Antes do jogo, José Mourinho sabia duas coisas: primeiro, que ia defrontar “a melhor equipa na nossa competição [Premier League]”, segundo, que não poderia contar com aquele que é o principal nome do Tottenham e o único ponta de lança do plantel, Harry Kane.
No entanto, na conferência de imprensa de antevisão ao jogo da 22ª jornada da liga inglesa diante do Liverpool, o treinador português disse que nada o abalava: “sabemos a situação e o quão bons são. Podemos imaginar que nesta sala, provavelmente, só dois pensamos que podemos vencer. Talvez só dois, mas acreditamos. Temos de acreditar”, disse, na conferência de imprensa, ao lado de um dos seus pupilos.
E se há arte em que Mourinho é bom, é na arte de fazer acreditar. Que o diga Casemiro, médio defensivo do Real Madrid, que esta sexta-feira relatou em entrevista à “Líbero” um episódio dos tempos em que o atual treinador dos Spurs orientava o emblema espanhol. Aconteceu em vésperas de um jogo diante do Bétis de Sevilha para a liga espanhola. Estávamos em 2013.
“Mourinho dava sempre as palestras antes das refeições. No fim ele disse-me ‘vem até ao meu quarto, quero falar contigo’. Eu pensei ‘o que se passa?’. Quando entrei no quarto havia um quadro com o meu nome escrito. ‘Vês o que está aí?’, perguntou. ‘O meu nome’, respondi. E ele disse: ‘Tu vais ser titular’.”
“Conheço-te, jogas muito, és muito bom, muito tranquilo. Na primeira bola, vai com tudo. Rebenta. Os treinadores gostam de ver isso, jogadores que jogam com o coração. Nos primeiros 15 minutos dá tudo o que tiveres, faz passes longos. Conheço-te Casemiro”.
Na entrevista, o brasileiro diz que saiu daquele reunião com o ego reforçado. “Pensava que era o melhor médio defensivo do mundo. Pelo que ele me disse… e era Mourinho que estava a falar comigo. No jogo, fiz logo um passe longo para Cristiano Ronaldo e as coisas saíram melhor porque era um estilo de jogo que já conhecia. Depois do jogo, Mourinho veio falar comigo: ‘vês como te conheço? Jogaste muito bem e estás convocado para o jogo com o Dortmund’.
Ainda não conhecemos a história de bastidores deste jogo diante de Jürgen Klopp e dos seus pupilos, mas se não foi como esta, não pode estar muito longe porque diante da melhor equipa do mundo o Tottenham não se encolheu. Aliás, dificilmente alguém acabado de sair de longos meses de hibernação que estivesse a assistir a este jogo diria que as duas equipas estavam separadas por 28 pontos.
Com uma linha de três defesas, adaptada ao adversário, com José Mourinho a promover a estreia absoluta de Japhet Tanganga na liga inglesa, para o lugar do belga Vertonghen, para dar velocidade ao primeiro setor do terreno, aquele mais à mercê da rapidez de Sadio Mané e Salah. Danny Rose e Aurier a jogarem mais subidos, junto à linha do meio-campo, para ficarem alerta com as perigosas bolas nas costas da equipa de Klopp. Na frente, Lucas Moura e Son estabeleciam um ataque extremamente dinâmico e pronto para sair no contra-ataque. Tudo isto guarnecido por um Dele Alli explosivo, sempre disposto a ser um dos homens a sair em contra-ataque.
O jogo foi intenso e logo nos dois primeiros minutos de jogo o Liverpool podia ter chegado à vantagem, anulando tudo aquilo que tinha sido escrito nesta crónica até ao momento. Mas tal não aconteceu. Porquê? Porque estava lá Tanganga. Depois, na recarga de Oxlade-Chamberlain, viu o golo ser-lhe negado pelo poste.
A resposta dos Spurs viria três minutos depois, com Lucas Moura a assumir o encargo de responsabilidades na ausência de Kane e, com um movimento da linha para a entrada da área, sempre a contornar as pernas dos adversários, a rematar muito perto da baliza de Alison. Dois minutos depois, Son, em contra-ataque, tentou a sorte de longe, mas falhou. Dele Alli tentou igualmente o golo, mas para além da bola ter passado muitos metros acima da barra, o lance foi invalidado por mão na bola.
Foi só aos 24 minutos que voltámos a ter uma grande oportunidade para os Reds. Cabeceamento de Van Dijk a que Gazzaniga, guarda-redes dos londrinos na ausência prolongada por lesão de Hugo Lloris, respondeu com uma boa defesa.
O Liverpool dominava, mas o Tottenham não se importava, tranquilo no seu esquema tático recuado, à espera de responder em velocidade, com uma bola longa, apanhando desprevenida a linha defensiva subida dos Reds. Porém, os pupilos de Klopp erram pouco, tão pouco que aos 37 minutos acabaram por fazer o golo, daqueles só ao alcance de grandes jogadores como Roberto Firmino. Tanganga não conseguiu acompanhar o movimento de pés do brasileiro que, numa área em confusão, tirou o defesa dos Spurs da frente e atirou cruzado, com força e fez golo.
O VAR analisou uma possível bola na mão de Henderson, capitão de equipa e recentemente eleito melhor médio do mundo por Jorge Jesus numa entrevista, mas o erro não estava ali, estava sim na origem do lançamento de linha lateral que deveria ter pertencido à equipa de Mourinho e não à de Klopp. Um pormenor que não deve retirar o mérito ao artilheiro brasileiro.
O golo, no entanto, não abalou a paz de espírito do Tottenham que manteve o plano com que entrou no jogo. Apesar de não ter tido nenhuma oportunidade recebeu uma daquelas graças: viu Salah bailar dentro da sua área com toda a classe do mundo e, no momento do remate, a não fazer golo.
