Todos os dias, chegam entre 200 a 300 mortos a Varanasi (Benares), a mítica e mística cidade indiana à beira do rio Ganges onde os hindus acreditam que, ao serem cremados e lançados à água, a sua alma é libertada. Ou melhor, chegavam. Porque também aqui, naquela que é considerada a cidade mais sagrada da Índia, existe um antes e depois da pandemia de covid-19. E desde que o Governo decretou quarentena obrigatória a 1,3 mil milhões de habitantes na segunda nação mais populosa do planeta, não foram só os vendedores ambulantes que deixaram de atulhar as ruas ou os tuk-tuks que fizeram o trânsito respirar de alívio: as piras dos crematórios junto ao rio Ganges, que dia e noite enchiam o céu de fumo, também tiveram tréguas.

“Ainda não parámos de trabalhar”, conta Jagdish Chaudhary, funcionário de um dos crematórios de Varanasi, localizado no principal ghat (escadaria que desce até ao rio) da cidade. “Mas nenhum de nós nunca tinha assistido a uma queda tão abrupta nas cremações, nem visto os ghats tão desertos”, explica, em entrevista à agência AFP.

Jagdish pertence aos doms, uma casta especial para os hindus, responsável por guardar o fogo e zelar pelos crematórios onde as piras ardem 24 sobre 24 horas desde tempos imemoriais. Fazem turnos para manter as fogueiras acesas durante todo o dia e toda a noite e garantir que os corpos são completamente queimados. Entregam depois as cinzas aos familiares, que as deitam ao rio Ganges.

“Pelo menos podemos dormir um pouco”, desabafa. Em cinco gerações, Jagdish é agora o primeiro a conseguir ir para casa à noite. Em vez de 200 a 300 funerais por dia, há “apenas” 30 a 40, todos eles de habitantes locais. A multidão habitual de cremadores, comerciantes, peregrinos e turistas desapareceu completamente.

À espera do comboio há mais de três semanas

De acordo com estimativas, haverá no entanto dezenas de milhares de peregrinos “presos” em Varanasi. Oriundos de diferentes regiões do país, e até mesmo do estrangeiro, ficaram confinados na cidade quando foi decretada a quarentena obrigatória. Os transportes pararam e não têm como regressar às suas casas.

Naga Rao, um peregrino de 64 anos do sul da Índia que foi à cidade para rezar nos templos de Shiva, está fechado na hospedaria juntamente com os familiares há quase um mês. Diversos hotéis deixaram já de cobrar aos seus hóspedes pela estadia e a autarquia local está a tentar assegurar que os bens essenciais chegam a todos.

Na principal estação de comboios, os atrasos já eram habituais, mas nada que se compare com o cenário atual. Na sala de espera, um grupo de 50 viajantes aguarda há mais de três semanas por comboios que não chegam. São famílias com crianças, trabalhadores da construção civil, gestores, peregrinos, estudantes e um advogado. Em comum, o facto de estarem a centenas de quilómetros das suas casas quando a Índia suspendeu abruptamente a rede de comboios, que todos os dias transportava uma média de 23 milhões de pessoas.

Desde então, a casa destes passageiros é a sala de espera da estação de Varanasi, que estão proibidos de abandonar enquanto não for levantada a quarentena. Mas há quem diga que até têm sorte: os funcionários da estação, habituados a gerir mais de 100.000 passageiros por dia, estão agora empenhados em assegurar que nada falta a estes 50, incluindo chá quente, três refeições por dia, sessões de yoga pela manhã e de cinema ao anoitecer.

“Mesmo durante as situações de pior calamidade e violência, a cidade e os seus ghats nunca estiveram tão calmos”, observa Jagdish Chaudhary, que teme pelas consequências desta quarentena. Os cremadores vivem essencialmente dos donativos em dinheiro ou alimentos oferecidos pelos familiares dos mortos, que agora não conseguem levá-los até Varanasi. Por isso, confessa, “estamos todos a rezar aos deuses para que o coronavírus se vá embora rapidamente”.