Aos 30 anos, ‘Junglist’, formada em ciências da comunicação, escreve e faz ‘podcasts’ no Glitch Effect, portal de notícias dedicado a videojogos, e fundou a comunidade Videojogo, Disse Ela, entre outras funções de comunicação.
Começou a jogar com seis anos, os videojogos acompanharam a sua vida até agora e na faculdade percebeu que “mais do que um ‘hobby’, era algo a explorar”, decidindo fazer uma tese sobre o assunto, conta à Lusa.
Apresentado em 2012 para concluir a licenciatura no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, o documento debruça-se sobre “uma análise ao consumo e comunicação de videojogos no feminino”.
A tese mostra uma análise do tipo de publicidade utilizada para promover videojogos e consolas, um perfil de jogadora, preferências do público feminino e recolhas de depoimentos e entrevistas.
Citados estão dados da Marktest que mostram uma assimetria de género no que toca à posse de consolas ou de um computador para jogar, mostrando que, entre 2006 e 2007, 58,6% das casas com um homem possuíam uma consola de jogos, contra 41,4% dos lares com um representante feminino.
Em 2017, a Marktest apresentou um estudo que colocava em 33,5% a percentagem de portugueses com uma consola em casa, o que não inclui o computador, com os homens acima da média (39,2%) e as mulheres a ficarem-se pelos 28,4%.
Depois da pesquisa, seguiu-se um caminho profissional para Vanessa Vieira Dias em que passou pela publicação especializada BGamer, entre outras publicações, chegando ao momento de fundar esta comunidade.
“Em junho de 2019, dei por mim a pensar que conhecia muitos jogadores, mas poucas jogadoras. Achei estranhíssimo, porque sabia que elas existiam, mas acabava por jogar muito mais com amigos do que com amigas. O que é que posso fazer para mudar isso?”, questionou-se então.
Essa forma “um bocadinho egoísta” de iniciar uma comunidade, como brinca, deu palco a um grupo “para jogadoras e mulheres que trabalham na indústria do ‘gaming’”, que se encontram para “conversa, troca de experiências e ‘networking’”, segundo a apresentação do projeto.
O sexto encontro, e o primeiro de 2020, foi em fevereiro, em Lisboa, chamando todo o tipo de interessados, de jogadoras casuais a ‘hardcore’, e passando campos de atuação como a programação, a comunicação ou o ‘publishing’.
No primeiro, confessa, nem sabia quem ia aparecer. Surgiram “cerca de 20 mulheres de todas as áreas do ‘gaming’” e essa resposta “mostrou que havia espaço e necessidade para um projeto como este”.
“É muito importante que estas mulheres se possam ligar e facilitar o processo de encontrar trabalho e oportunidades, de nos ajudarmos umas às outras. É muito mais fácil encontrarmo-nos, assim estamos todas juntas. E também criar um espaço seguro de troca de ideias e experiências, em que todas podem partilhar o que quiserem de forma segura, porque é um espaço de total aceitação, o mais inclusivo possível, sem nenhum tipo de discriminação”, ressalva Vanessa Vieira Dias.
A covid-19 levou a que se mudasse “um bocadinho a estratégia”, com encontros ‘online’, o que levou a iniciativa a “quebrar fronteiras”, com participantes de Macau, e sair também de Lisboa, com várias pessoas do Porto, por exemplo.
Esta criação de “uma forma de mulheres poderem ajudar mulheres” encaixa num ano “muito bom” de 2020, com “a cena nacional a tornar-se muito mais robusta”, mas que ainda assim, pela menor dimensão quando comparada com outros mercados, tem “muito dificultada” a entrada no tecido profissional.
“Já que é tão difícil por si só, e havendo mais profissionais masculinos, o que me parece ser a realidade, quis abrir este canal para ter mulheres a ajudar mulheres”, acrescenta.
Com “um grupo de mulheres que trabalham na indústria” e têm “presente a importância de marcar uma posição”, torna-se mais fácil “alguém chegar”, conclui.
Questionada sobre a toxicidade no meio dos videojogos, lembra “relatos complicados de abusos a várias mulheres, no campo internacional”, para comentar que a nível nacional poderá existir uma “desigualdade” de números mas, a nível pessoal, nunca se sentiu “descriminada pelos pares”.
