Desde a ascensão ao poder de Xi Jinping, em 2013, a China adotou uma política externa mais assertiva, que se materializa no gigantesco plano de infraestruturas 'um cinturão, uma rota', que visa conectar o sudeste Asiático, Ásia Central, África e Europa.

A iniciativa é vista como uma versão chinesa do Plano Marshall, lançado pelos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, e que permitiu a Washington criar a fundação de alianças que perduram até hoje.

Ilustrando esta nova vocação internacionalista, o país acolheu, no espaço de um ano, as cimeiras do G20 e do bloco de economias emergentes BRICS [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul].

Trata-se do início de uma "nova era" em que "a China se aproximará do palco principal na governação de assuntos globais", como descreveu o próprio líder chinês, no discurso inaugural do XIX Congresso do Partido Comunista (PCC), em novembro de 2017, abdicando assim do "perfil discreto" na política externa de Pequim, que vigorou durante décadas.

Mas os avanços da China têm suscitado divergências com as potências ocidentais, que veem uma nova ordem mundial ser moldada por um rival estratégico, com um sistema político e de valores profundamente diferente.

Nos Estados Unidos, a ascensão ao poder de Donald Trump ditou o acordar de disputas comerciais, com os dois países a aumentarem as taxas alfandegárias sobre centenas de milhões de dólares de produtos de cada um. A liderança norte-americana teme perder o domínio industrial global, à medida que Pequim tenta transformar as firmas estatais do país em importantes atores em setores de alto valor agregado, como inteligência artificial, energia renovável, robótica e carros elétricos.

A marinha norte-americana reforçou também as patrulhas no Mar do Sul da China, reclamado quase na totalidade por Pequim, apesar dos protestos dos países vizinhos. No mês passado, navios dos dois países quase colidiram naquele território.

Mas se referências a uma nova guerra fria são agora comuns em Pequim e Washington, a Europa tem assegurado o seu compromisso em dialogar com a China, apesar de estar também a colocar entraves aos avanços do país.

Os investimentos chineses em setores estratégicos do continente, após a crise financeira global de 2008, levaram a Comissão Europeia a estabelecer já um novo mecanismo de controlo sobre o investimento externo.

A nova lei, aprovada esta semana, visa responder aos investimentos "predatórios" de Pequim, sobretudo em infraestruturas e tecnologia, que permitem a transferência de 'know how' para empresas chinesas competidoras.

Nos últimos dez anos, enquanto algumas economias estagnaram, a China manteve altas taxas de crescimento económico, aumentando a quota no Produto Interno Bruto global de 6% para quase 16%.

O país tornou-se, no mesmo período, um dos principais investidores em Portugal, ao comprar participações em grandes empresas das áreas da energia, seguros, saúde e banca, enquanto centenas de particulares chineses compraram casa em Portugal à boleia dos vistos gold.

Lisboa tem sublinhado a convergência com a China em soluções multilaterais: "Há toda uma vontade de aprofundar o relacionamento bilateral, para que este tenha efeitos em organizações multilaterais, e que possa, defendendo o interesse dos dois países, ser cada vez mais uma realidade", afirmou o presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, numa visita recente a Pequim.

"É evidente que a China é uma grande potência, não apenas uma grande potência económica, mas que tem também uma doutrina estratégica em termos de Defesa e em termos militares, que pode causar algumas dificuldades a alguns parceiros, sobretudo aqui na região, mas tradicionalmente temos visto a China como um país que tem dado contributos para a paz", disse.

Académico defende que investimento chinês é plano para controlar sul da Europa

O investigador Philippe Le Corre, em entrevista à agência Lusa, considera que a China está a construir uma "comunidade de amigos" no sul da Europa - onde se incluem Itália, Grécia e Portugal - "através de grandes investimentos, que lhe conferem poder sobre estas economias" e dissuadem posições contrárias aos seus interesses.

