O antigo ciclista acredita que o quarto lugar final de João Almeida (Deceuninck-QuickStep), o melhor de sempre de um português no Giro, e a vitória na classificação da montanha de Ruben Guerreiro (Education First) vão, “se calhar, ser até um momento de viragem”, com a dinâmica que se criou em torno do duo a dever ser aproveitada quer pela Federação Portuguesa de Ciclismo, quer pelas equipas e “por todas as pessoas que trabalham no ciclismo em Portugal”.

“Acho que isto mexeu completamente: quando vejo jornais, televisões – televisões! -, o mais difícil... quando toda a gente vai à procura de notícias do Giro, do João, do Ruben, que se enviam jornalistas, o que inicialmente não estava nada previsto... eu acho que não pode voltar a ser o que era antes, acho que se vai tirar partido disso, que o ciclismo vai beneficiar com isso”, afirmou em declarações à agência Lusa.

O quatro vezes vencedor da Volta a Portugal, que chegou a disputar a Volta a França, não recorda nenhum momento em que tenha havido tanta projeção da modalidade, nem no tempo de Joaquim Agostinho. “Na nossa modalidade, e eu já posso falar de há 50 anos para cá, eu nunca vi nada igual, mesmo sabendo que nos tempos de hoje parece mais fácil, porque a forma como se comunica hoje não é igual”, reforçou.

Reconhecendo que a prestação do jovem de A-dos-Francos, que há muito segue e em quem depositava uma grande expectativa, o surpreendeu – “acho que nunca, ninguém, nem o pai, nem a mãe, nem os diretores, nem o próprio João contariam com tanto” -, Marco Chagas fala numa “situação única”, criada por dois jovens que a maioria das pessoas nem sabia que existiam.

“Acho que vai ficar muita [desta ‘febre’], mas alguma desaparece, porque há pessoas que não percebem nada disto. Algumas dessas pessoas, depois de domingo, é como um balão que se despeja e não se fala mais nisso. Agora, tenho para mim que uma grande percentagem das pessoas que nunca tinha ouvido falar deste rapaz e que pouco ou nada ligavam ao ciclismo vão olhar de maneira diferente. Todas as pessoas ligadas à modalidade têm de aproveitar, porque creio que muito disto vai ficar. A expectativa quanto ao João passa a ser muito grande, mas acho que ele é como o algodão: não engana”, vincou.

Daqui para a frente, “nunca mais nada vai ser igual em relação ao João Almeida, tanto a nível nacional”, em que a presença de Almeida “vai ser obrigatória, um pouco à semelhança do que tem acontecido com o Rui [Costa] no que diz respeito às representações da seleção”, mas também a nível internacional, exemplificando com o gesto de Vincenzo Nibali, “o tipo que tem o maior palmarés, dos poucos do mundo que ganhou as três grandes Voltas, um senhor das bicicletas”, que partilhou uma foto com o português no dia em que este perdeu a ‘maglia rosa’.

“O João conseguiu um estatuto, um lugar, para já, dentro daquela equipa – espero que seja aquela, que ali está muito bem. Nunca mais vai ser a mesma coisa, a partir de agora tem o seu estatuto, ninguém lhe toca. É ele e mais seis ou sete colegas. Criou uma personagem que nunca mais ninguém o tira dali. O João tem 22 anos, se não tiver nenhum problema físico que o afete, vai ter 10 anos para brilhar ao mais alto nível. E nós vamos ter muitas alegrias e muito roer de unhas como tivemos nestes dias por causa dele”, previu.

O também comentador de ciclismo encontra na personalidade e no comportamento aguerrido do ciclista da Deceuninck-QuickStep duas das maiores razões para o ‘miúdo’ ter cativado todo o país

“A gente olha para aquele menino, que é um menino, mas é um menino com um ar sério, ou seja, um ar de entrega, de um miúdo que está ali a fazer um trabalho de uma forma muito clara, um trabalho bem feito, e quando chega a hora da verdade, ele, em vez de se encolher, como faria a maioria, estava ali e marcava presença. Dizia ‘estou aqui para o que calhar’. As pessoas gostam muito de ver, aquele ar dele, a postura, o facto de, na véspera do Stelvio, arrancar e fazer a diferença, não é para qualquer um. A maioria daquela gente, mesmo com 10 anos de profissional, chegavam ali e deixavam-se estar muito quietinhos”, destacou.