Para combater essa disparidade, “mesmo que haja cada vez mais jogadoras”, o Videojogo Disse Ela quer “normalizar” a presença de mulheres no ramo, para que chegue o dia em que “não seja preciso batalhar para que estas barreiras desapareçam”.
A nível da comunicação e publicidade, aponta, ainda há “muita dificuldade em comunicar videojogos, porque o consumidor alvo continua a ser visto como sendo homem”.
Essa perceção, de resto, aconteceu com “amigos” de Vieira Dias, que a questionaram, após verem fotografias dos encontros, sobre a existência de “tantas mulheres a jogar”.
“É importante, não só para desmistificar para outras mulheres, mas mostrar também aos homens que nada disto são unicórnios, são mulheres normais. Não há um tipo, isso não existe”, atira.
Pluralidade de opiniões marca experiência feminina nos esports em Portugal
A pluralidade de opiniões e experiências “positivas”, mas não isentas de “bocas” e preconceitos, marcam a experiência feminina nos esports em Portugal, segundo contaram à Lusa várias profissionais do setor.
Com uma comunidade pequena mas “exigente” no país, o setor fica, em Portugal, longe dos documentados casos de abuso, assédio e outros tipos de violência ‘online’ que ‘atormentam’ o mercado a nível global.
Ainda assim, as mais de 10 profissionais do setor ouvidas pela Lusa lembram vários episódios de “bocas” relacionadas com preconceitos de género, quando a presença de mulheres entre equipas profissionais ainda é escassa.
A jogadora de Counter-Strike: Global Offensive Adriana ‘Yun’ Barbosa diz à Lusa que o sexismo só a faz “querer ganhar ainda mais”, mesmo que encontre frequentemente comentários machistas, há quem “se vá abaixo”.
Marta Casaca, uma fisioterapeuta a ‘full time’ que, nos esports, trabalha como apresentadora e entrevistadora, entre outras funções, lembra que sobretudo fora dos elencos de jogadores “o género acaba por não ter um impacto tão grande na comunidade”.
Já se vê “muito de tudo”, mesmo num “meio muito competitivo”, e ‘Picky Wicky’, como é conhecida na cena portuguesa, refere que é preciso “educar os outros” e permitir o erro para o corrigir, e não abandonar “à mínima adversidade”.
No campo competitivo, admite, “já é um bocadinho diferente”, porque poucas mulheres transitam para o setor competitivo apesar de muitas descobrirem e praticarem nos principais videojogos, além de “uma questão numérica”, o desfasamento entre o número de rapazes que exploram e experimentam videojogos em comparação com raparigas.
Em 2017, a Marktest apresentou um estudo que colocava em 33,5% a percentagem de portugueses com uma consola em casa. “Analisando os dados por género, observa-se que entre os homens o valor é superior à média (39.2%), enquanto nas mulheres é de 28.4%”, pode ler-se na nota que acompanhou o trabalho.
Casaca realça algumas estratégias que têm sido levadas a cabo para estimular a participação de mulheres em torneios, de eventos dedicados a outras iniciativas, mas há ainda “muita misoginia reportada pelas mulheres, que são atacadas ‘online’, e durante os jogos, por serem mulheres”.
Mesmo nunca tendo tido essa experiência, confessa, lembra que é importante que sejam utilizados “os canais e formas de lidar com essas adversidades e reportar as situações”, até porque são coisas que se repetem “na escola” e noutros contextos.
Já Ana Martins, ‘manager’ da equipa britânica Enclave de League of Legends, lembra a “fama” de a comunidade deste videojogo ser “muito tóxica”, algo com que concorda, embora tenha encontrado em Portugal uma comunidade que a “surpreendeu pela positiva”.
“Quando comecei com um podcast [sobre a comunidade do videojogo em Portugal], fiquei bastante surpreendida pela positiva. (...) A experiência que tive cá foi de uma comunidade próxima e querida. Foi muito diferente do que esperava”, comenta.
