“Ainda hoje não sei porque é que não vencemos o tetracampeonato”, confessava Toni, antigo jogador e técnico encarnado ao Observador há cerca de um ano, sobre a última tentativa do Benfica em alcançar o ‘tetra’, em 1977/78. Na altura Toni era jogador e a verdade era uma: “em ano de Mundial ganhava sempre o Sporting e o Benfica não era tetracampeão. Era sina”.
Foram três as vezes que os leões "tramaram" o Benfica na demanda pelo tetra; primeiro em 1965/66, depois em 1969/70 e novamente em 1973/74. No entanto, naquela época de Toni, altura em que os encarnados eram orientados pelo inglês John Mortimore, seria o FC Porto a roubar-lhes o título e o tetra, tudo de uma só vez.
Há quinta não foi de vez, naquele que era um campeonato que viria a ficar para a história. O Benfica tricampeão nacional em título não perdeu um único jogo, e ainda assim foi segundo classificado; aquele lugar que, na gíria, se diz ser o primeiro dos últimos.
Toni confessa que não percebe porquê. Na mesma reportagem, surgem Nelinho e Artur Correia, e ambos, de forma diferente, acabam por corroborar as palavras daquele que foi o último treinador português a ser campeão na Luz até à chegada de Jorge Jesus. E realmente torna-se difícil perceber porquê, aquele Benfica tinha tudo: Bento na baliza, Pietra e Humberto Coelho na defesa, Toni, Mário Wilson e Shéu no meio-campo e os míticos Vítor Baptista e Chalana no ataque.
Mas do outro lado estava a equipa de Pinto da Costa e José Maria Pedroto, que estreava uma dupla ofensiva imparável: Fernando Gomes e António Oliveira. Os dragões, mesmo somando uma derrota, suplantaram as águias e puseram fim ao sonho do tetra.
Esta época, com o Benfica com estatuto de tricampeão e não sendo ano de Mundial — seguindo a arte da futurologia de Toni — o papel de impedir os encarnados de entrarem no círculo restrito de equipas da I Liga portuguesa que conseguiram vencer quatro campeonatos consecutivos recaía sobre o FC Porto.
E é daqui que partimos para a história de um campeonato que se previa ser discutido a três e acabou por ser a dois, da época do tetra, 39 anos depois de Mortimore, 40 anos depois de Hagan 47 anos depois de Otto Glória, 51 anos depois de Béla Guttman e 78 anos depois de Lippo Hertzka, este contanto com as três conquistas consecutivas do campeonato experimental — todos estes, timoneiros protagonistas dos cinco tetras que sempre fugiu.
O Benfica de Rui, feito por e para a Vitória
Apesar dos 35 títulos nacionais conquistados, o Benfica nunca tinha conseguido o ‘tetra’ e esse foi o principal peso nos ombros para Rui Vitória, no ínicio da época. Os adeptos queriam o quarto campeonato. Era legítimo. Afinal de contas, se o Sporting (um tetra) e FC Porto (um tetra e um penta) têm, porque é que eles não haveriam de ter?
Entregar esta responsabilidade ao técnico das águias era uma moeda de dupla face: primeiro, era um voto de confiança depois de na época passada ter conseguido o campeonato nacional, a Taça da Liga e uma boa campanha na Liga dos Campeões, por outro era o teste que levaria os adeptos encarnados a comprovar a qualidade do timoneiro.
Na sua segunda época ao serviço das águias, este já não era o Benfica pós-Jesus. Rui Vitória tinha definitivamente assumido o comando do ‘Ferrari’ e já o guiava à sua à maneira. Esta era a época de ser um Benfica 100% à imagem e semelhança do ribatejano.
A identidade do Benfica de Rui Vitória estava, agora, bem definida. Em 4-4-2, subiu a defesa, aprimorou o contra-ataque e o ataque rápido e deu a batuta do meio-campo a Pizzi, a verdadeira extensão de Vitória dentro de campo. De ‘JJ’ ficou aquilo que valia a pena conservar: o saber ganhar. Com Rui Vitória, o Benfica “perde” em nota artística aquilo que ganha em frieza e pragmatismo.
A época, contudo, não começou da melhor forma. Sentia-se em campo a saída de dois jogadores predominantes na boa campanha da época transata: Nico Gaitán e Renato Sanches. E se, por um lado, o espaço deixado livre pelo mago argentino tinha sido ocupado por vários jogadores contratados no defeso (Cervi, Zivkovic, Carrillo, Rafa), o mesmo não aconteceu para o lugar deixado em branco pelo internacional português.
Um empate logo no ínicio deixou o Benfica a dois pontos do primeiro lugar, que foi alternando entre leões e dragões. Nessa altura, os encarnados eram dinâmicos, rápidos, criativos, movimentados pela dinâmica dos jovens de Rui Vitória (André Horta e José Gomes começavam a ser opções para a equipa principal, Nélson Semedo era dono e senhor do lado direito da defesa, Gonçalo Guedes tinha lugar cativo na frente de ataque).
No entanto, o momento em que o Benfica passa para a liderança, à quinta jornada, e não a larga mais até à conquista do campeonato, é também a altura em que a aposta nos mais jovens cai, em que o dinamismo dá lugar ao cinismo, e em que a velocidade se espelha, sobretudo, no contra ataque. E era este o Benfica que ficaria para conquistar o tetra, mais velho que o ano passado, mais sólido na defesa (menos golos sofridos) e menos concretizador (menos golos marcados). Era um Benfica “à Sacchi” (histórico treinador italiano), como Pep Guardiola tinha anunciado a época passada após a eliminatória da Liga dos Campeões que trouxe o Bayern Munique ao Estádio da Luz.
