A par do Governo, Marcelo Rebelo de Sousa tem sido pródigo em momentos de controvérsia — mais ou menos empolados —, e o mais recente deu-se logo a seguir à vitória da seleção portuguesa de futebol frente à Nigéria por 4-0, na derradeira preparação antes do Mundial2022.

Não é segredo para ninguém que tenha acompanhado os desenvolvimentos dos últimos anos que a escolha do Qatar como país anfitrião do Campeonato do Mundo é, no mínimo, polémica, e no máximo, uma catástrofe de relações públicas para a FIFA e um exemplo de tudo o que está errado no negócio do futebol.

Enumere-se apenas algumas das questões: registo de milhares de mortos dos trabalhadores que estiveram na construção dos estádios, muitos num regime de trabalhos forçados; o historial de perseguição a minorias como as comunidades LGBTQI+, tendo mesmo as autoridades do país feito saber que não tolerarão esse tipo de comportamento mesmo de adeptos estrangeiros; uma pegada ecológica brutal dada a construção de raiz de uma série de infraestruturas num estado sem grande tradição futebolística; a organização do torneio em plena época desportiva, criando gigantes disrupções nas restantes competições — tanto domésticas como continentais — porque seria impraticável no verão qatari.

Tudo isto, embalado no facto do Qatar ser, de facto, um estado autoritário governado por uma dinastia monárquica que se estende ao século XIX. Contudo, quando Marcelo se referiu a esta problemática, fê-lo de uma forma que pareceu desvalorizar as questões sociais e políticas em prol das desportivas.

O Qatar não respeita os direitos humanos. Toda a construção dos estádios e tal..., mas, enfim, esqueçamos isto. É criticável, mas concentremo-nos na equipa. Começámos muito bem e terminámos em cheio”, disse, na zona de entrevistas rápidas no Estádio José Alvalade.

As declarações do Presidente da República caíram mal, especialmente tendo em conta que não era ainda claro que Marcelo fosse ao Qatar numa deslocação oficial, algo que confirmou nessa mesma entrevista — isto, apesar de necessitar de autorização da Assembleia da República para fazê-lo.

Ora, a polémica espalhou-se durante o dia de hoje, a começar pela reação da Amnistia Internacional, uma das organizações que mais tem contestado a realização do torneio no Qatar. “Fiquei estupefacto com o comentário do Presidente da República, porque é uma pessoa que muito estimamos, e um cargo que muito respeitamos. Esse respeito e estima vem de que Marcelo Rebelo de Sousa normalmente está na linha da frente na defesa dos direitos fundamentais, dos direitos humanos”, disse Pedro A. Neto.

O diretor executivo da Amnistia, de resto, atribuiu as declarações à euforia do momento. Hoje, porém, Marcelo reiterou-as. "A minha ideia era, em território português, dizer o que penso sobre os direitos humanos do Qatar e, depois, no Qatar, dizer o que penso sobre os direitos humanos", apontou o Presidente da República.

Explicitando que pediu autorização por escrito à Assembleia da República para ir assistir ao Mundial2022, Marcelo Rebelo de Sousa garantiu que o faz por uma questão de interesse nacional. 

"Se houver autorização do parlamento e se houver concordância com o presidente da Assembleia da República e o primeiro-ministro e se eu for, irei pela seleção nacional, como numa visita de estado. Vai-se pelo interesse nacional", justificou Marcelo, mesmo em caso de ir a países "com regimes muito diferentes do nosso". Se não, "não podíamos nem visitar, nem receber, nem ter relações com três quartos do mundo, porque não são democráticos", defendeu o Presidente da República.

Se dependesse de todos os partidos com assento parlamentar, porém, Marcelo ficaria em terra. Tanto Bloco de Esquerda como Iniciativa Liberal e PAN manifestaram-se contra a ida, pedindo ao chefe de Estado para não se deslocar ao Qatar:

  • "Não podemos esquecer os direitos humanos e é por isso que peço ao senhor Presidente da República para reconsiderar, para que não vá ao Qatar, não é necessário que vá nem o Governo, nem o Presidente da República, nem a Assembleia da República", apelou Catarina Martins, adiantando que o BE entregou hoje mesmo no parlamento um projeto de resolução a este propósito.
  • O líder parlamentar da IL, Rodrigo Saraiva, disse que o Presidente da República “não pode fazer viagens de Estado em representação de Portugal a países onde os regimes não respeitam os direitos humanos. Esta é a nossa posição de princípio e por isso iremos votar contra quando se colocar essa questão desta viagem do Presidente da República ao Qatar”. Além disso, lamentou as “declarações inaceitáveis do senhor Presidente da República, colocando os direitos humanos para segundo plano ou na gaveta, como se fosse possível fazer uma pausa nos direitos humanos”.
  • O PAN entregou também um projeto de resolução no parlamento, no qual a deputada única do PAN, Inês Sousa Real, propõe que Augusto Santos Silva e o executivo de António Costa não se façam representar no Mundial de 2022 do Qatar, considerando uma decisão em contrário como “incompreensível”.  Em simultâneo, a porta-voz do Pessoas-Animais-Natureza pede ao Governo e ao presidente do parlamento português que condenem “as violações de direitos humanos no Qatar, nomeadamente a exploração laboral, os direitos das mulheres e da comunidade LGBTI+”.

Por seu lado, o PCP deixou também críticas ao regime qatari, mas fez saber que está contra um potencial boicote por parte de Portugal. “O PCP entende que a expressão inequívoca da defesa dos direitos pode assumir diferentes dimensões e não tem de passar por ações de boicote à participação desportiva de atletas ou equipas e ao seu acompanhamento institucional, como no caso da participação da seleção nacional", lê-se num comunicado.

Todavia, mesmo que todos estes partidos se juntassem para votar contra, não seria suficiente, já que ao centro, PS e PSD vão aprovar a ida de Marcelo e das restantes figuras de Estado ao Médio Oriente, como os seus líderes parlamentares revelaram.

No programa São Bento à Sexta, já gravado e que será transmitido a partir das 23:00, quer o presidente do Grupo Parlamentar do PS, Eurico Brilhante Dias, quer o líder parlamentar social-democrata, Joaquim Miranda Sarmento, asseguraram que irão dar assentimento ao pedido de autorização do chefe de Estado para assistir ao primeiro jogo da seleção, no próximo dia 24.

Assim, cabe a Marcelo confirmar a ida ou repensá-la. De qualquer das formas, não seria o único a recusar-se a ir ao Qatar. O presidente do Comité Olímpico de Portugal, por exemplo, declinou o convite.

"Não me sentiria bem em estar presente nessas circunstâncias", disse José Manuel Constantino. Esperemos que o Presidente da República tenha um estômago mais forte.