É importante percebermos uma coisa: Mourinho enfrentou uma equipa que não perdia há 37 jogos consecutivos na liga inglesa e que, nesta época, soma, para além de 19 vitórias, apenas um empate, diante do Manchester United.
Os números do treinador português contra Klopp também não eram abonatórios. O ‘Special One’ só venceu o alemão por duas ocasiões, uma quando treinava o Real Madrid, quando o alemão ainda estava no Dortmund, e outra ao serviço do Manchester United. De resto, Mourinho soma quatro derrotas e quatro empates frente a Klopp.
Já as contas do treinador dos Spurs contra o Liverpool, no total, são mais abonatórias.
Em 28 jogos distribuídos por quatro competições diferentes (Liga dos Campeões, Liga Inglesa, Taça da Liga inglesa, Supertaça de Ingalterra e Taça de Inglaterra), o português venceu os Reds por 12 ocasiões. Foi derrotado por sete vezes e empatou nove jogos.
Por esta altura será importante também dizer uma coisa. Na conferência de imprensa de antevisão ao jogo, José Mourinho também disse: “Há meses que disse que o Liverpool iria ser campeão. A situação deles não é surpresa para mim. São a melhor equipa na nossa competição”.
E se a crença é importante, não é um valor inabalável quando do outro lado está uma equipa prestes a cumprir de forma invencível o mesmo número de jogos que compõe uma temporada inteira da Premier League. Quando do outro lado está uma equipa que, vencendo o Tottenham, bate o recorde do Manchester City do melhor arranque de sempre da liga inglesa. Quando o adversário, no onze titular, tem quatro jogadores que integraram o top 10 da Bola de Ouro(Van Dijk, Salah, Mané e Alisson), entregue em dezembro passado a Lionel Messi.
A crença entrou em campo logo nos primeiros minutos da segunda parte, carregada às costas por Lucas Moura que, numa jogada individual, atirou perto da baliza do guarda-redes do Liverpool. Aos 57 minutos foi a vez de Aurier ter a oportunidade de chegar ao empate, mas o potente remate dentro da área dos Reds aterrou nas mãos do guardião brasileiro Alisson.
O Liverpool demorou a conseguir passar por Davinson Sánchez, o melhor defesa em campo do Tottenham, e quando o fez, Salah atirou à figura de Gazzaniga. Aos 65 minutos, Sadio Mané obrigou o guarda-redes argentino a uma grande defesa.
A crença da vitória de Mourinho começava a desvanecer-se. Marcar aos Reds não é fácil. Desde o dia quatro de dezembro que a equipa de Klopp não sofre um golo na Premier League. O último a consegui-lo foi, aliás, o Everton de Marco Silva num jogo em que foi goleado por 5-2 e que foi argumento pesado no despedimento do treinador português.
Com as notas no bolso e os gestos extravagantes a que nos habituou, José Mourinho parecia começar a ficar sozinho no lado londrino. Curiosamente, ao seu lado, Klopp acreditava que pela primeira vez esta época podia perder. Só isso justifica que a primeira substituição dos atuais primeiros classificados tenha sido a entrada de Lallana no jogo, para o lugar de Chamberlain, para reforçar o meio-campo, ainda a meio da segunda metade do encontro - para além das irritações expressas pelo alemão a partir do banco, claro.
Mas os suplentes dos Spurs, Lo Celso e Lamela, traziam a crença para devolver a vontade à equipa londrina. As fés desequilibraram-se e o Liverpool nunca retomou a calma com que ‘despachou’ o Leicester e o Manchester City, segundo e terceiro classificados respetivamente, esta época. Durante alguns minutos, os Spurs devolveram os pés do Liverpool ao chão e 'pregaram' as chuteiras de Klopp ao relvado do novo estádio do Tottenham.
Mas o sentimento natural de vitória só vive num dos lados. O Liverpool sabe ganhar, tal como Mourinho, mas este Tottenham ainda não. E é esta sorte, estrelinha de campeão como se costuma dizer em Portugal, que Son, o "Ronaldo sul-coreano" como é tantas vezes apelidado, não teve quando falhou a baliza numa grande oportunidade, em posição privilegiada, aos 75 minutos. E que Lo Celso não conseguiu encostar o cruzamento de golo cantado de Aurier. São ocasiões que os Reds não desperdiçariam.
O Tottenham tem de aprender a vencer e o Liverpool é precisamente a memória viva da última oportunidade desperdiçada: a final da Liga dos Campeões da época passada. A estrelinha não é para todos, há que conquistá-la, bater-se por ela todos os segundos dos 90 minutos. Os Spurs fizeram um bom jogo, provavelmente um dos melhores da nova era Mourinho, mas o máximo que conseguiram foi ficar perto do empate e nunca da vitória. Apesar de terem conseguido algo que não se via há muito tempo: uma imagem de Klopp, a vencer, e com o rosto de quem está em apuros com a vitória a poder fugir-lhe a qualquer momento perante um Tottenham que descobriu demasiados espaços na sua defesa.
O Liverpool chega assim aos 38 jogos de invencibilidade anunciados a meio do texto. Ultrapassam o City, conseguindo 61 pontos em 21 jogos, naquele que é o melhor arranque de sempre da Premier League. E aproveitam a derrota do Leicester e ficam a 16 pontos do segundo lugar, sendo necessário sublinhar que a equipa de Klopp tem um jogo a menos.
Atualmente, aquando do apito final, a única sensação que fica é a de que é impossível bater este Liverpool, a melhor equipa do mundo.
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