Marçal, perdoa-me se exagero na surpresa, mas confesso que não te esperava escrever. Esta carta era para ser dirigida ao Cristiano Ronaldo, repescava a história da La Décima e prolongava-se pelo tão desejado recorde de vencer a Liga dos Campeões por três clubes diferentes. Mas tu e os teus companheiros foram carrascos da minha correspondência.
É ainda com algum espanto que escrevo o teu nome no espaço dedicado ao destinatário. “Fernando Marçal Oliveira”. Permite-me que me volte a desfazer em desculpas, não é condescendência, é a simples incapacidade de acreditar nas pequenas possibilidades numa competição que se moldou para ser vencida pelos grandes. O Lyon é uma equipa que não devia passar dos oitavos-de-final. Mas, no entanto, aqui estamos.
Se em outubro do ano passado me dissessem que depois de teres assinado pelo SL Benfica, de não teres feito qualquer jogo de águia ao peito, de seres emprestado ao Gaziantepspor, da Turquia, e ao Guingamp, em França, serias o defesa esquerdo titular do Olympique Lyon, acusaria algum espanto.
Se depois disso, e numa época em que um dos momentos mais marcantes da tua temporada foi um autogolo digno de retweet num jogo frente ao Paris Saint-Germain e que a tua equipa ficou em sétimo lugar no campeonato com os mesmos 40 pontos que o AS Monaco, um clube que lutou para não descer de divisão, me contassem que o teu regresso a Portugal seria para jogar os quartos-de-final da Liga dos Campeões frente ao Manchester City, depois de terem eliminado a Juventus e já na fase de grupos teres ‘despachado’ o Benfica, lamento, mas eu não acreditava.
Tu talvez acreditasses. Afinal, ninguém deixa o seu país natal para vir jogar para a terceira divisão portuguesa desprovido de esperança. Do outro lado do Atlântico, trouxeste a garra suficiente para antes do fim do teu contrato com o Torreense dares o salto para o Nacional da Madeira e disputar a primeira divisão portuguesa. Despertaste, inclusive, o interesse de Jorge Jesus, ele que até é fã de laterais mais altos, ficou encantado com a tua relação com o lado esquerdo do campo. Tiveste o azar de apanhar um verão atribulado e de ver o treinador que te pediu ir para o rival Sporting CP numa saída controversa. E tu, sem lugar, partiste para a Turquia para reafirmar a tua qualidade, mesmo que essa não tenha sido a tua primeira vontade.
E agora aqui estás em Lisboa com o Lyon, a equipa menos favorita desta fase da Liga dos Campeões, mas a que, provavelmente, mais capacidade de sofrimento mostrou para aqui chegar. Há nesta humildade de reconhecermos as nossas capacidades, sejam elas de que grau forem, um degrau para a superação. São muitas as vezes em que o mundo não parece ser dos honestos, dos que se reconhecem, mas é. E aqui tu serás guia, pelo teu caminho e pelo teu conhecimento de Portugal, país que conheces melhor, inclusive, do que o guarda-redes Antonhy Lopes, campeão europeu com as quinas ao peito, mas que nunca viveu no país que representa.
Marçal, eu não esperava ver-te aqui. Seja o efeito de 2020, seja a qualidade de uma equipa que este ano se manifestou no seu esplendor na Liga dos Campeões, seja porque tiveste a audácia de vir para Portugal há 10 anos para vingar no futebol europeu, seja porque razão for, tudo o que eu queria era que no final do jogo houvesse uma roulote junto o estádio onde pudéssemos ir comer uma bifana e ouvir a tua história. Agora na primeira pessoa. Acho que todos nós um dia gostaríamos de surpreender o mundo e aparecer onde somos menos esperados e fazê-lo com um sorriso nos lábios, como quem não tem nada a perder e desfrutará do futebol na sua plenitude contra uma das melhores equipas da década. Se por isso não valeu aquele contrato assinado às cegas com o Torreense e atravessar um oceano, então não sei o que vale.
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