Pedro Pablo Pichardo nasceu em Cuba, ainda Fidel Castro era Presidente do país. Filho de um treinador de atletismo e de uma vendedora de rua, é sobrinho de Pio Pichardo, que um dia salvou a vida a Che Guevara durante uma emboscada no Congo.

"O Pio, que não conheci, morreu numa emboscada a Che Guevara, acabando por salvá-lo. Conheci o irmão, Toi, que morava na casa onde nasci, e que vingou o assassinato de Frank País [revolucionário cubano que lutou contra a ditadura de Fulgencio Batista], contou em 2018 ao Diário de Notícias.

O triplista era um miúdo irrequieto, daqueles que dá trabalho aos pais. "Acho que foi isso que me fez ir para o desporto", recordou à mesma publicação.

Pichardo é o mais novo de quatro irmãos; a irmã Roselena treinava com o pai e levava Pedro para os treinos. "Foi graças a ela que comecei no atletismo", assumiu. Aos seis anos tudo não passava de uma brincadeira, mas aos sete já treinava "corrida mais a sério". Só começou no triplo salto com 14 anos e aos 16 já viaja com o pai, de Santiago até Havana, para competir.

Outra paixão quase se atravessou no caminho, o boxe, mas o pai fez knock-out a essa ideia. "Quando era mais pequeno queria competir, mas o meu pai não deixou. Cheguei a praticar e ainda sei algumas coisas."

Chegou a saltar descalço — "não tinha ténis, nem roupa. Se não tínhamos comida em casa, como teríamos dinheiro para ténis?". Apesar de todas as dificuldades — quando em Havana, ele e o pai, dormiam nas bancadas do Estádio Panamericano —, já sonhava com o número mágico, os 18 metros, e ambicionava ser um dos melhores do mundo.

Os problemas não foram só monetários. Em 2014 entrou em rota de colisão com a Federação Cubana de Atletismo. Queria abandonar o técnico Ricardo Ponce e voltar a ser treinado pelo pai, mas acabou suspenso por seis meses.

Só voltou a saltar em 2015, outra vez com o pai. No regresso à competição fez 17,94m e bateu o recorde de Cuba, que há 23 anos era de Yoelbi Quesada. Nesse ano, voltou a quebrar esse recorde mais duas vezes, sempre acima dos 18 metros a marca dos 18,08m ainda hoje é o seu melhor registo pessoal.

Foi vice-campeão mundial em 2013 e 2015 — quando subiu ao pódio nos Mundiais de Pequim, ao lado de Nelson Évora (medalha de bronze) e de Christian Taylor (ouro) — e aguardava-se com alguma expectativa pela sua presença nos Jogos Olímpicos do Rio2016. O que não aconteceu, por lesão. Antes tinha sofrido uma "fratura de stress num tornozelo" que não sarou até à competição. Depois de se recusar a saltar, deram-lhe ordem de marcha. "Mandaram-me de volta para Cuba. Estava no quarto a fazer abdominais e bateram à porta a dizer que tinha de me ir embora naquele momento", conta na longa entrevista que deu ao Diário de Notícias em 2018.

Depois daquele dia, ninguém mais os separou

Desertou em abril de 2017 durante um estágio da seleção cubana em Estugarda, na Alemanha, no âmbito da preparação para os Mundiais de atletismo de Londres. Uma decisão tomada em família, contou o pai, que já estava na Europa, ao Público. "Pensámos em família no assunto e concluímos que era a única possibilidade de o Pedro atingir o seu potencial." Jorge Pichardo diz que não fugiram, "pois não somos delinquentes".

"Com a ajuda de um amigo, fui da Suécia até à Alemanha, numa viagem de 30 horas de carro, para ir buscar o meu filho. Outras 30 para regressar. A viagem foi longa e cansativa, mas a felicidade que ambos sentimos nunca passará. A partir daquele dia, ninguém nos voltou a separar."

Chegou a treinar num clube sueco, mas alguém lhe falou no Benfica. Com propostas para outros países, escolheu o nosso pelo idioma e clima. Diz que não foi por dinheiro porque os "outros clubes pagavam mais".

Por falar no idioma, assim que chegou a Portugal começou a ter aulas de português. "Dizem que para o tempo que estou cá, até estou bem, mas quero continuar e falar melhor", dizia este ano à BenficaTV, reconhecendo também que o "sotaque português não é fácil".

créditos: Pedro Pichardo com o pai, Jorge Pichardo, Setúbal, 2018 | PATRICIA DE MELO MOREIRA / AFP

Atribui a sua performance não às fronteiras ou ao clube, mas ao pai. "O meu treinador é o meu pai e foi ele quem melhorou o meu desempenho. Até porque não temos em Portugal as melhores condições para treinar", reconheceu ao Expresso.

"Há muita burocracia. Faltam alguns pormenores para trabalhar bem, mas não nos focamos nisso e continuamos a trabalhar. O meu pai tenta compensar essas falhas com alguns exercícios", explicou.