Philippe Le Corre é formado em Ciência Política e Direito pela Universidade de Sorbonne, especialista em estudos asiáticos e investigador associado do Carnegie Endowment for International Peace, um ‘think tank’ sobre política externa com centros em Washington, Moscovo, Beirute, Pequim, Bruxelas e Nova Deli.

Responsável pelos programas de estudos Europeus e Asiáticos, Philippe Le Corre tem uma série de artigos publicados sobre a emergência da China e o seu plano para dominar o sul da Europa.

"Se a China continuar a comprar portos e aeroportos isso dar-lhe-á um certo poder sobre a economia destes países e, em consequência, será muito difícil para os governos, a longo prazo, dizer não à China", sustentou.

Para Philippe Le Corre, a compra, por parte da China, de infraestruturas, nomeadamente portos, não é uma questão de investimento, mas de influência: "Se a China controlar todos os portos do Mediterrâneo, como no caso do porto de Sines, isso dará à China grande poder e influência na soberania desses países", sublinhou.

Por outro lado, questionou o que considerou o súbito interesse chinês nos Açores.

"Porque é que, de repente, a China está tão interessada no Atlântico? É um mistério para mim. Entendo a perspetiva do Governo dos Açores, que precisa de dinheiro [...] mas este é o lugar onde foi organizada a cimeira da guerra do Iraque, é simbólico para a relação transatlântica", lembrou.

O investigador assinalou que, em última análise, é o Estado chinês quem está a comprar as empresas portuguesas: "O problema é que é o Estado chinês que está a comprar, não é uma companhia privada, não é um negócio. São empresas estatais, entidades do Partido Comunista Chinês [PCC], cujos CEO são responsáveis do PCC", apontou.

A falta de reciprocidade nos investimentos é outro problema apontado por Philippe Le Corre no relacionamento da China com a Europa.

"Muitos destes investimentos chineses têm sido úteis, mas e os investimentos europeus na China? Podem os europeus ou outros estrangeiros assumir o controlo de um porto, de um aeroporto ou de uma companhia de eletricidade na China? Podem investir numa companhia aérea, podemos ter um 'Alibaba' europeu na China? Claro que não", afirmou.

"Permitimos que empresas estatais tomem conta das nossas empresas e ao mesmo tempo não há reciprocidade e se não há reciprocidade não é jogar limpo", reforçou.

Crítico da iniciativa chinesa "Uma faixa, uma rota", que prevê o controlo da China em infraestruturas portuárias em todos os continentes, Philippe Le Corre sustenta que a visita de Xi Jinping a Lisboa irá clarificar a posição de Portugal relativamente à adesão a este projeto.

Philippe Le Corre sustenta que, internamente, a China já não fala tanto da iniciativa e manifesta-se surpreendido com algumas declarações entusiastas de responsáveis portugueses sobre a integração do porto de Sines neste projeto.

"Portugal é um bom aluno, sempre a levantar a mão e a dizer estou aqui, não se esqueçam de mim, quero fazer parte disso. Esta visita será importante porque irá mostrar de que campo Portugal quer fazer parte", defendeu.

Reconhecendo que, do ponto de vista de Portugal ter investimento estrangeiro "é muito importante", Le Corre apontou o exemplo de Espanha, que Xi Jinping visitou na semana passada, que não aceitou integrar a iniciativa "Uma faixa, uma rota".

"A visita espanhola é um modelo interessante para seguir, mostrou um equilíbrio interessante entre os valores europeus e os interesses espanhóis", disse.

"Claro que Portugal será diferente, porque Portugal quer ser sempre diferente", vaticinou, sublinhando a importância de o país se manter fiel aos valores europeus e aos parceiros da União Europeia e Aliança Atlântica (NATO).

"A Europa esta numa situação difícil, há muitas divisões, há o Brexit, cresce o populismo em vários países, mas a situação geopolítica exige que nos mantenhamos juntos. Portugal é um país europeu, tem um lugar no Conselho Europeu e é muito importante que se mantenha fiel aos valores, às regras e ao Estado de direito [europeus]", reforçou