Ele tem barba branca e um bigode amarelecido a denunciar os vários anos como fumador. Ri-se muito. Muito. Quando achamos que vai acabar a gargalhada… continua. Ri-se tanto que a cara chega a ficar vermelha - a dele com falta de ar, a nossa de atrapalhação. É grande, como os abraços. Podia fazer de Pai Natal. E fez. Para os filhos, quando eram crianças.
Ela é pequena. Perfeita para caber nos grandes abraços dele. “Fazia lembrrrarrr uma atrrriz de cinema”, diz ele - assim mesmo, com os “erres” carregados. “Era, era! Igualzinha!”, ironiza ela, enquanto solta uma gargalhada. Mas sem ficar com a cara vermelha.
Eles são Wolfgang e Maria. E esta é a sua história de amor, contada em seis atos.
“Éramos completamente inconscientes”
Borstel, Instituto de investigação em biociências, Hamburgo, Alemanha. Outubro de 1971
Era sexta-feira. O chefe dele chamou-o: "Sr. Lind, tem de ir ao meu gabinete!”.
Wolfgang pensou que tinha feito alguma coisa mal. A medo, lá foi ele.
O chefe - uma pessoa de poucas palavras, alemão - disse: "Ouvi dizer que fala espanhol. É verdade?”. "Algumas coisas”, respondeu, pensando nos nove anos que tinha vivido na Colômbia durante a infância.
"Na segunda-feira vêm duas portuguesas. Não sabemos se falam alemão ou inglês. Portanto, tome conta delas!”. Assim, sem rodeios ou hesitações.
Maria tinha ido para a Alemanha, em parte, contrariada. Não era em Borstel que tinha imaginado fazer o estágio depois de terminar o curso de Química no Técnico. Queria ir para França com o resto dos amigos. Semanas depois, havia de estar a cantar e a tocar “La bamba” com aquele alemão, aprendiz de biólogo, que sabia falar espanhol, mas com quem acabava por falar em inglês.
Ao início, Maria não achou piada a nada. "Era tudo novo e frio".
Já ele, ficou interessado nela logo desde o início. Achava-a parecida com uma atriz de cinema de quem gostava muito [o nome, esse fica por revelar, a pedido da própria - da Maria, bem entendido; não da atriz. Mas pode confiar em nós, caro leitor: a comparação deixaria qualquer uma derretida].
Quando Wolfgang se começou a insinuar, Maria não resistiu.
Ao charme, juntaram-se longas conversas - sobre tudo -, e três meses passados o futuro era óbvio para os dois recém-conhecidos: o regresso de Maria a Portugal daí a um mês não haveria de ditar o fim daquela ligação. Queriam ficar juntos e era isso que iria acontecer. O “como” e “quando” viriam a descobrir pouco depois. Quanto ao “onde”, Portugal era o destino lógico: na Alemanha as pessoas viviam bem; era em Portugal que poderiam fazer mais diferença e lutar contra o regime, numa altura em que faltava pouco mais de dois anos para o 25 de Abril.
O que é que podia correr mal se, depois de um emprego bem pago no barco, ele se tinha despedido, estava sem trabalho, não falava português e queria vir viver para Lisboa?
Ele com 19 anos e ela com 26 despediram-se, voltaram para casa e disseram, sem hesitações, a cada uma das famílias:
- “Vou ganhar dinheiro para ir viver para Portugal!”
- “Vou alugar uma casa para nós os dois”.
“Éramos completamente inconscientes”, dizem hoje em dia.
O que é que podia correr mal?
Estava tudo combinado. Não havia como enganar. O que é que podia correr mal? Afinal só tinham passado cinco meses sem se verem, enquanto Wolfgang esteve a fazer investigação num barco de pesca do bacalhau pelos mares do Canadá e da Islândia. O que é que podia correr mal, se foram sempre comunicando, através dessa via rápida que são as cartas - às vezes censuradas -, enviadas com a regularidade de quem está no mar alto e só vai a terra de vez em quando? O que é que podia correr mal se, depois de um emprego bem pago no barco, ele se tinha despedido, estava sem trabalho, não falava português e queria ir viver para Lisboa? O que é que podia correr mal se ela tinha alugado um apartamento para os dois, embora não soubesse “tratar de uma casa”, segundo a mãe?
