O Catenaccio surgiu na Suíça pela mão de Karl Rappan, treinador do Servette, uma equipa semi-profissional. Baseada numa estratégia defensiva de absorção do poder ofensivo da equipa adversária, as equipas que abraçavam esta filosofia tática usavam o pragmatismo, vulgo contra-ataque, para fazer rodar o marcador a seu favor. Após ter dado ares da sua graça na seleção suíça, esta estratégia tornou-se no cunho do campeonato e futebol italiano quando foi instituída no Calcio pelo treinador Nereo Rocco, neto de austríacos e técnico do Triestina.

Rocco conseguiu um elogioso segundo lugar na liga italiana em 1948 e ofereceu ao país um legado na maneira de jogar que, mais tarde, viria a irritar uma Europa que procurava balancear a criatividade e ousadia sul-americana com a cultura tática exigida em campeonatos como o inglês e o alemão. Nos anos 60, esse mesmo cunho traduziu-se num bicampeonato europeu do Inter de Milão treinado por Helenio Herrera. O próprio Rocco viria a colher os frutos da semente que semeara ao vencer uma Taça dos Campeões Europeus com o AC Milan em 63. Na seleção, Vittorio Pozzo também bebeu do cinismo e fez da Itália bicampeã mundial em 1934 e 1938.

Esta é a base teórica para tentar perceber aquilo que Eusebio Di Francesco quis fazer. O xadrez romano para assimilar a estratégia foi surpreendente com uma tática de três defesas, raramente utilizada esta temporada, Jesus, Marcano, Kerdsorp e Perotti, jogadores com menos de 800 minutos de campeonato foram titulares em oposição a Fazio, sentado após o jogo com a Lazio.

Não apostando em jogadores mais inteligentes como Brahimi e Olivier, Sérgio Conceição atirava ao relvado um onze de ataque e de vontade. Ele tinha dito na conferência de imprensa que a equipa não teria pressa em resolver a eliminatória

O FC Porto, que abdicou dos jogadores mais criativos e inteligentes - Brahimi e Óliver -, deu a titularidade a uma dupla inédita na Liga dos Campeões (Marega-Tiquinho Soares) e espaço a Jesus Corona e Otávio. Sérgio Conceição preparou assim um onze de ataque e de vontade, apesar de ter dito na conferência de imprensa que a equipa não teria pressa em resolver a eliminatória. Contudo, o coração pensa tanto quanto a cabeça, e os dragões estavam de orgulho ferido depois da derrota em casa diante do SL Benfica (1-2), que os empurrou para o segundo lugar do campeonato e precisavam de vencer para passar a eliminatória. Ou seja, a turma portista teria de partir para este jogo com uma postura ofensiva e potencialmente irresponsável, ou seja, teoricamente, o oponente perfeito para uma equipa com a mentalidade do Catenaccio. Tudo isto no papel, claro.

Aos 15 minutos os dragões já somavam seis disparos à baliza de Robin Olsen contra zero no impávido mundo de Iker Casillas. O golo azul e branco chegou com naturalidade aos 27 minutos após uma enorme recuperação de Moussa Marega, que entregou a bola ao ‘hiperativo’ Jesus Corona, tendo este retribuído o favor e devolvido a bola ao maliano, que descobriu Tiquinho Soares perto da linha de golo. Percebemos que a dupla inédita na Europa resultava e que esta Roma não era uma equipa de Catenaccio. Bastava olhar para a televisão e ver na defesa várias falhas de marcação, laterais a não criar largura suficiente nas alas e Dzeko absolutamente sozinho numa espera constante pelo demorado apoio.

Enquanto De Rossi, o último guerreiro do Coliseu, se manteve em campo, a AS Roma conseguiu disfarçar o desconforto com a estratégia. O capitão conseguiu camuflar a falta de equilíbrio entre as linhas de meio-campo e defensivas e ainda converteu um pénalti com toda a classe que se espera de um jogador com a sua experiência, conquistado após uma falta do irresponsável Éder Militão sobre Perotti. No entanto, poucos minutos depois era substituído com queixas físicas e com o médio saiu o que sobrava da tradição italiana. Ficaram só os buracos e as trapalhices.

A segunda parte abria praticamente com uma oportunidade de golo para o FC Porto: cruzamento de Militão na direita, desvio de Marcano e Soares a cabecear de cima para baixo, como mandam as regras, mas a bola bateu uns centímetros de distância do local onde uma fantasiosa trajetória levaria a bola para dentro das redes e o esférico passou por cima da barra.

Quatro minutos depois Marega corrigiu a situação. Em resposta a uma cruzamento largo de Corona, o maliano surgiu na cara de Olsen ao segundo poste, levantou o pé e fuzilou. Estava empatada a eliminatória e lançado o caos. Um golo da formação italiana deixava o FC Porto a precisar de marcar mais dois golos, um golo dos dragões numa casa cheia e a ressacar por uma grande vitória embalaria, com certeza, os pupilos de Conceição para os quartos-de-final. E se a rigidez do Catenaccio, que já vivia em fragilidades táticas e no medo da eliminação, alimentado pela derrota diante da Lazio na última jornada da Serie A, o futebol de "raça" do treinador dos dragões (que enquanto jogador vestiu a camisola da Lazio, Parma e Inter de Milão) estava no seu habitat natural.

A entrada de Brahimi e Fernando Andrade até ao final da segunda parte alimentou um dragão de coração forte, que até aos 90 minutos foi repartindo quase de dois para um as oportunidades com uma Roma que, após o sofrimento psicológico, fazia sobressair o cinismo e a capacidade de ainda partir para contra-ataque.

