Centremo-nos no termo “goat”. Desfolhamos o dicionário traduzido da língua inglesa e encontramos o significado: “cabra”. É ali a linha de chegada se juntarmos e lermos de corrida as letras resultantes da palavra.

Não era o que procurávamos descobrir. Voltemos atrás nas páginas. Regressamos ao ponto de partida e avançamos um pouco mais além do que nos aparece à primeira vista.

Nova busca. Desta vez, trazemos para a frente as letras. Transformamo-las  em formato garrafal. Aumentamos o tamanho, separamo-las e colocamos um ponto entre cada uma delas. Ficam individualmente destacadas. “G.O.A.T.” é o resultado.

Agora, o sentido desta sopa de letras ganha nova dimensão. Passa a significar: “O Maior de Todos os Tempos”, na tradução da língua de Shakespeare, “The Greatest of All Times”.

Muitas das vezes recorremos a este anglicismo quando falamos de atletas com performance estratosférica a nível desportivo e competitivo. Surge, quase sempre, para anunciar ou reforçar o nome de Tiger Woods (golfe), Michael Jordan (basquetebol) ou Tom Brady (Futebol Americano).

O G.O.A.T. do surf: 11 títulos mundiais, 56 vitórias e 32 anos de profissional  

O surf também tem direito a um G.O.A.T. Apresentamo-lo, embora antecipamos que todos, ou quase todos, saibam de quem se fala. Kelly Slater, o recém cinquentão que pisa, a partir de hoje, pela 12.ª vez, a praia de Supertubos, Peniche, etapa portuguesa do Circuito Mundial de Surf (Championship Tour).

Nascido nos Estados Unidos da América, em Cocoa Beach, cidade costeira do Estado da Flórida, cujo nome não nos atira o imaginário para as maiores e melhores ondulações do planeta, Robert Kelly Slater, é ele mesmo a tradução de títulos na modalidade que cavalga ondas com os pés bem assente nas pranchas.

Nunca será demais sublinhar o contributo de Kelly Slater para o surf. Onze títulos mundiais, o surfista mais novo a sagrar-se campeão, em 1992, então com 20 anos e o mais velho, em 2011, quando somava 39 anos.

Pelo meio, 56 vitórias em etapas do CT, a última das quais em Pipeline, no Havai, a poucos dias de atingir os 50 anos, idade que assinala o meio caminho da vida.

Um triunfo, cinco anos depois do último, quando já não esperava e lhe trouxe um especial alento. E uma nova vontade. De, eventualmente, procurar a conquista do 12.º título no Tour, 32 anos depois de se aventurar no profissionalismo.

A maioria dos surfistas do Tour não tinham nascido quando venci o meu primeiro título”

“A maioria dos surfistas do Tour não tinham nascido quando venci o meu primeiro título (em 1990, na altura com dez anos em cada perna)”, recorda numa roda de jornalistas portugueses a quem acedeu falar depois da conferência de imprensa do MEO Pro Portugal 2022, terceira etapa do Championship Tour da World Surf League (WSL).

Kelly, a lenda, não é reconhecido pelos longos e permanentes diálogos com a imprensa. O meio século de vida pode ajudar a explicar esta inesperada nova versão.

“Hoje é um desafio diferente, uma nova abordagem. 32 anos de experiência profissional, tornei-me pro aos 18”, acentua Slater.

créditos: Brian Bielmann / AFP

“Pipeline é uma experiência fora de corpo. É algo muito espiritual para mim”

A vitória em Pipeline, no Havai, etapa inaugural do CT 2022, trouxe-lhe emoções à flor de uma pele tingida pelo sol. Só de soletrar o nome faz-lhe brilhar o olhar esverdeado rasgado pelo sal. E arranca-lhe um sorriso.

“Pipeline é uma experiência fora de corpo. É algo muito espiritual para mim”, sublinhou.

Entra noutra dimensão, muito para lá do léxico habitual do “fiz o meu surf”. Dava início a uma conversa que se desenrolou por 12m04s cuja densidade e profundidade não se limitou a surfar a espuma dos dias. Trouxe ao de cima questões de espiritualidade e a relação do corpo e mente na vida desportiva e em competição.

