta e, sob tampas de betão, são visíveis sacos brancos cheios de ossadas, com o nome e um número do corpo que cada um contém, mas nenhuma data.

“Não creio que seja uma vala comum, está tudo demasiado organizado, é demasiado sistemático e profissional e a gente de Bashar al-Assad não ia gastar o seu tempo e dinheiro a enterrar pessoas que desprezava”, diz Marwa al-Farahan, 34 anos, que procura sete parentes há vários anos, todos homens, numa família que se tornou exclusivamente de mulheres.

“Estão todos desaparecidos e talvez perdidos”, lamenta em al-Qutayfah, onde várias pessoas procuram respostas dentro dos sacos e outras protestam com a profanação do lugar dos mortos. Ao contrário de informações colocadas nas redes sociais, os “capacetes brancos” da proteção civil dizem que ainda não visitaram o local e têm agendada uma deslocação a uma área suspeita na região.

À semelhança de muitos sírios desde o colapso de mais de 50 anos da dinastia Assad, Marwa Farahan tem percorrido em Damasco e nos seus arredores cada lugar de repressão agora libertado do antigo regime, incluindo a cadeia de Sednaya, a prisão da secção Palestina dos serviços de informações sírios, ou ainda a base aérea militar de Hezzeh, onde estavam cerca de mil presos políticos quando as forças dos grupos armados rebeldes de oposição tomaram a capital.

Segundo o diretor da Syrian Emergency Task Force, era precisamente o ramo da Força Aérea da “secreta” síria que recolhia os corpos das vítimas em hospitais militares, “após terem sido torturados até a morte”, e que seguiam depois em camiões duas vezes por semana entre 2012 a 2018 para as supostas valas comuns. Os cadáveres também seriam transportados pelos serviços funerários municipais de Damasco, cujo pessoal ajudava a descarregá-los de reboques refrigerados.

Esta descrição vai ao encontro do que relata à Lusa um homem que se identifica como Ala al-Ali, 42 anos, que trabalhava na região em 2014, quando “apenas as autoridades de Assad podiam entrar e ninguém sabia o que se passava aqui dentro”, mas recorda a existência de um posto de controlo de mercadorias próximo, que apenas autorizava a passagem dos reboques refrigerados duas ou três vezes por semana e sempre à noite, sem que se soubesse o que transportavam.

Para esta testemunha, é fácil associar a confirmação de ossadas no interior daqueles muros, quando finalmente pode ultrapassá-los, “às coisas terríveis que Assad fez contra o seu povo e há seguramente mais locais como este”, prossegue, observando que os seus 42 anos são uma idade equívoca: “Tenho dez dias e a minha vida apenas começou”, num início que coincidiu com a data final da ditadura.

Nos últimos dias têm-se acumulado outras notícias de supostas valas comuns e de depósitos de corpos, um dos quais hoje num armazém contendo 20 cadáveres em putrefação, perto da cidade de Sednaya e do grande complexo prisional homónimo, a norte da capital, onde estavam encarcerados cerca de três mil presos em condições sub-humanas, a maioria dos quais sem qualquer contacto com os seus familiares e com o mundo exterior, nem sequer o direito a um advogado e julgamento.

Era também um local de tratamentos brutais com instrumentos de tortura e de execuções por enforcamento e ainda de descrições de corpos comprimidos e depois dissolvidos em ácidos, e um dos principais destinos das buscas familiares das vítimas do chamado “matadouro de Assad”.

A prisão de Sednaya foi visitada na terça-feira pelo enviado da ONU para a Síria, Geir Pedersen, onde enfrentou a ira das pessoas próximas dos desaparecidos, muitos dos quais presumivelmente mortos, e deixou um alerta: “Se este processo não estiver a avançar na direção certa, existe um enorme perigo de que esta raiva possa explodir de uma forma que não é do interesse de ninguém”.

Hoje em al-Qutayfah e noutros pontos onde foram descobertos corpos não havia sinais da presença de militares ou polícias das novas autoridades de transição para evitar a destruição ou alteração de provas de possíveis crimes contra a humanidade. O antigo procurador do tribunal criminal internacional do Ruanda e ex-representante dos Estados Unidos para os crimes de guerra, Stephen Rapp, disse haver na Síria mais indícios e provas documentais do que aqueles existiam quando os altos dirigentes nazis foram julgados em Nuremberga.

Após o triunfo das forças rebeldes na Síria, o ex-procurador norte-americano já visitou, no âmbito da sua colaboração com a Syrian Emergency Task Force, al-Qutayfah e outro local suspeito em Najha, nos arredores sul de Damasco, e disse que a observação em primeira mão dá a oportunidade de “confirmar o que já se sabia sobre a máquina de morte que foi mantida e operada pelo regime de Assad”, adicionando que “é impensável que isto esteja a acontecer no século XXI”.

Em 2022, o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, uma organização sediada em Londres com uma vasta rede de informadores no país, calculou que mais de cem mil pessoas tenham morrido nas prisões desde 2011, nomeadamente em resultado de torturas, durante a violenta repressão às revoltas contra o regime no seguimento da Primavera Árabe, que deixaram vastas áreas residenciais reduzidas aos esqueletos dos prédios na periferia de Damasco e em muitas outras cidades mergulhadas numa guerra civil fratricida.

À semelhança de al-Qutayfah, também em Najha os relatos indicam ossadas visíveis onde se suspeita que possam existir muitas outras sob montes de terra nas imediações de um cemitério, a somar à remoção pelos “capacetes brancos” de outros corpos em putrefação junto da estrada do aeroporto de Damasco, em pleno centro da capital e noutros pontos.

As novas autoridades em Damasco criaram uma linha direta para pessoas e ex-prisioneiros identificarem locais e prisões secretas utilizadas pelo governo de Assad para encontrar qualquer vestígio de pessoas desaparecidas, após a libertação de milhares de prisioneiros em Damasco e noutras cidades, incluindo Aleppo, Homs e Hama.

Mas para o coordenador da equipa de corpos não identificados dos “capacetes brancos”, as valas comuns “são um segredo e um mistério que o regime deixou”, apesar de numerosas chamadas recebidas sobre lugares suspeitos, onde “apenas foram encontrados vestígios”.

Abdul Rahman al-Mawas ressalva que é ainda cedo para se tirar conclusões, porque “não há números, nenhuma localização, nenhuns documentos nem registos” sobre as denúncias recebidas e, mesmo na prisão de Sednaya, “não foi encontrado nada relacionado com corpos sepultados” nos seus subterrâneos e áreas adjacentes.

Desde 28 de novembro, já em plena operação relâmpago das forças rebeldes que derrubaram o regime em 13 dias, os “capacetes brancos” recolheram 528 corpos não identificados em Alepo, Homs e Damasco, mas “estavam todos no chão em campo aberto” e tinham de ser rapidamente recolhidos.

À medida que as suspeitas vão sendo divulgadas, levando a uma corrida de familiares, jornalistas e pessoas ligadas às redes sociais, o coordenador dos “capacetes brancos” avisa que “ninguém tem o direito de abrir uma vala comum”, nem sequer a sua equipa, por se tratar de “uma grande responsabilidade”, que exige os passos certos, sem erros: “Tenho consciência de será difícil para uma mãe, um filho ou um irmão, mas fiquem longe delas”.

Henrique Botequilha, enviado da agência Lusa