O mundo podia enviar os sinais que quisesse, mas eles estavam determinados. Com a segurança que uma combinação feita por carta a mais de 2600 quilómetros de distância permite, na tarde de 10 de junho de 1972, Maria foi até Santa Apolónia buscar o homem que a continuaria a fazer rir 47 anos mais tarde.
Ainda hoje festejam a data. A partir daquele ano, o Dia de Camões passou a ser também um bocadinho deles. Embora Camões seja só da Maria.
O diabo/amor/humor [queira, caro leitor, sublinhar o que mais interessa] está nos detalhes
Sentado numa cadeira, de perna cruzada, a ler A Bola, o homem da conservatória de Oeiras olhou para eles e perguntou: “Então, os noivos? Não vêm?”.
“Os noivos somos nós”, responderam a rir. Ele ia de calças e camisa, ela com uma saia comprida e uma blusa.
“Ah, bom, então vamos lá. Senhor Wlofgan… Wolvergang… Wlorfban…”.
Wolfgang e Maria não conseguiram conter o riso. Eles e as três pessoas que testemunhavam aquela união - e nenhuma delas era a mãe de Maria, que haveria de ficar zangada por não ter estado presente.
- “Bom: Senhor W-O-L-F-G-A-N-G!”, soletrou. “Quer casar com Maria da Conceição Gonçalves?”.
- “Está bem!”
- “Mas qual ‘está bem’? Tem de dizer ‘Sim, quero’, homem!"
- “Sim, quero”, disse, desatando-se a rir.
E foi assim, entre gargalhadas que deixaram o funcionário da conservatória irritado - “tinha razão, coitado”, empatiza hoje Maria -, que a 15 de junho de 1974, Wolfgang Lind e Maria Gonçalves casaram pelo civil, numa cerimónia muito discreta - mas nem por isso aborrecida.
Maria, que pediu para continuar com o nome de solteira, haveria de descobrir, muitos anos mais tarde, que afinal naquele dia se tinha tornado Lind também.
Camões não é nosso
- "Wolfgang, queres ir ao cinema?"
- "Não".
- "Estás chateado?"
- “Não. Porque pensas que estou chateado?"
- "Porque disseste que não".
- "Tu perguntaste se eu quero. Eu disse que não”.
Malentendidos como este aconteceram - e ainda acontecem - muitas vezes na vida de Wolfgang e Maria.
“É uma questão cultural”, explica Wolfgang, que fez um doutoramento em Psicologia sobre casais biculturais.
Ao fim de uns tempos em Portugal, percebeu: “Uma pessoa, quando não quer algo, diz ‘Ah, não sei’, ‘Talvez’. É equivalente a um ‘não’. Não se pode dizer diretamente”.
Maria explica de outra maneira: “Não é a questão de dizer diretamente. É que ele às vezes é muito seco. Os alemães às vezes são muito brutos”.
É de tal modo intenso que a literatura chega a afirmar: é como se uma pessoa num casamento bicultural vivesse duas vezes.
Apesar das diferenças, Wolfgang e Maria entendem-se muito bem. Para Wolfgang o facto de falarem muito é extremamente importante.
De tal modo importante que o casal criou um espaço semanal para garantir que na família todos se ouvem e que há uma partilha cuidada da vida de cada um, dos problemas, dos projetos de futuro, das emoções. São as chamadas reuniões semanais, e acontecem desde que os filhos, Pedro e Andreas, entraram para a escola.
Hoje em dia as reuniões ainda resistem, embora com menos regularidade e às vezes já só a dois - até porque os filhos vivem e trabalham fora de Portugal.
Ainda assim, ao fim de tantos anos juntos, Wolfgang e Maria são muito rápidos a assumir que continua a haver mal entendidos, principalmente com as famílias de origem.
De qualquer forma, Wolfgang hoje já não se considera “bem alemão”.
“Tu és muito português”, concorda Maria.
“É verdade, mas há sempre coisas que ficam. Identidades diferentes. Eu nunca posso dizer ‘O nosso Camões’”, diz a rir, até ficar com a cara vermelha.
“É meu, é só meu”, provoca Maria, devolvendo logo a seguir: “Tu tens o teu Nietzsche”.
