O maior desafio para plataformas de "streaming" como o Netflix é conseguir "mais visualizações e menos tempo de sono" dos utilizadores, mas também serem disruptivos no negócio do cinema tradicional, fora das salas de cinema. A afirmação foi feita na apresentação dos resultados trimestrais da empresa, a 17 de Julho, quando se vangloriou não apenas de como "mudou e re-inventou o negócio da televisão" mas também de como acredita poder fazer o mesmo à indústria cinematográfica. A internacionalização é também importante ao permitir a "popularidade dos conteúdos" de forma generalizada, explicou David Wells, responsável financeiro (CFO) da Netflix.
Reed Hastings, co-fundador e CEO da empresa, considera importante o investimento em produção nos mercados locais, olhando para a "enorme oportunidade" nos próximos anos no mercado asiático, "tão único e tão grande". Esta importância deriva do custo em captar clientes no estrangeiro, que é mais caro do que no mercado doméstico, tanto mais que está impedida de entrar na China por questões regulatórias.
O Netflix assume que 93% dos seus programas televisivos foi renovado, com os cancelamentos a um nível baixo, disse Ted Sarandos, responsável pelos conteúdos (ou Chief Content Officer como convém numa empresa em que o conteúdo é rei). Mas, quando um programa ou uma série tem sucesso e se torna um grande fenómeno cultural, disse Sarandos, "queremos ser capazes de controlar o destino dessas marcas enquanto continuamos a investir nelas".
Uma das categorias mais "eficazes" é a comédia, mesmo com valores mais elevados a pagar aos actores porque "consegue-se uma maior audiência" - são programas "vistos como filmes" e o maior custo é com esses "talentos perante o custo de produção".
Este ano, o Netflix espera investir seis mil milhões de dólares em conteúdos, incluindo 40 filmes de longa duração, e mais mil milhões de dólares em marketing.
Quando "criar uma estação de televisão é agora tão fácil como criar uma 'app', e o investimento está a disseminar-se na produção de conteúdos em todo o mundo", o mundo da televisão está a mudar, "todos somos co-pioneiros da TV pela Internet e, juntos, estamos a substituir a televisão linear" para a visualização "on-demand", antecipa a empresa.
Resultados acima do previsto
O Netflix ultrapassou as suas expectativas e as dos analistas relativamente ao número de assinantes no segundo trimestre do ano, tanto a nível dos EUA como internacional (como já ocorrera no primeiro trimestre).
O ataque de "ransomware" parece não ter tido impacto nas contas da empresa, que revelou ainda um acordo com a Altice/SFR France para o seu serviço ser comercializado em pacote com o acesso à Internet e a outros serviços de televisão, num modelo que pretende alargar a mais operadores.
A empresa esperava 3,2 milhões de novos subscritores do serviço mas chegou aos 5,2 milhões, com quatro milhões conseguidos a nível internacional - um mercado que já vale metade (50,1%) do total de 104 milhões de clientes.
Apesar dos analistas financeiros se focarem nestes números, a verdade é que a empresa conseguiu lucros de 2790 milhões de dólares, acima da expectativa dos analistas de 2760 milhões. No primeiro trimestre do ano, tinha conseguido 2.480 milhões de dólares - valores que incluem os acessos em todas as plataformas, desde as "set-top box" da televisão por cabo aos computadores ou aos dispositivos móveis.
Neste segmento, a empresa comporta-se bem melhor do que nas outras plataformas e cresceu 233% no período homólogo, em termos de receitas internacionais. Passou de 46 milhões de dólares no segundo trimestre do ano passado para 153 milhões entre Abril e Junho deste ano nas "app stores" da Apple e da Google, segundo a empresa de analítica Sensor Tower.
Por comparação, em termos homólogos, o crescimento total nessas lojas foi de 56%, quando a concorrente Hulu conseguiu apenas 22%. "O crescimento nas receitas móveis [do Netflix] é consideravelmente mais pronunciado do que o gerado nas plataformas não móveis", nota a SensorTower.
No entanto, a empresa continua a ser um buraco financeiro. No total, já acumulou mais de 20 mil milhões de dólares de dívida para a criação de conteúdo original.
