A temporada de 2018/19 não se adivinhava fácil, mas tinha que se fazer fácil. Exigia-se isso a Rui Vitória, depois de uma época muito aquém das expectativas - com a pior prestação na Liga dos Campeões de uma equipa portuguesa e apenas um título conquistado, uma Supertaça Cândido de Oliveira. Três anos após a saída de Jorge Jesus, a marca de uma era esbatia-se e dava espaço a Vitória para exibir as suas ideias e comprovar que o que aconteceu na outra temporada foi apenas um infortúnio, que o seu Benfica era outro.

Os encarnados foram ao mercado, no plantel entraram Gabriel, Nicolás Castillo, Conti, Alfa Semedo, Odiseas Vlachodimos, Corchia, Ebuehi, Ferreyra e Lema. Dos utilizados por Rui Vitória só saiu Raúl Jiménez, raramente primeira opção do treinador. Mas no momento de mostrar o “seu” Benfica, Vitória falhou. As fracas exibições, com vitórias curtas e prestações de pouca qualidade, presas por um fio às qualidades individuais dos jogadores mais talentosos da frente, fizeram os adeptos desconfiar da Reconquista, o lema que o clube fez seu no início da época para voltar aos títulos.

À medida que a época avançava os maus resultados na Europa e a distância para o topo do campeonato fizeram com que o plantel se desligasse do treinador. O inevitável aconteceu e Rui Vitória saiu em janeiro, entrou Bruno Lage, um homem da casa, estudioso do futebol que tinha andado nos últimos anos por Inglaterra com Carlos Carvalhal. A chicotada psicológica, que no passado só tinha dado em título de campeão nacional para o Benfica numa ocasião, deu resultado. A equipa renasceu, a ideia de jogo tornou-se visível. Lage, em 19 jogos, venceu 18 e empatou apenas um e conseguiu os dois objetivos que definiu para a época: reconquistar os adeptos e o título.

O Benfica que se sagra campeão nacional este sábado é completamente antagónico ao que termina o campeonato. Estes são 10 capítulos sobre como tudo mudou.

Primeiro capítulo: Demasiado bom para ser verdade

Jogava-se a jornada sete da Liga NOS e os encarnados recebiam em casa o FC Porto. Já com dois empates, frente ao Sporting (1-1) e ao Desportivo de Chaves (2-2), o Benfica ocupava a terceira posição do campeonato. As perspetivas não eram otimistas para o Clássico, mas era imperativo que Rui Vitória fosse, pela primeira vez na carreira, capaz de derrotar os dragões. Caso contrário corria o risco de ficar a uma distância grande do topo da tabela demasiado cedo.

Por aquela altura, o futebol da equipa de Vitória não transparecia confiança, somavam-se vitórias curtas e exibições pouco convicentes pautadas por um conservadorismo de chegar à frente do marcador e de defender uma vantagem curta, tentando depois, através do talento individual, em situações de contra ataque, aumentar essa vantagem. Do outro lado um FC Porto com a confiança de um campeão nacional, de identidade assumida.

Num jogo pouco conseguido de parte a parte, um golo solitário de Seferovic deu a vitória às águias e uma consequente liderança no campeonato. As previsões ficaram de pernas ficaram de pernas para o ar, mas pedia-se cautela. O Benfica era uma equipa frágil num lugar privilegiado.

Segundo capítulo: De pés no chão

Durou uma jornada a ilusão de um primeiro lugar sem uma qualidade de jogo que o justificasse. Foi logo no fim de semana seguinte, na visita ao Belenenses, que a máscara caiu. Num dos melhores jogos da temporada até então, a bola teimou em não entrar e a equipa do Restelo não se fez rogada. Os pupilos de Silas fizeram abanar as redes em duas ocasiões e derrotaram o Benfica.

O que há primeira vista parecia um daqueles jogos que acontecem, daqueles em que a bola teima em não entrar tornou-se no início de um pesadelo para o emblema quando na nona jornada recebe e perde por 1-3 diante do Moreirense, a equipa sensação do campeonato.

No estádio da Luz e perante o seu público, percebeu-se que não havia ali capacidade de criar um futebol capaz de competir ativamente em todas as frentes. A equipa desgastava-se, as ideias não apareciam. Os adeptos afastavam-se da reconquista e o Benfica estava a quatro ponto dos FC Porto, líder isolado do campeonato.