Chagas não tem dúvidas de que João Almeida irá ser “um dos grandes corredores do Mundo” e a próxima “grande figura” do ciclismo português “nos próximos anos”.

Azevedo espera que João Almeida traga novo impulso ao ciclismo

“Gostava e espero que tenha um impacto positivo que relance a modalidade, que volte a trazer destaque na comunicação social. Ou seja, que o João traga esse impulso ao ciclismo, que nos últimos anos, por vários fatores, estava a passar uma fase que não era tão boa. No presente, aquilo que posso dizer é que se criou uma onda à volta do João, uma atenção de praticamente todas as pessoas – não são só os adeptos do ciclismo, que iriam seguir sempre o João, o ciclismo, o Giro, o Ruben [Guerreiro] e as corridas onde estão portugueses, mas de pessoas que não eram adeptas do ciclismo e passaram a gostar e a seguir”, destacou.

Depois de anos de complicados, reflexo da crise económica e do consequente desinvestimento de patrocinadores e autarquias, em que o ciclismo português “recuou e estagnou um pouco”, os feitos de João Almeida, quarto classificado no Giro e líder durante 15 dias, e Ruben Guerreiro, coroado ‘rei da montanha’, fizeram despertar não só o interesse da comunicação social, como o das pessoas que habitualmente não seguem a modalidade.

“Para o desporto evoluir, há uma série de fatores que são importantes, mas um deles é haver um ídolo. Um ídolo é que move os jovens, move multidões, move o povo e, por consequência, as marcas. Havendo multidões, uma massa, torna-se apetecível para elas”, notou em declarações à agência Lusa.

O atual diretor desportivo da equipa francesa Nippo Delko Provence, que, no domingo, viu João Almeida destroná-lo como melhor português de sempre na ‘corsa rosa’ (foi quinto classificado em 2001), espera que a atenção conquistada pelo ciclista da Deceuninck-QuickStep tenha vindo para ficar e apela à responsabilidade das pessoas ligadas à modalidade para que esta seja mantenha.

“Temos ali um jovem de 22 anos com muito potencial. Agora, também é preciso ser realista e falar verdade às pessoas: pelo que o João fez neste Giro, a conclusão que temos de tirar é que temos um jovem que demonstra que tem potencial para, nas provas de três semanas, lutar pelos primeiros lugares. Será um erro dizer que o João vai ganhar um Giro, uma Vuelta, um Tour, isso é algo que não se pode dizer. Há um caminho a percorrer, o João está numa fase de crescimento”, alertou.

Para o antigo ciclista, que tem três presenças no ‘top 10’ em grandes Voltas no currículo, Almeida ganhou muito na Volta a Itália que terminou no domingo.

“É importante pensarmos nisso para não passarmos de uma euforia a frustração. Como estes novos adeptos chegaram tão rápido e apaixonaram-se tão rápido, também não os podemos perder com a mesma rapidez. O que temos de ver é que se chegaram e foram atraídos é porque têm de gostar, caso contrário não conseguiriam estar 15 dias agarrados à televisão a ver diariamente o que acontecia nas etapas do Giro”, argumentou.

O importante, segundo Azevedo, é que “as pessoas compreendam que temos ali um ciclista jovem, que dignificou o desporto português, dignificou Portugal, e que tem todo o potencial para se bater pelos primeiros lugares nas grandes corridas”. “Não dizer que ele vai ganhar, porque depois lá vem outra vez a deceção. E não é só o João, porque há corredores com muito potencial em Portugal”, completou.

Atenção mediática poderá desvanecer-se sem geração que acompanhe Almeida

João Almeida assumiu-se como herói nacional e captou novos adeptos para o ciclismo, mas para o autor da página Carro Vassoura essa atenção rapidamente se desvanecerá sem uma geração que ‘acompanhe’ o quarto classificado do Giro.