Dívida cresce para ter mais clientes
A lógica da empresa parece ser simples e aceite pelos financiadores: melhor conteúdo original significa obter mais clientes, numa altura em que concorre com a Amazon (que tem o Prime Video igualmente com uma dívida a longo prazo mas sustentada nas operações de retalho online), o Hulu, o YouTube ou o Facebook, onde Hastings tem assento no conselho de administração desde 2011.
A empresa assegura que vai continuar a ser deficitária e os investidores parecem apoiar a estratégia de "you have to spend money to make money", apesar dos temores de que se possa "afundar" na dívida em conteúdos que não dão retorno.
Essa dívida passou de 254 milhões de dólares no segundo trimestre do ano passado para 423 milhões no primeiro trimestre deste ano e aumentou para 608 milhões no segundo trimestre. Ainda para 2017, a empresa prevê chegar aos 2.500 milhões de dólares negativos mas considera ser "inteligente continuar a investir" desta forma e espera que a situação prossiga "negativa por muitos anos", devido aos investimentos nos conteúdos.
No entanto, consegue financiar-se e, no final de julho, anunciou ter obtido um crédito de 500 milhões de dólares (a que podem acrescer mais 250 milhões), após ter conseguido um outro empréstimo em abril de 1400 milhões de dólares. As entidades financiadoras são o Deutsche Bank, Goldman Sachs, JPMorgan Chase Bank, Morgan Stanley e o Wells Fargo.
A originalidade do Netflix
Noutro documento revelado nos resultados trimestrais, o Netflix considera que, devido a obrigações no "licenciamento de direitos de títulos futuros desconhecidos" ou ainda não determinados, nomeadamente no número de temporadas das séries televisivas a emitir, o valor das obrigações financeiras a assumir podem variar entre "os três mil milhões e os cinco mil milhões de dólares nos próximos três anos", embora a maioria desses pagamentos deva ser regularizada "após os próximos 12 meses".
A questão parece simples: apesar de assumir que certas séries são suas ("Netflix Originals", como as denomina), elas são licenciadas a produtoras externas. Por exemplo, no documento "Content Accounting Overview", sabe-se que "House of Cards" pertence à produtora Media Rights Capital, que fornece conteúdos para concorrentes como a HBO, AMC, Comedy Central, e distribuidoras cinematográficas como a Sony, Warner Brothers, Universal, Paramount e Fox.
Há mais: os direitos de licenciamento de "Orange Is the New Black" vão para a Lionsgate, "Iron Fist" é da Marvel e os direitos de "Narcos" são da Gaumont. Isto só para falar de algumas das séries mais conhecidas.
A empresa não divulga os valores que paga por estes licenciamentos exclusivos mas, quando se analisam as séries produzidas pela própria Netflix, nota-se que o sucesso de público não tem retorno.
Como se chegou aqui?
O Netflix nasceu a 14 de Abril de 1998 como a "primeira loja de aluguer online de DVD", então com apenas 900 títulos, a serem entregues entre dois a três dias em qualquer local dos EUA. O utilizador ficava com o DVD durante uma semana e depois fazia a devolução num envelope pré-pago. Em 2007, começou a fornecer o serviço de "streaming" nos EUA, alargando três anos depois o negócio para mercados internacionais.
Actualmente, segundo a empresa, é a maior "rede de televisão pela Internet com 104 milhões de membros em 190 países a apreciar mais de 125 milhões de horas de conteúdos televisivos e filmes por dia".
Em 2012, expandiu-se para o norte da Europa e chegou a Portugal em 2015.
Em entrevista ao Expresso, em junho desse ano, Reed Hastings declarou que "vamos ter em Lisboa o centro de suporte para o sul da Europa. A nossa equipa de gestão esteve em Portugal várias vezes para avançar com a criação deste centro de suporte para servir França, Itália, Espanha e Portugal. Lisboa é uma excelente cidade para viver e não é cara. A nossa agência local vai recrutar dezenas de pessoas de diferentes nacionalidades para trabalhar no centro". Isso não aconteceu.
Em maio passado, com Portugal de fora, a empresa revelou a criação de 400 empregos no "novo centro europeu para os clientes" de 11 países na Europa, "empregando inicialmente uma força de trabalho de 170, crescendo para 345 até final de 2017 e ultrapassando os 400 no final de 2018". O novo centro em Amesterdão (Holanda) junta-se aos que tem nos EUA (Salt Lake City e Utah) e em Yokohama, no Japão.
