As dificuldades de meses sem repatriar salários, que em kwanzas têm cada vez menos valor face à desvalorização da moeda nacional, estão a dar que pensar entre os portugueses em Angola.

Na zona do Patriota, arredores de Luanda, a Lusa encontra António Sousa. Emocionado, recorda a chegada a Angola pela primeira vez, em 2008: "A saída do avião, aquele bafo quente, o cheiro a terra vermelha, muda-nos por completo. Fiquei apaixonado por esta terra".

Técnico de construção civil, hoje com 49 anos, já participou em todo o tipo de obras em Angola, país que escolheu pela língua e onde antes nunca tinha estado. Valeu o desafio de um afilhado angolano, para deixar a Costa de Caparica: "Comecei aqui do zero. Um país completamente diferente, uma cultura diferente, mas tem sido gratificante".

Tenta ver um país em recuperação, no meio da crise, onde agora, contrariamente há 10 anos, quase não falta nada nas prateleiras, "apesar dos preços exorbitantes" e por vezes sem explicação. "Todos os dias temos preços diferentes em tudo", observa.

Diz-se contente com a vida que tem em Angola, apesar das reflexões que já vai fazendo sobre o regresso a Portugal, onde os filhos estão a cargo da ex-mulher. As contas em atraso em Portugal é que já preocupam. "Desde junho de 2016 que não consigo fazer transferências [do salário que recebe em Angola]. É completamente impossível", desabafa.

A crise obrigou-o a "cortar com algumas coisas" no dia-a-dia em Angola, mas em Portugal foi mesmo "cortar com tudo": "Só se vai a Portugal mesmo para ver a família. Não há divisas nos bancos e eu sou contra trocar divisas na rua, não troco, está fora de questão".

É que para muitos, euros ou dólares só mesmo no negócio ilegal de rua, com taxas especulativas, mais de duas vezes acima do câmbio oficial. Na prática, explica, levaria para casa, recorrendo ao mercado de rua, o equivalente a um salário de ajudante de construção civil, em Portugal. "Não foi para isso que vim para cá", diz.

E sobre os efeitos da desvalorização do kwanza, mais de 25% face ao euro só em janeiro, e até porque as transferências para Portugal "teimam em não sair", prefere já nem fazer muitas contas.

Para já, afasta o regresso a Portugal, admitindo a expetativa com o novo Governo, de João Lourenço, e porque quer continuar a "ajudar" em Angola. Descreve Angola como um "país que ofereceu muitas coisas" aos portugueses, mas os tempos do dinheiro fácil, diz, já passaram.

Apesar dos constantes "altos e baixos", diz que iniciou 2018 com "esperança", apesar da desvalorização estar, de novo, "a dificultar a vida". O regresso a Portugal vai acontecer "um dia", mas para já ainda quer tentar "recuperar algum dinheiro", em kwanzas, que não consegue tirar de Angola.

Vasco Rocha, 38 anos, vive em plena baixa de Luanda. Não esconde que vive bem em Angola, onde gosta de estar. Chegou sozinho, há seis anos, deixando Viana do Castelo, no norte de Portugal, para assumir o "aliciante projeto” que hoje o tornou responsável pela gestão comercial e de produção num grupo angolano com cerca de 30 empresas.

Ainda assim, desde logo, a crise angolana que se arrasta desde 2014 obrigou-o a cortar no dia-a-dia: "Com os preços a aumentarem todos os dias, fez-nos mudar alguns hábitos. Se antigamente fazíamos convívios nos restaurantes, hoje em dia fazemos nas casas uns dos outros. Ficar mais vezes em casa, porque é tudo extremamente caro", explica.

Diz não ter razão de queixa da empresa para a qual trabalha desde a primeira hora. O problema são mesmos os bancos e as transferências dos salários, em kwanzas, para Portugal, em euro, por falta de divisas.

"A última transferência que fiz foi em fevereiro de 2017. Recebi janeiro, recebi fevereiro e terminou por ali. São 11 meses, é muito. [Para quem tem compromissos lá] é bastante complicado. Eu tenho dúvidas que em Portugal alguém estivesse 11 meses sem receber e continuasse no mesmo emprego", desabafa.

Com as contas para pagar em Portugal e a conta bancária a acumular kwanzas em Angola, Vasco lá vai colocando em cima da mesa o regresso. Só com a recente desvalorização do kwanza, explica que já perdeu, em janeiro, mais de 1.500 euros em comissões. "É mais uma dificuldade que nos ajuda a pensar em sair", diz, embora reconhecendo "o muito que há para fazer" em Angola.

Entretanto, como muitos outros portugueses, chegou a acordo com a empresa, que vai custear a vinda da mulher e da filha, já no próximo mês, para tentar atenuar as dificuldades e uma conjuntura que "faz pensar duas vezes se vale a pena continuar" em Angola.