“Nas últimas três semanas, foi dada grande atenção, em primeiro lugar ao João Almeida, e só por arrasto ao ciclismo. O João Almeida assumiu a figura de herói nacional e, por isso, o ciclismo foi falado, mas acho que a concentração das atenções foi – e justifica-se que assim seja - para o ciclista, para a pessoa que está a fazer algo de notável, e só em segunda instância ou em terceira para aquilo que ele representa ou pode representar de uma forma indireta [para a modalidade]”, analisou Rui Quinta, em declarações à Lusa.

O criador do Carro Vassoura, a mais emblemática das páginas nacionais dedicadas ao ciclismo na rede social Facebook, com uma comunidade de quase 20 mil seguidores, fala com a propriedade de quem, só durante a Volta a Itália, foi confrontado com uma ‘avalancha’ de adeptos recém-convertidos, traduzida não só nos 1.000 novos gostos, mas também nos 300 novos pedidos de adesão ao Carro Vassoura Refinado, um grupo reservado aos fanáticos da modalidade, em que o número de publicações ascendeu das habituais 10/15 a uma média superior a 30, largamente superada no dia da subida do Stelvio (mais de 80).

Para o algarvio, a memória coletiva é muito curta e, se o ciclista da Deceuninck-QuickStep, no arranque de 2021, “não tiver prestações que voltem a chamar a atenção, muita gente se vai esquecer dele” e, por conseguinte, da modalidade.

“O ciclismo português, para que esta prestação tenha seguimento, precisa de ter novos heróis, não precisa de ser necessariamente ao nível que o João Almeida esteve nestas três semanas, mas é preciso que haja uma geração que seja mais do que um ciclista, à semelhança do que aconteceu em Espanha quando surgiram Alberto Contador, [Alejandro] Valverde e Joaquim Rodríguez praticamente ao mesmo tempo, e aí, sim, conseguiram que o destaque dado fosse a um todo, não só a cada um deles”, exemplificou.

De acordo com Rui Quinta, o feito do João Almeida, que no domingo se tornou no melhor português de sempre no Giro, depois de ter liderado a ‘corsa rosa’ durante 15 dias – e que, curiosamente, também segue a página -, “captou muito mais atenções do que qualquer outro do ciclismo português, porque tanto a medalha olímpica do Sérgio Paulinho, como o título mundial do Rui Costa, ao serem eventos de um dia, geraram muito menos expectativa antes da prova acontecer”.

A euforia nacional em relação ao jovem de A-dos-Francos nasceu, na opinião do autor do Carro Vassoura, logo na primeira etapa, quando quase chegou à ‘maglia rosa’, camisola que vestiu logo no terceiro dia e só despiu na 18.ª etapa, após ter perdido o contacto com o grupo de candidatos no início da subida ao ‘colosso’ Stelvio.

“Acho que todos aqueles que acompanham o ciclismo, com mais conhecimento de causa, há mais tempo, de uma forma mais atenta, não esperavam que o João Almeida chegasse tão longe, eu inclusive, mas tínhamos todos a curiosidade de perceber até onde ele conseguiria ir. Por isso, acompanhámos esta ‘novela’ do João no Giro com um entusiasmo e com uma expectativa como nunca tínhamos tido a oportunidade de acompanhar outro no nosso tempo de vida, exceto quem acompanhava o Joaquim Agostinho pela rádio”, referiu.

O rosa envergado pelo miúdo de 22 anos estampou capas de jornais e coloriu telejornais, com Rui Quinta a considerar que, em ambos os casos, “houve mais ciclismo nas últimas três semanas do que se calhar nos últimos 15, 20 anos todos somados”, mas originou a “futebolização da modalidade”.

“Significa que houve mais insultos do que é normal, houve mais gente a ir para as redes sociais de outros ciclistas a insultá-los, ou porque deviam trabalhar mais para o João Almeida, ou porque eram adversários dele. Houve mais gente a desejar que outros ciclistas abandonassem, a festejar ou celebrar o abandono do Giovanni Visconti, porque era adversário do Ruben Guerreiro na classificação da montanha, e tudo isso é muito triste”, lamentou.

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