O anúncio laboral ocorreu um dia após a polémica no festival de cinema de Cannes, em que dois filmes da Netflix foram apresentados à competição e a organização decidiu que isso não iria ocorrer no futuro, excepto se mudassem as regras de apresentação dos filmes, estabelecendo "janelas temporais" entre a estreia em cinema e no serviço de "streaming" que, no caso francês, são de 36 meses.
"Vamos deixar os consumidores decidir" onde os querem ver, explicou a empresa.
Canais 'tradicionais' de televisão versus streaming. E agora?
Para a maior rede social como é o Facebook, o alinhamento com um sistema de "streaming" de vídeo como o Netflix pode ser sustentável em termos de partilha de receitas publicitárias, quando o YouTube anunciou em maio querer financiar programas televisivos com celebridades como Ellen DeGeneres ou Katy Perry.
"Há cinco anos, 85% de todas as séries originais eram suportadas pela publicidade", explicou Robert Kyncl, responsável de negócio do YouTube. "Este ano, esse número caiu para apenas dois terços" e está a acelerar nos serviços por subscrição. Assim, "vemos esses programas como uma forma de parceria [com os anunciantes] para enfrentar essa tendência".
A Amazon deve ter 85 milhões de subscritores no serviço Prime, mas estão integrados com outras ofertas, sendo difícil de distinguir os interessados apenas no serviço de vídeo por subscrição.
O Hulu está mais preso ao modelo tradicional da televisão, até porque os seus investidores são dessa área (ABC, NBC ou Fox) e tem apenas 12 milhões de assinantes. Mas esta oferta é interessante porque os seus clientes são mais fiéis.
Numa análise divulgada em abril pela analista ComScore, o Hulu conseguia uma média de mais de 30 minutos perante os concorrentes. A média diária de um utilizador doméstico do Hulu chegava às 2,9 horas, enquanto o Netflix se ficava pelas 2,2 horas, o YouTube nas 2,1 horas e o Prime nas duas horas.
Num outro estudo, revelado no final de julho pelo Solutions Research Group (SRG) e que incluiu pela primeira vez os três maiores serviços de "streaming", todos se posicionaram bem perante as cadeias tradicionais de televisão nos EUA. O Netflix ocupou a quarta posição em 77 marcas de televisão, à frente da Fox, ESPN ou HBO. O Amazon Prime Video ficou em 14º, à frente da CNN, e o Hulu em 22º.
Neste inquérito online realizado em abril a quase 1500 norte-americanos, o Netflix é também líder nas marcas para a audiência entre os 18 e os 34 anos, um segmento etário para quem a televisão é sinónimo de ver quando lhe apetece. O Hulu surge em nono lugar e o Prime Video em 11º.
Estes três serviços tiveram um crescimento de 26% para 38% num ano nas casas norte-americanas, segundo um outro trabalho da Hub Entertainment Research (HER) revelado em julho, considerando-se que quase 60% dos lares norte-americanos já subscrevem pelo menos um destes serviços de "streaming".
Neste cenário, coloca-se um desafio aos operadores tradicionais de televisão por cabo paga. Em Portugal, eles agregam estes serviços nos seus pacotes e, quando se consultam os relatórios de contas, é difícil perceber se serviços como o Netflix são ou não dinamizadores das escolhas dos utilizadores.
Em paralelo, sabe-se que estas plataformas disruptivas da tradicional televisão linear oferecem dados analíticos precisos da sua audiência (que interessam aos anunciantes publicitários), e estão a perturbar o mercado televisivo.
"Pedem-nos não só porque as pessoas se ligam mas quando desligam e porquê", explicava recentemente Ryan King, director de pesquisa da empresa de analítica televisiva Samba TV. "Ao olhar para o futuro, a televisão será muito mais 'on-demand'" e muita será em serviços como o Netflix, afirma Scott Rosenberg, responsável de publicidade no serviço de "streaming" Roku.
"O Netflix deu aos consumidores o gosto pelo enorme catálogo de conteúdos", confirma Jon Giegengack, da HER, e mesmo os seus utilizadores acabam por "adoptar a Amazon e o Hulu (entre outros) para acederem a mais programas, bem como a exclusivos e a originais, por um custo reduzido. Mas o seu tempo disponível é o mesmo, pelo que os fornecedores online e tradicionais têm de competir mais arduamente pela quota de tempo".
Ou seja, conseguir "mais visualizações e menos tempo de sono" dos utilizadores.
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