Terceiro capítulo: Do céu ao inferno

Depois de sofrer uma dolorosa goleada por 5-1 na Alemanha, diante do Bayern Munique, em jogo a contar para a Liga dos Campeões, seguiu-se uma série de sete vitórias que culminou numa goleada em pleno estádio da Luz por 6-2, frente ao Sporting de Braga. Numa prestação inesperada, uma vez que apesar do registo vitorioso o estilo de jogo não apresentava melhorias visíveis, pareceu que durante 90 minutos adeptos, jogadores e treinador se tinham reconciliado numa perfeita harmonia. Nos golos e no futebol soava um grito de revolta contra um passado recente..

Mas, mais uma vez, tudo não passou de uma ilusão momentânea. Na jornada seguinte os encarnados foram a Portimão e saíram de o Algarve derrotados por 2-0. Já sem margem, Rui Vitória demite-se. O Benfica encerrava um ciclo de três anos e meio com o treinador que levou para a Luz dois campeonatos.

créditos: MIGUEL A. LOPES/LUSA

Era, no entanto, necessário fazer o teste do algodão e perceber se afinal o problema estava onde os adeptos benfiquistas achavam que estava: em Rui Vitória.

Bruno Lage, nomeado treinador interino depois de provas dadas na equipa B, sentou-se no banco de suplentes. Aos 20 minutos a equipa da casa perdia por 0-2. No estádio o ambiente estava pesado, imperava o sentimento de uma época perdida. Mal sabiam os que se deslocaram ao estádio que testemunhavam ali a mudança de uma época que parecia denunciada no futebol praticado nos meses anteriores.

Foi tarde, mas a tempo, que o Benfica partiu para uma grande exibição. Ainda antes do fim da primeira parte consegue chegar ao empate e aos 70 minutos selava a reviravolta: 4-2.

Era o início da era de Lage, do Lageball como as redes sociais viriam a apelidar a filosofia de jogo do novo técnico e dos Super Wings.

Capítulo quatro: E pluribus unum

Bruno Lage não era um estranho naquelas andanças, com um bom currículo lá fora nos Emirados Árabes Unidos e em Inglaterra, a primeira na formação e a segunda como treinador adjunto de Carlos Carvalhal. Antes, Lage já tinha treinado os escalões de formação do Benfica. Sentia o clube. Em última análise, foi para o Benfica o que Sérgio Conceição foi para o FC Porto, com um perfil de personalidade completamente distinto, mas na mesma linha: era alguém que sentia o clube, que conhecia a sua história e que sentia o peso da responsabilidade.

Na jornada 16, quando Lage assumiu o comando da equipa, o Benfica encontrava-se a sete pontos do rival do norte. Ainda não sabíamos que ia ser oficialmente treinador dos encarnados quando assumiu um discurso condizente com a histórica frase em latim inscrita no emblema do Benfica: E pluribus unum [De todos, um].

Lage queria recuperar essa mística de união entre equipa e adeptos com que é visto o Benfica. Por isso não assumiu nenhum outro objetivo que não este: “este é o caminho para reconquistar o público”.

Esta era outra reconquista, provavelmente a mais necessária. Bruno Lage apontou às bancadas em vez de ao topo da tabela. Nenhuma outra estratégia faria sentido.

Capítulo cinco: Samaris, o renascido

Até Bruno Lage assumir o comando técnico do Benfica, Samaris era uma carta fora do baralho. Somava apenas quatro jogos. 90 minutos na Taça de Portugal, frente ao Sertanense, e três encontros como suplente utilizado (diante do Rio Ave, FC Porto e Tondela).

Com um novo treinador tudo mudou. Samaris começou a ser utiizado regularmente a partir da lesão de Fejsa até se tornar dono indiscutível do lugar, primeiro em dupla com Gabriel e mais tarde, na reta final, com Florentino Luís.

Um jogador que todos consideravam intempestivo, de cartão amarelo fácil, alvo da equipa adversária a nível psicológico, mas a que todos reconheciam um grande benfiquismo, conservou a segunda e melhorou a primeira. De repente, o grego parecia outro, eficaz na defesa, perigoso no remate à entrada da área. O meio-campo era dele, já não era um suplente, era um jogador novo, que sabia o que fazer dentro de campo, mais maduro e capaz. Capaz de fazer esquecer Fejsa, o ganha pão do centro do terreno encarnado nas últimas épocas.