Identidades e culturas, dinâmicas conjugais, conflitos e negociação. Do mundo da investigação, Wolfgang aplica os resultados da tese à vida lá em casa: embora os casais monoculturais e biculturais não tenham diferenças estatísticas significativas em termos de satisfação conjugal, o grau de intimidade em média é superior quando os cônjuges vêm de contextos culturais distintos. Há mais conflitos, mas também mais negociação. “É um processo que nunca acaba”, explica Wolfgang.
É de tal modo intenso que a literatura chega a afirmar: é como se uma pessoa num casamento bicultural vivesse duas vezes.
Wolfgang e Maria, como que a fazer jus à ciência, resolveram duplicar os rituais e no ano passado casaram pela segunda vez. Agora, pela igreja.
Encontros, desencontros e reencontros: Em busca do grande amor
É dia 2 de janeiro. Na pequena capela de Nossa Senhora da Rocha, em Queijas, estão Wolfgang e Maria. Com eles, mais 15 convidados. E o padre.
É um casamento íntimo e familiar. Tão familiar que a homilia podia ter sido tirada de uma conversa à mesa lá em casa.
É assim que Andreas gosta de celebrar as missas. "As homilias dele são muito do dia-a-dia", explica Maria.
Depois de tantos anos de reuniões familiares, já todos se conhecem muito bem: Wolfgang e Maria conhecem bem o filho, e Andreas conhece bem os pais.
Alguns anos antes, se o casal não contava com este casamento pela igreja, menos ainda esperava que o "declaro-vos marido e mulher" fosse dito pelo próprio filho.
E, por isso mesmo, aquele acabou por ser um dia para celebrar o amor, o grande amor, nas suas várias formas.
O grande amor entre Wolfgang e Maria. O grande amor que é cada momento de “encontro com alguém com quem existe sintonia, empatia, na simplicidade”, partilha Andreas num livro onde fala sobre o seu percurso desde que tomou a decisão de entrar para a Companhia de Jesus. O grande amor de Maria na sua reaproximação à Igreja. Depois de muitos anos afastada, poder comungar de novo é ganhar “mais uma coisinha doce cá dentro” - com o valor acrescido de ter recebido a hóstia pela mão do próprio filho. O grande amor de Wolfgang, para quem este segundo casamento significa um novo discernimento sobre a relação de casal, agora que são eles "e Deus”.
Na vida deles o tédio não existe. Se ele diz “não”, ela diz “talvez”; se ela diz “nunca”, ele responde “às vezes”; quando ela pede para não contar, ele é desbocado; se ele é muito afirmativo, ela questiona.
Ping-pong, pinga-amor
O que é que faz o coração bater mais forte em relação ao outro?, perguntámos, antes de nos despedirmos de Wolfgang e Maria.
“Eu gosto muito da espontaneidade dele. Embora às vezes me irrite [ri-se]. Mas gosto muito. Acho graça à maneira como fala. Ainda hoje”, diz Maria a sorrir com cada músculo que tem na cara.
“Para mim, é o teu cheiro! Muitas pessoas dizem que com a idade a chama desaparrrece. É uma chama diferrrente sem dúvida, mas eu não sinto isso. Eu gosto muito de ti!”, exclama efusivo Wolfgang.
Ao longo de quase duas horas, Wolfgang e Maria contaram a sua história. Interromperam-se, falaram um por cima do outro, provocaram-se, acabaram as frases alheias, contrariaram-se, riram, concordaram, corrigiram-se.
Tal como tinham avisado: na vida deles o tédio não existe. Se ele diz “não”, ela diz “talvez”; se ela diz “nunca”, ele responde “às vezes”; quando ela pede para não contar, ele é desbocado; se ele é muito afirmativo, ela questiona.
Numa espécie de ping-pong ao ritmo da biculturalidade, Wolfgang e Maria vivem numa descoberta permanente. “Eu acho que a descoberta nunca acaba. Até porque as pessoas mudam também, não é?”, desafia ele.
Numa espécie de balanço da conversa, Wolfgang faz mais um ‘ping’: “Foi interessante. É um bocadinho surreal a nossa vida. Sai muito fora dos esquemas”.
“Será que sai?”. Pong.
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