"O amor à camisola já não paga dívidas, como se costuma dizer", desabafa.

Desvalorização do kwanza faz portugueses questionarem futuro em Angola

Para milhares de portugueses, a desvalorização em curso no kwanza significa, por estes dias, a machadada final no que alguns chegaram a apelidar de ‘El Dorado' angolano.

créditos: MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

Para muitos, o regresso a casa nunca esteve tão próximo.

Só em 15 dias de janeiro, a desvalorização superior a 25% do kwanza, face ao euro, representa menos 700 euros por mês num salário médio, em Luanda, de 650.000 kwanzas (3.000 euros), recebido em moeda angolana por um trabalhador expatriado.

Sónia Silva, gerente de uma agência de viagens angolana com sede em Luanda, admite que qualquer expatriado recebe hoje menos de metade do que recebia há uns anos, antes da crise. "Está muito complicado", desabafa, em conversa com a Lusa, ao mesmo tempo que insiste que a "paixão" por Angola “está intacta".

Só os portugueses já foram mais de 150.000, no tempo do crescimento económico a dois dígitos e das obras que não paravam um pouco por todo o país. A quebra prolongada na cotação do crude mudou tudo e obrigou nacionais e estrangeiros a mudar também.

Sónia deixou Lisboa quando tinha 34 anos, partindo para Luanda no que deviam ser umas férias. Passaram-se 10 anos, acabou por casar e ser mãe em Angola. Viu o "desenvolvimento brutal" da última década de uma Luanda metropolitana, de sete milhões de habitantes, mas hoje preocupa-se com o "descontentamento das pessoas" e a "instabilidade social" provocada pela crise.

"O fator segurança é algo que me preocupa mais, temos agora mais um bocadinho de cuidado, de evitar andar sozinha no carro, de sair à noite. E fazemos mais contas, toda a gente em Angola hoje faz mais contas, os expatriados também", explica.

Com o poder de compra em forte quebra, face à desvalorização do kwanza e à inflação que só em 2016 ultrapassou os 40%, os expatriados em Angola enfrentam ainda meses sem fazerem uma transferência do salário recebido em kwanzas para Portugal, em euros.

Atrasa-se pagamento de contas e outros compromissos em Portugal, tudo porque a crise fez rarear os euros e os dólares em Angola. "Já não me lembro quando é que fiz a última transferência para Portugal. Acredito que há mais de um ano, seguramente. É muito complicado", admite Sónia, embora reconheça que ter estabelecido a família em Angola, com menos compromissos no exterior, aliviou a pressão das contas.

"Os dias de hoje são muito diferentes de 2008, quando eu cheguei. Levantávamos dólares, levávamos dólares para Portugal. É verdade", recorda, a propósito do famigerado "El Dorado" angolano. Injusto, afirma, sobre os comentários às condições disponibilizadas aos expatriados: "Emigrar para Angola, para África, não é a mesma coisa que ir trabalhar para o Reino Unido ou para a Alemanha".

Como muitos portugueses, confessa que a desvalorização do kwanza, iniciada este mês, "fez com que as pessoas" começassem a pensar em "antecipar o regresso".

Uma espécie de machadada final das dificuldades dos expatriados portugueses.

Embora admitindo que a crise atual é "só uma fase má" e também uma "oportunidade única para investir em Angola", com um filho pequeno, que cria em Angola, e as preocupações constantes em arranjar cuidados de saúde em Luanda, este passou a ser um ano de decisões sobre o regresso a Portugal.

"Pensar se é este o futuro que quero dar ao Diogo. Estamos na fase de pensar o que é que vamos querer dar ao nosso filho", diz.

A alguns quilómetros de distância, no Morro Bento, arredores de Luanda, Filipe Cunha, de 39 anos, é hoje diretor de um hotel. Deixou Trás-os-Montes para abraçar um projeto turístico que já o levou a vários pontos de Angola nos últimos cinco anos, e, apesar das dificuldades, não prevê para já sair.

Chegou a Angola sozinho, na sua estreia em África, mas entretanto casou e já teve dois filhos em Luanda, hoje com três anos e 16 meses. Apesar de "não ver" transferências para Portugal desde 2015, relativiza a situação por ter a família estabelecida em Angola.

O que recebe em Angola, em kwanzas, fica em Angola e serve para, por agora, ter uma vida melhor e com qualidade. Desde logo passeando pelo país.

"A minha vida passa mais por cá, pela minha família, estando cá. Não se coloca tanto esse problema como algumas pessoas, que têm contas para pagar e que não conseguem transferir", explica.

Deixar Angola, apesar dos "cuidados" atuais, redobrados, não está por isso, para já, em cima da mesa para a família que constituiu em Luanda.

"Mas não posso dizer que vou ficar aqui eternamente", diz.

*Reportagem de Paulo Julião, da agência Lusa.