Íamos para prolongamento e a partir daqui proponho um acompanhamento diferente destes 30 minutos de jogo. As premissas teóricas estão dadas: Roma com mais pernas para poder contra atacar com perigo, o FC Porto em casa a jogar com o coração e alguma - e natural - sede de vingar o último jogo naquele relvado. Havia uma ligeira anarquia no ar. E por isso, para que o caro leitor não perca nenhum facto, saiba que o único grande momento a salientar fora deste guião alternativo é que, aos 95 minutos de jogo, Marega podia ter feito golo após um cruzamento rasteiro de Alex Telles. Mais, para que justiça seja feita ao maliano que apresentou números estrondosos esta noite, tal como Danilo, vou deixar dois tuítes com as devidas estatísticas.

Neste relato alternativo focamo-nos em Pepe. Porquê? Primeiro, porque é a tradução direta do jogador à Porto, talhado para estes momentos anárquicos, de tudo ou nada. É, numa descrição arriscada, o jogador mais próximo do que Conceição seria se estivesse dentro de campo naquele momento. Contexto: até aqui há que realçar um cartão amarelo visto após uma intensa troca de argumentos com Dzeko, aos 58 minutos, e na qual o bósnio caiu de forma bastante artificial vários segundos após ambos terem encostado a cabeça um ao outro. O confronto entre os dois não ficaria por aqui.

Prosseguindo a crónica Pepeiana, aos 82 minutos, o jogador fez um mau passe, a bola sobrou para Perotti que já dentro de área tenta um remate em arco, mas falha o alvo. Aos 89 minutos, ao mesmo tempo que em Paris era assinalada grande penalidade por bola no braço de Kimpembe, Pepe faz uma falta perigosa sobre Dzeko. O livre de Pellegrini bateu na barreira, o pénalti de Rashford consumou a primeira reviravolta em eliminatórias desta noite. Mas este relato corre o risco de ser falacioso, o internacional português foi um esteio na defesa e mais tarde redimiu-se dos seus erros, com um corte aos 112 minutos que valeu como um golo: depois de Dzeko já ter feito passar a bola por Casillas, o português, de carrinho, a pouca distância da linha de golo, salvou o FC Porto da possível eliminação.

Cinco minutos depois há um pénalti na área da AS Roma. Após um cruzamento-remate de Maxi Pereira, Florenzi mostrou que os hábitos são difíceis de vencer ao ter feito um daqueles puxões malandros a Fernando, por vezes eficazes no tempo pré-VAR. Nos dias de hoje, não. Estamos nos 117 minutos de jogo, Alex Telles coloca a bola na linha de onze metros, remata, tira a camisola, é envolvido pela equipa nos festejos, já na curva fora do relvado, junto aos adeptos. E eis que nas celebrações que vemos Pepe perdidamente feliz, ligeiramente afastado do grupo, sem saber como festejar agarra num banco, provavelmente de algum dos fotojornalista que faziam a cobertura do encontro e começa a levantá-lo como se de um troféu se tratasse. Não se deixando embriagar pela euforia, Pepe ainda fez mais um ‘semi’ golo ao cortar, aos 120 minutos um ataque perigoso da Roma com selo de morte.

Voltemos ao todo para dizer que, no final, a ação venceu a falta de reação. O coração venceu o peso e a medida. No final, só uma equipa fez o suficiente para passar. No final, lembramo-nos de um Jesus Corona reguila, de um Danilo cem por cento eficaz, de um Marega letal, de um Tiquinho perigosíssimo, de um Alex Telles imperial, de um Pepe à dragão. Do lado italiano, lembramo-nos das duas defesas enormes de Olsen, da ‘fita’ e dos falhanços dos bósnio. E acho que isto diz tudo sobre o jogo.

FC Porto
créditos: FERNANDO VELUDO/LUSA

Bitaites e postas de pescada

O que é que é isso, ó meu?

Dzeko e Pepe encostaram a cabeça. O português atirou ao bósnio um largo “fuck you” e o avançado caiu. A pergunta “o que é que é isso, ó meu” é honesta. Trata-se de um péssima interpretação de uma simulação de agressão por parte do jogador da AS Roma ou será o real poder das palavras? Insónias por favor, ajuda-me.

Ah! Ao lado...

Danilo, a vantagem de ter duas pernas

Creio que a última vez que publicámos uma crónica a um jogo alusivo a uma competição europeia, o caríssimo António Moura dos Santos teceu rasgados elogios a Florentino, jogador dos encarnados. Hoje, aos fim de 120 minutos, o grande elogio recai sobre Danilo. Eficácia de passe e capacidade de criar perigo, foi o cérebro e pulmão do FC Porto. Tremendo e discreto, o que se pode pedir mais de um médio-defensivo?

Fica na retina o cheiro de bom futebol

O árbitro já tinha terminado o encontro quando Sérgio Conceição foi consolar o guarda-redes adversário que estava deitado no relvado. O treinador portista dirigiu-lhe algumas palavras e ajudou a levantá-lo. Há melhor futebol do que este?

Nem com dois pulmões chegava a essa bola

Casillas não esteve mal na partida, mas este era o único subtítulo que me sobrava para poder voltar a elogiar De Rossi. Admirado por este jovem jornalista desde que era pequenino como símbolo de lealdade para com um clube, foi um momento bonito ver a classe com que aquela grande penalidade foi batida. No momento da paradinha, já o guarda-redes espanhol estava numa das pontas da baliza. Uma vénia ao gladiador que sobrevive numa equipa antagónica aquela que na temporada passada chegou às meias-finais da Champions.