Mas como é ser treinado pelo pai? Há que distinguir o atleta do filho, mas Pichardo assume que nem sempre o pai o consegue fazer, principalmente em casa.

"Às vezes estou a jogar PlayStation e ele chama-me para ver um pormenor. Está sempre a procurar otimizar os resultados. Às vezes diz coisas e tenho de lembrá-lo de que não sou perfeito. Mas ele sabe conciliar a função de treinador e de pai. Quando não está a trabalhar nos treinos, no vídeo ou a estudar, comporta-se como pai."

Voltar a Cuba, para já, não é possível — foi proibido de o fazer durante 8 anos. Nem Pichardo o deseja. À Benfica TV contou que não tem saudades e que se sente magoado "com o governo e com as entidades desportivas".

Não foi a primeira vez que falou abertamente sobre o que sente pelo país onde nasceu. "Portugal portou-se melhor comigo neste ano e meio do que nos vinte e tal anos que vivi em Cuba. Agradeço a Portugal, ao Benfica e aos adeptos que me deram esta oportunidade de representar o país e por me terem acolhido tão bem", dizia em 2018, ao DN.

Por cá, vive com o pai, a mulher, também atleta (velocista), e a filha Rosalis Maria, que nasceu em terras lusas. No entanto, já pensa treinar no estrangeiro em busca de melhores condições e reconhecimento. Não fala só de si quando o diz, fala também em nome do atletismo, como explicaria ao Expresso.

"Por vezes pergunto à Ana Oliveira [Benfica Olímpico], que é a pessoa mais próxima da minha família cá: “Imagina que Cristiano Ronaldo vai a Cuba. Em Cuba, o futebol não tem expressão, não vale nada. Imagina ele sentir-se como me sinto aqui? Sem nenhum reconhecimento do seu valor e do seu trabalho? Vai sentir-se mal também. Em Portugal o atletismo não tem muito valor, mas sou um bom atleta".

Chegou a treinar no Estádio da Luz, mas encontrou na margem sul uma nova 'casa'. É nas instalações da Pista de Atletismo de Setúbal, a que tem livre acesso, outra forma de dizer que tem as chaves do complexo, que treina há três anos.

Sonhava cantar "A Portuguesa"

Pichardo naturalizou-se português em dezembro de 2017, depois de ser contratado pelo Benfica em abril do mesmo ano — só podendo competir com a camisola de Portugal nas grandes competições a partir de 1 de agosto de 2019. O processo fez correr alguma tinta, pela rapidez e porque coincidiu com a ida de Nelson Évora da Luz para Alvalade.

Em 2018, ao saltar 17,95m em Doha, no Qatar, bateu o recorde nacional, que até então pertencia a Évora (17,74m alcançados em 2007 em Osaca, no Japão, quando se sagrou campeão mundial).

Estreou-se com as cores portuguesas com uma vitória no Europeu de Nações de atletismo, em Sandnes, na Noruega, ao saltar 16,98m. Desde então, seja pelo Benfica ou por Portugal, tem estado (quase) sempre nos primeiros três lugares.

Ambicionava cantar o hino da pátria que o acolheu, algo que só viria a acontecer em março deste ano. Pedro Pichardo venceu nos Europeus de pista coberta, ao saltar 17,30m, marca alcançada logo no primeiro ensaio da final, não dando hipótese aos concorrentes, todos eles a mais de vinte centímetros de distância.

"Há dois anos que andava à procura da oportunidade e ainda não tinha acontecido. Fiquei muito feliz. Estava de máscara e as pessoas não notaram muito que cantei, mas eu sei que cantei", disse à Benfica TV.

Ainda não se considera um grande atleta, mas caminha para o ser. "Tenho de atingir muitas medalhas e grandes resultados, para ser um grande atleta. Estou no caminho certo", revelou-o também na estação do seu clube.

A competitividade na pista motiva-o. "No triplo salto, uma das melhores provas que tive foi entre mim e o Christian Taylor [atual campeão mundial e olímpico], onde estávamos a puxar um pelo outro para atingir o melhor salto. Isso é importante na altura de saltar."

Pichardo, de 28 anos, quer ganhar todas as competições de alto nível: Jogos Olímpicos, Mundial, Europeu e Liga Diamante. "Mas o grande sonho, o objetivo pessoal maior é bater o recorde mundial, é para isso que estou a trabalhar. Esse é o meu principal objetivo", contou ao Expresso. Há 26 anos que a marca pertence ao britânico Jonathan Edwards (18,29m), e apenas o norte-americano Christian Taylor esteve 'perto' de a bater (18,21 m).

Até onde quer Pedro Pichardo voar? Acima dos 18,50m, mesmo que assuma que essa ambição possa ser uma loucura.

Em Tóquio provou que talvez não seja. O novo campeão olímpico voou para o ouro com um salto de 17,98 metros, um novo recorde nacional. E mais uma vez, fez parecer tudo fácil.