A grande prova ficou à vista de todos com o movimento nas redes sociais #renovasamaris pela permanência do jogador na Luz. As exibições corresponderam ao apelo e ainda esta semana o número 22 prolongou o vínculo aos encarnados.

Capítulo seis: A conquista dos adeptos, no primeiro jogo da conquista do título

Foi no dia três de fevereiro, um mês depois de ter assumido o controlo da equipa, e já com contrato assinado até 2023, que Bruno Lage conseguiu o objetivo que repetiu no final de cada jogo: a reconquista dos adeptos.

Tudo aconteceu num jogo de final de dia em Alvalade, onde só uma das equipas lisboetas podia sair dali viva na luta pelo título. Venceu o Benfica, num 2-4 num jogo que ficará na memória dos adeptos encarnados com uma enorme demonstração de força e de qualidade da equipa de Lage, mas sobretudo pelo incrédulo, pela improbabilidade de alguém, no início da época, afirmar que as águias podiam jogar assim.

Nessa jornada as estrelas sorriram ao clube da Luz e o FC Porto empatou no estádio do Vitória de Guimarães e Benfica passou a depender só de si próprio. Agora sim, a reconquista de Lage era a reconquista que todos os adeptos gritavam em uníssono no princípio da temporada.

Capítulo sete: Lageball total

A jornada a seguir à vitória em Alvalade fazia-se em casa diante do Nacional da Madeira. O sentimento era de plena confiança e… mais vale recuperar o resumo do encontro para se perceber o que o Benfica de Lage acabava de mostrar que era capaz de fazer numa demonstração de futebol de ataque.

Se precisa de um incentivo para clicar no vídeo, este foi o jogo que os encarnados venceram por 10-0.

Capítulo oito: Uma equipa selada a Félix e Ferro

Para além da goleada épica, o jogo da jornada 20 marcou a estreia de Ferro no eixo da defesa encarnada, após lesão de Jardel. O central que tinha entrado para o lugar do brasileiro no jogo da primeira mão das meias-finais da Taça de Portugal, em que o Benfica venceu o Sporting por 2-1, estreou-se no campeonato com um golo. Daí até reeditar a dupla da equipa B com Rúben Dias e conquistando os adeptos com um jogo de classe, maduro e uma qualidade de bola nos pés, de passe e remate, que poucos defesas conseguem ter, foi um instante.

Foi a consolidação da defesa. O ataque, esse, já estava fechado com a recuperação que Lage fez de João Félix quando assumiu a equipa, tirando-o da ala e colocando-o no centro do terreno e que valeu a entrada deste Benfica para o top das equipas mais goleadoras de sempre na primeira liga portuguesa.

Os extremos balançavam-se, a elegância de Ferro na defesa e a deselegância a que Félix obrigava os defesas, sempre irrequieto, matreiro criativo.

Capítulo nove: No dragão, o lugar de campeão

Depois de uma recuperação épica, o Benfica só dependia de si mesmo. O FC Porto conservava uma vantagem de dois pontos e, portanto, também só dependia de si. Tal só significava que o embate no Dragão iria ser a pole position para as seis jornadas finais.

Quis o destino que os dragões se adiantassem no marcador, mas que as águias conseguissem a reviravolta. Num jogo de dedicação e suor, completamente contrário ao que se tinha passado na Luz, o Benfica saiu na frente do campeonato.

Capítulo dez: A trilogia de Rafa

Não há um momento concreto para assinalar o despertar de Rafa. Um jogador que nas duas épocas se exibiu a um bom nível, mas que mostrou sempre fraca capacidade de concretização diante da baliza é, no final do campeonato, um dos melhores marcadores da liga e uma das figuras da equipa encarnada.

Rafa foi um dos melhores do Benfica, mas há três jogos a destacar, nas últimas jornadas diante de Sporting de Braga (fora), Portimonense (casa) e Rio Ave (fora). Nestes três encontros, determinantes para o título, o extremo marcou quatro golos, desequilibrou e guiou a equipa para a decisão no estádio da Luz, diante do Santa Clara, uma vez que o FC Porto nunca abrandou na luta.

Há uma boa quota parte do campeão europeu nesta conquista do título. Para terminar fica aquele que é candidato a ser um dos golos do ano da Liga NOS.