Para a ‘manager’, o problema é que “atrás de um ecrã” surgem comportamentos que “não são de seres humanos”, algo que se vê em qualquer lado “pelas redes sociais”, onde o ‘cyberbullying’ se torna “um bocadinho mais agressivo”, porque “não é físico mas é igualmente marcante”.
Concorda que “oportunidades” são a chave para aumentar a igualdade e a presença da mulher, até porque muitas vezes há uma visão, não só nos esports, de que “a credibilidade de uma mulher nunca é a mesma”, sobretudo num setor com “muitos adolescentes”.
Há hoje em dia, concede, “bastantes mulheres no meio”, que vão “abrindo o caminho” para mais e mais representação, mas Ana Martins considera que também vozes masculinas podem “bater o pé” quanto ao abuso ‘online’, até porque vem de “um problema de mentalidades” e educação.
Se em todo o lado em que trabalhou no setor “nunca foi sequer um assunto”, quando está “’online’, a jogar, é sempre” presente algum tipo de assédio ou abuso. Ana Martins espera, assim, que “um dia o género não seja relevante”.
O selecionador nacional de futebol virtual, Armando Vale, considera que há “uma questão de interesse” e não de capacidade, é apologista de competições femininas, mesmo que isso “em nada invalide” a participação mista, até porque “qualquer competição de esports é aberta” a qualquer género.
“Pode existir uma certa pressão das mulheres a jogar, porque às vezes ao lidar com público bastante jovem, podem não estar habituadas a levar com naturalidade jogarem contra uma mulher, por não terem ainda valores formados, não mostram o respeito que devem”, critica.
Mais tarde ou mais cedo, diz, vão ver-se “mulheres a competir ao mais alto nível em qualquer videojogo”, e essa certeza também se deve a um “trabalho demorado” que elogia por parte de figuras da comunidade, como ‘streamers’, que tentam sensibilizar o público, e sobretudo o público mais jovem, para a igualdade de género e contra o sexismo.
“Enquanto mulher, nunca me senti menosprezada. (...) Acho que os rapazes têm mais o gostinho do competitivo, e as raparigas encontram outras coisas”, começa por dizer à Lusa Sofia Andrade, uma enfermeira que desempenha várias funções no meio, incluindo de árbitra na Liga Portuguesa de League of Legends.
As mulheres recebem “sempre bocas, como mandar para a cozinha, por exemplo”, e Sofia lembra como, quando era mais nova, tinha a ambição de “estar numa boa equipa”, antes de a vida trazer “a faculdade e obrigações” e levar a uma escolha.
Concorda que “muita gente menospreza alguém só por ser rapariga, neste mundo”, e assumem que lhes estão destinados outros trabalhos que não o de jogadora, algo que, ressalva, “acontece em qualquer desporto”.
“Daqui a 10 ou 20 anos, não será igual, e já teremos mais raparigas nos esports e menos comentários. Estamos numa fase de transição de gerações, em que isto tudo está a mudar”, alerta.
A jornalista da RTP Arena Sara Lima lembra a comunidade “muito exigente” na qual alguns comentários menos positivos, para mulheres ou homens, “vão desaparecendo e dão lugar a reforço positivo” ao longo do tempo, afirmando-se “muito bem acolhida”.
“Tenho a certeza que [a situação] vai melhorar. Como eu cresci a jogar videojogos, muitas raparigas o fazem. (...) O trabalho que tem de acontecer é mais de proporcionar oportunidades a competições de equipas femininas”, propõe.
Profissional de comunicação na Braver, uma empresa especializada na área, Ana Guerra explica que nos esports há um “reflexo do que acontece no ‘gaming’ em geral”, com menos exemplos a seguir, razão pela qual pede “mais competições internacionais dedicadas a mulheres”, mais ferramentas para reportar abusos ou comportamentos nocivos e que os os jogos em si sirvam “como arma de protesto” e veículo de ensino.
Para a questão da visibilidade, Vanessa Vieira Dias fundou a comunidade Videojogo, Disse Ela, de ‘networking’ para profissionais do ramo, para “normalizar” esta presença feminina, que Ana Guerra pede para que se criem, também, “mais jogos que fazem sentido para mulheres” e também o aparecimento de mais eventos promotores de talentos, que se tornam, depois, exemplos para novas entradas.
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