“É engraçado em falar em espiritualidade. O surf é um desporto mais espiritual do que qualquer outro. Tens de sintonizar o teu corpo com o oceano”, explicou.

Slater navega em águas por si bem conhecidas. Apresenta o seu mundo. “É também um desafio pessoal. Sobre aquilo que está dentro da tua cabeça quando tentas ultrapassar as tuas próprias dúvidas e medos”, realçou.

Reconhece que a tal experiência de meio século de vida, quase toda ela em cima de uma prancha de surf, “pode ser favorável, mas também colocar mais pressão”, admite na antevisão da etapa portuguesa do CT. “Mas no fim do dia, terá de ser: senti o meu corpo, a minha respiração”, frisa. “Surfar é estar atendo às ondas. É o que faço melhor. É muito simples. É uma lição espiritual”, anota.

“Quando entro na água é para divertir-me com o desafio. Tento divertir-me com tudo e não tanto estar preocupado quando terminará a bateria (heat)”, revela o melhor surfista de todos os tempos.

O título que lhe escapa desde 2011 não deixa de ser uma meta. “Acho que todos tentamos ganhar o título mundial, senão não devíamos estar aqui. Mas temos de pensar evento a evento e tentar fazer as coisas bem. Cada semana, e cada evento e cada bateria são decisivos", realçou.

Kelly Slater abre o coração quando fala de Pipeline. Regressamos ao tema. “Pipeline é como a minha casa. Sinto tanta diversão, todos os dias”, atesta. Viaja até às “emoções” nesse dia e “nesse momento”.

Compara Pipeline e Sunset, evento que se seguiu. Duas faces de uma moeda. “Por vezes, é o equilíbrio. A excitação da vitória e depois, difícil, a queda. Espero recompor-me nesta semana”, antecipa a prestação para Supertubos.

Submerge sobre a preparação feita. “Passa por passarmos tempo dentro de água a observar as ondas. Vimos de águas quentes para águas frias. Temos que nos habituar”, explica ao SAPO 24.

“O teu equilíbrio será diferente. Há quem esteja aqui há mais de uma semana a treinar. Poderão ter mais vantagem que eu. Mas também não tinha feito nada durante cinco semanas e ganhei uma etapa, por isso...tem tudo a ver com o estar confiante e relaxado” assegurou. É o segredo para mim. Estou relaxado”, reforçou.

“Não estou preocupado com o resultado, nem com perder. É como na vida, se temos medo, perdemos o foco. Por isso, temos que estar relaxado e confiante nas decisões”, acrescentou ainda.

Este país não é para Slater. Mas ele quer voltar a ser feliz

Portugal não tem sido um sítio onde tem encontrado a felicidade plena. Se escolhêssemos um título hollywoodesco para o antigo namorado (quase noutra vida) de Palmela Anderson, atriz celebrizada com Baywatch (Marés Vivas) pediríamos emprestado uma primeira parte de outra obra da 7.ª Arte. “Este país não é para Slater”.

Tudo começou em 1996, nos primórdios da passagem do Circuito Mundial de Surf por Portugal, então sob a égide da ASP (Associação de Surfistas Profissionais).

No Figueira Pro só precisou de tirar os pés da areia e remar ao lado de um português, Bruno Charneca (“Bubas”), campeão nacional, numa bateria reservada a dois, para ser campeão. Conquistou o título (o quarto) apesar de não ter ganho a bateria.

1996 entra para a história do surf português. Bubas e João Antunes foram os estreantes nacionais entre os grandes do surf internacional. O apelido Antunes regressa aos grandes palcos 26 anos depois e de novo em estreia. O filho, Afonso Antunes, é o wild-card da prova em Supertubos, cujo período de espera se estende até 13 de março.

O vice-campeão nacional estará ao lado de um dos seus heróis de infância – Kelly Slater - a quem pediu um autógrafo, quando “tinha 10 anos”, recorda a mãe, Teresa, ao mostrar a fotografia.

