Tal como Prometeu, preso para sempre a um rochedo e condenado a que uma águia (ora pois) se deliciasse com o seu fígado diariamente, o Benfica parecia estar a sofrer um castigo divino, cuja pena era uma eternidade a perder na Liga dos Campeões, excluindo playoffs. Contrariando o seu ADN vitorioso, eram já oito as derrotas consecutivas, residindo a última vitoria num longínquo mês de fevereiro de 2017, quando se superiorizou perante o Borussia Dortmund na Luz. Seria então na Grécia, escreviam as profecias, que finalmente o Benfica se sagraria vitorioso numa fase de grupos.
Já a história do AEK era outra. Arredado durante 12 anos da Liga dos Campeões, o clube ateniense procurava simultaneamente marcar o regresso da competição ao Estádio Olímpico de Atenas em glória e esquecer a dura derrota frente ao Ajax em Amesterdão, por 3-0, na primeira jornada da fase de grupos da competição. Contra os pupilos de Marinos Ouzounidis pesava a história recente do Benfica: tal como eles, tinham chegado a esta fase depois de duas eliminatórias de acesso, mas, para fazê-lo, derrotaram com autoridade os seus vizinhos de Salónica, o PAOK, por 4-1.
Como a história é tão pródiga em construir acasos felizes como a fazer pouco com a nossa sorte, tivesse este embate entre gregos e lusitanos ocorrido ontem e ter-se-iam assinalado precisamente 9 anos desde o último confronto entre as duas equipas na Grécia. Na altura, o AEK derrotou o Benfica de um estreante Jorge Jesus ao leme dos “encarnados” por 1-0, num jogo da fase de grupos da Liga Europa. Dessa equipa, só Luisão restaria, caso o capitão do Benfica não tivesse pendurado as botas na semana passada (lá está, o destino a arruinar correlações bonitas aos jornalistas).
A ausência do eterno capitão veio em má altura, já que, com Jardel lesionado, Rui Vitória teve de lançar a pouco rotinada dupla formada por Ruben Dias e German Conti, este último com uma estreia pouco auspiciosa em Chaves, na passada jornada do campeonato nacional. De resto, o timoneiro do Benfica, sabendo que precisaria de pontuar, não fez poupanças, mantendo o onze quase inalterado, lançando um Salvio recuperado de lesão no lugar de Cervi e fazendo regressar Gedson, já que Gabriel sofrera mazelas em Trás-os-Montes.
Quem está habituado a ler uma boa história - drama, policial, comédia, romance, o que for - parte para uma narrativa à espera de reviravoltas no enredo. Clube historiado em competições europeias como é o Benfica, devia ter sentido o cheiro a esturro com a facilidade com que entrou no jogo. Perante a enorme passividade defensiva no setor direito do AEK, os “encarnados” marcaram dois golos que, para quem tivesse desligado a televisão (ou o ecrã, esta é a era dos streams, afinal de contas) a meio da primeira parte, pareciam antever que o Benfica sairia da Grécia com uma vitória fácil.
Primeiro Seferovic, aos 6 minutos, que com instinto matador aproveitou defesa incompleta do guarda-redes Barkas ante remate de Gedson, numa jogada que começou à esquerda, entrando na história do clube ao marcar o 100.º golo das águias no formato atual da Liga dos Campeões. Depois foi Grimaldo, que, se no primeiro golo tinha feito o cruzamento que originou perigo, no segundo foi ele a receber um certeiro passe aéreo de Pizzi, aos 15 minutos, cabeceando sem precisar de saltar entre um Bakakis (o lateral) mal posicionado e um Barkas hesitante. Mais do que a felicidade, salta à vista a incredulidade do lateral espanhol por lhe terem concedido um golo tão fácil.
No entanto, enquanto o Benfica tentava acalmar o jogo, o AEK serviu-se de espírito bélico e foi montando a sua reação, muito através de lances em profundidade nas costas da defesa benfiquista, o seu grande calcanhar de Aquiles para este jogo. Depois de várias tentativas sem sucesso - uma das quais, um remate mortífero de Bakasetas para enorme defesa de Vlachodimos - algo surtiu efeito, mas não foi um golo.
Ao cair do intervalo, num plot twist digno das mais antigas tragédias gregas, Ruben Dias fez o papel de vilão e, tendo já um amarelo, lançou-se imprudentemente num pontapé que acertou em Ezequiel Ponce enquanto este saltava para disputar a bola. O israelita Orel Grinfeld não mostrou penitência e mostrou o vermelho ao central do Benfica, resultando na sua primeira expulsão pela equipa principal. Dizia o treinador do AEK, na antevisão a este embate, que ia procurar ganhar "de qualquer forma", mas certamente não esperava que a sua principal ajuda fosse um ato de autosabotagem. Fecham-se as cortinas: uns esperam pela segunda parte receosos, outros esperançosos.
Regressados dos descanso, os “encarnados” podiam ter-se inspirado nos acontecimentos do filme 300, já que, tal como Leonidas e os seus espartanos, as “águias” sabiam que iam passar os próximos 45 minutos a suster sucessivos ataques enquanto estavam em inferioridade numérica. Nada mais diferente. Espartanas só a sua posse de bola e vontade de ganhar, já que o Benfica começou a perder o controlo do jogo muito rapidamente e nem as alterações de Rui Vitória - que estreou Lema para ocupar o lugar de Ruben Dias, retirando Salvio e fazendo Pizzi ocupar a direita - surtiram efeito. Barkas e Seferovic passariam a ser espetadores neste jogo, mas por razões diferentes.