E pluribus unum
Este foi um ano em que pouco espaço houve para espetacularidades, não fossem as lesões uma dor de cabeça constante para o técnico das águias. Com Jonas lesionado grande parte da época, o lugar de estrela da equipa ficou vago. Quem é que Vitória colocou a ocupar esse cargo? Todo o plantel.
Com uma vasta onda de lesões, em que vários titulares — Grimaldo, Jonas, Mitroglou, Rafa, Nelson Semedo, Fejsa — ficaram afastados durante muito tempo dos relvados, Vitória mostrou que conta com todos, e todos mostraram serviço.
No final, se tivéssemos de escolher alguém, teria de ser Pizzi ou Luisão. Se, por um lado, o médio internacional português acabou por ser a extensão de Vitória dentro de campo, demonstrando grande capacidade de visão, qualidade de passe e, acima de tudo, cultura tática — deambulando entre a linha e o centro, fosse para ocupar espaços, fosse para desequilibrar no ataque —, o capitão foi o baluarte da união benfiquista que se estendia do balneário ao interior das quatro linhas.
Foi a cara deste Benfica sem um máximo goleador — nenhum ponta-de-lança se distinguiu como nas épocas passadas —, sem nenhum mágico — Cervi encantou a espaços e Salvio esteve longe da sua melhor época —, e sem nenhum muro na defesa, fruto da grande quebra exibicional do ‘iceman’ Lindelof.
Óh Rui e os putos?
Um dos motivos de Rui Vitória ter sido levado aos ombros pelos adeptos do Benfica na época passada foi o facto do treinador ribatejano ter conseguido fazer sobressair o melhor da formação encarnada. De um ano para o outro jogadores como Ederson, Lindelof, Nélson Semedo, Renato Sanches ou Gonçalo Guedes eram titulares indiscutíveis e cobiçados por meia Europa.
Os benfiquistas celebravam os resultados da formação, que sempre viveu na sombra da Academia do seu rival da segunda circular que exibia dois galardoados com a Bola de Ouro. Dizia-se que era por isto que JJ não tinha sido bom — porque não aproveitava jovens, porque tinha deixado sair talentos como Bernardo Silva ou João Cancelo sem nunca terem sido devidamente aproveitados na equipa principal das águias.
Depois de o ter feito na época passada, nesta tal não aconteceu. Os únicos jovens lançados pelo técnico ribatejano foram André Horta, jogador formado no clube e recomprado ao Vitória de Setúbal, José Gomes, avançado da formação, e Yuri Ribeiro, defesa esquerdo que apenas alinhou nas taças. No campeonato, o FC Porto não dava tréguas, pelo que as opções de Vitória recairam quase sempre em jogadores que vieram de fora ou nos mais experientes que já integravam o plantel.
Os ataques ganham jogos, as defesas campeonatos. Ou como o prático se sobrepõe ao bonito
Até ao fim do campeonato haveria de ser assim, Benfica e FC Porto ‘taco a taco’. Os encarnados pragmáticos e consistentes, os dragões mais espetaculares, mas erráticos nas horas decisivas.
Aliás, o Benfica é campeão por mérito, mas também com sorte, aquela estrelinha indispensável a qualquer equipa que levanta o troféu da liga no final da época. Neste caso, a estrelinha foi a incapacidade do FC Porto de aproveitar alguns dos deslizes dos encarnados e, assim, passar-lhes à frente.
Quando o Benfica empatou, na 26ª jornada, frente ao Paços de Ferreira, na capital do móvel, os dragões não foram além de um empate, em casa, frente ao Vitória de Setúbal. Quando defrontou as águias na Luz, naquele que muitos consideravam o jogo do título, a equipa de Nuno Espírito Santo não conseguiu vencer e roubar a liderança aos pupilos de Rui Vitória.
E nem o empate dos campeões em título frente ao Sporting foi aproveitado, com os portistas a somarem dois empates consecutivos, frente ao Sporting de Braga e ao Feirense. No entanto, o momento decisivo e que deu ao Benfica a possibilidade de levantar o troféu de campeão prematuramente, foi o empate dos dragões na Madeira, frente ao Marítimo, a um golo.
No final do jogo em Vila do Conde, onde o Benfica venceu por 0-1, com um golo de Raúl Jieménez, Rui Vitória disse a frase que mais espelha a época dos encarnados: “Chegámos, marcámos, ganhámos e vamos embora”.
E assim se fez um campeonato. Curioso que o tão desejado ‘tetra’ não estava na ponta dos pés do ágil Chalana, não esteve no pontapé de Eusébio, na mente do eterno capitão Mário Coluna ou na sabedoria de talentosos treinadores como Béla Guttman ou Jimmy Hagan.
Afinal, o tetracampeonato estava no pragmatismo e na união de grupo. Estava numa defesa sólida e num ataque solto onde avançados e extremos tinham a liberdade para trocarem entre si, decidir por onde ir, escolher quando e onde rematar. Tudo isto unido por um meio campo sólido, forte e inteligente.
O tetra estava ali, a balançar entre os gestos de um ribatejano inconformado por uma herança que parecia sobressair-se ao homem, à equipa e aos títulos. Estava ali, no Benfica de Rui Vitória.
Comentários