Kelly Slater com Afonso Antunes, quando este tinha 10 anos
créditos: DR

Fim do interregno dedicado aos portugueses. No ano seguinte, em 1997, no Buondi Sintra Pro, a malapata lusitana apresentava novo disco. Ruben Gonzalez eliminou Slater. O norte-americano não perdeu pela demora e no mesmo ano, na Figueira da Foz, derrubou José Gregório.

Num salto no tempo, a elite mundial regressou a Portugal em modo Rip Curl Search, em 2009. Apresentou um novo spot que veio para ficar: Supertubos. No ano em que Peniche entrou em definitivo no CT, 2010, Slater vence a final frente a Jordy Smith, uma vitória que o catapultou para o título conquistado nesse ano, em Porto Rico.

Repetiu o lugar na final no ano seguinte, mas não o resultado. Perdeu para o brasileiro Adriano de Souza, apesar de ter conquistado o título. O 11.º e o último da carreira.

Eliminado em 2013 por um jovem português – Frederico Morais - convidado para a etapa e que começava a dar os primeiros passos onde outro surfista nacional, Tiago “Saca” Pires, já por lá andava. “Kikas” foi o quarto português a “limpar” o G.O.A.T.

Recorda o episódio e individualiza. “O Frederico é um grande competidor. Avalia bem o heat (bateria) e consegue fazer com que os adversários joguem o jogo dele”, caracterizou. Admite que é “muito confiante”, mas algo pode correr contra ele em casa. “A pressão do herói local”, a mesma que sucedeu a Tiago Pires, o primeiro português que competiu no circuito de elite da Liga Mundial de Surf. “Se o Frederico conseguir relaxar vai ter sucesso”, antecipa.

Surf e golfe mais próximos do que se pensa

Volta a si. “Já tive bons e já tive maus momentos”, recorda. Das boas memórias guarda uma. “Em 2014, talvez, fiz uma manobra em free surf que nunca tinha feito, ninguém tinha tentado, nunca mais fiz, nem nunca ninguém fez”, recua.

“Na realidade, não era para ter ido surfar, ia jogar golfe. Mas surfei. Nós (surfistas) temos aquilo a que chamamos de “culpa da surfada”. Sentimo-nos culpados se não formos surfar. E fui. Foi mais divertido do que pensava e fiz a tal manobra. Foi inacreditável. Foi filmado, tiraram fotografias. E ouviu-se fora de água: “ele conseguiu, ele conseguiu” quando aterrei na água”, recorda.

As memórias não se ficam por aí. “Quando fui 2.º, em 2011, não é normal termos boas memórias de ficar em segundo, mas fiz uma grande etapa, nos quartos fiz uma nota 10 e um 9.6 (máximo 10), talvez um dos melhores heats”, admite.

A conversa poderia ter ficado por aqui. Era essa a vontade de quem assessorava o “mestre”. Mas este respondeu. “Está tudo bem, podemos continuar”. Continuámos e foi questionado pelo SAPO 24 sobre a sua preferência por golfe e sobre que ensinamentos um surfista pode retirar do jogo dos 18 buracos.

“Surf e golfe, há um equilíbrio entre eles. É o Yin e Yang”, explica, entrando no conceito do taoismo. “O Surf é a emoção constante, poder e energia. Golfe é o oposto. É parado”, compara.

“Tu tomas a decisão e fazes a escolha. Diferentes, mas ambos provam o teu mindset, o poder da mente e do pensamento”, acrescenta. “A biomecânica e emoções tem relevância para ambos”, discorre.

“O surf é como uma arte marcial. A eficiência do movimento. Uso muito isso quando estou em cima da prancha e como o meu corpo se relaciona com a prancha na onda. É o mesmo no golfe. Aí, quando mais movimentos fazes, mais erros cometes. Tens que ser eficiente”, sublinha.

“Se caíres na onda, nas manobras que fazes ou falhares o buraco, só te podes culpar pelas escolhas feitas”, resume o cinquentão que se vê a andar de braço dado com os dois desportos até à eternidade. “Irei surfar e jogar golfe a vida toda. É uma bênção, é um equilíbrio entre ambos”, finaliza.