O AEK começou a fazer-se valer da sua principal arma, o envolvimento dos laterais no ataque, para sitiar a baliza do Benfica. Após várias ocasiões e sustos, os portões de Vlachodimos foram arrombados. Apesar de todos os esforços do guardião - claramente a figura mais deste jogo - a equipa grega conseguiu repor a igualdade. Com muitas culpas para a defesa benfiquista, que demonstrou uma passividade estóica, o AEK chegou ao primeiro golo num lance de insistência, onde um endiabrado Hult cruzou para Klonaridis se antecipar aos centrais e encostar, e num segundo lance onde André Almeida viu a bola sobrevoá-lo num centro da direita do ataque grego para Oikonomou (em fora de jogo) cabecear para dentro da pequena área, onde Klonaridis bisou.
Subitamente, a história de jogo alterara-se por completo, ou, como os ingleses diriam, “the tables had turned”. Porém, como dissemos no início desta peça, quem lê um bom livro deve esperar uma reviravolta, mas apostaríamos bom dinheiro como ninguém adivinharia o que aconteceu a seguir.
Aos 73 minutos surge novo volte-face e o Benfica passou do Hades ao Olimpo, fazendo o AEK o caminho inverso. Como Ícaro tentou chegar ao sol para apenas cair para a sua morte, Kloranidis ousou tentar o hattrick quando tinha Giakoumakis solto de marcação à sua esquerda. Erro fatal. Ao invés, permitiu a defesa (mais uma, gigante) de Vlachodimos, e no rescaldo desse lance, um Benfica, que nessa segunda parte não dera quaisquer sinais de querer regressar a Portugal com uma vitória, passou outra vez para a frente do marcador depois de uma imensa cavalgada de Alfa Semedo, acabado de entrar para o lugar de Pizzi. Chegando à orla direita da grande área grega, o jovem médio atirou sem força mas com precisão para o lado esquerdo da baliza, sem hipótese para Barkas.
À luz revisionista da história, pode afirmar-se que, após este lance, poderiam ter começado a rolar os créditos, ou, já que a analogia trata de arte teatral, os atores poderiam ter feito os agradecimentos e as sucessivas vénias em palco, uma vez que a história do jogo não mais se alterou. Com um AEK atarantado por ver-lhe retirado o tapete de baixo dos pés desta forma, a equipa deixou de atacar com critério e o Benfica, que até então estava em modo “ai Jesus”, começou a controlar as operações com mais calma, sendo principalmente a partir do momento em que Gedson, encostado à direita, começou a acertar as marcações com André Almeida.
Até ao fim, apenas a registar um livre perigoso que o Benfica defendeu como uma verdadeira falange e, para quem gosta de histórias pintalgadas de vermelho, para o facto do substituto Giakoumakis ter aberto o sobrolho. Tal como em Salónica, o Benfica sairia de Atenas vitorioso, evitando o recorde desonroso de perder os dois primeiros jogos da Champions em épocas consecutivas, e provando que às vezes não é preciso ir ao teatro ou ao cinema para ver um bom drama, basta ver a bola.
Bitaites e postas de pescada
O que é que é isso, ó meu?
Ruben Dias ainda deve estar com as orelhas a arder com o que Rui Vitória lhe deve ter dito no balneário. É que o primeiro cartão amarelo entende-se, é daquelas faltas para abortar um potencial lance de perigo. Mas o segundo - que, dizem as leis da matemática, sucede ao primeiro, e, postulam as regras do futebol, resulta em expulsão, ou seja, é de evitar - dificilmente se compreende, já que o árbitro estava prestes para apitar para o intervalo e o lance pedia tudo menos um pontapé no sovaco de Ponce. Agradeceu Lema, que somou os primeiros minutos oficiais depois deste acesso de loucura temporária.
Vlachodimos e Hult, a vantagem de ter duas pernas
(1) Qual Ulisses qual quê. Vlachodimos é que realizou a verdadeira Odisseia ao revelar-se um verdadeiro herói para o Benfica. Apesar dos erros cometidos em Chaves, o guardião não se deixou afetar para esta partida e mostrou talento numa defesa estrondosa a remate picado de Bakasetas em cima do intervalo, e enorme coragem nas várias saídas que efetuou, uma das quais que lhe valeu uma joelhada no queixo que nem José Aldo seria capaz de desferir de propósito.
(2) No duelo entre Niklas Hult e André Almeida, o primeiro mostrou pernas e o segundo não as teve para o apanhar. O lateral sueco, que nem costuma ser titular, fez o que quis do seu congénere português, colocando-se sucessivamente nas costas de Almeida para proporcionar alguns dos lances mais perigosos do AEK, um dos quais resultou no primeiro golo dos gregos.
Fica na retina o cheiro de bom futebol
“Bom” é daquelas caracterizações que desafia uma definição linear. Houve bons passes, bons remates e boas defesas. Nada, contudo, foi melhor que a reinterpretação livre do golo que Éder marcou na final do Euro 2016, esta com a autoria de Alfa Semedo. Partindo do meio campo, o jogador avançou sem receio por terrenos gregos e, não vendo linhas de passe disponíveis nem oportunidade para guardar a bola, inspirou uma boa dose de “vai já daqui” e saiu-se bem. Ele, e o Benfica.
Nem com dois pulmões chegava à bola
Em todos os jogos há erros, mas é particularmente bonito vê-los em sucessão, como colunas de um templo. Num lance ofensivo aos 39 minutos, erra primeiro Grimaldo, que tenta dominar uma bola que sobra para Bakakis, que, tendo a honra de ser o único jogador acertado nesta quadra, faz um passe rasteiro para a entrada da grande área. Aí surge Klonaridis, preparado para rematar, mas antes Conti tem a oportunidade de falhar um corte por milimetros e uma dose de má abordagem. O jogador grego, não querendo parecer mal-agradecido face ao gesto do argentino, rematou a bola para a Acrópole.
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