A Suíça decidiu este domingo rejeitar em referendo o rendimento básico universal ou individual (RBI). Segundo os dados oficiais provisórios, quase 77% dos suíços rejeitou a proposta em referendo. Mais de 568 mil votantes disseram sim à iniciativa, enquanto quase 1,9 milhões optou pelo não. O referendo, que envolvia outros quatro temas diferentes, teve uma participação de 46,4%. Zurique foi o cantão com mais apoiantes da iniciativa, com mais de 110 mil votos pelo sim, perante mais de 330 mil pelo não.

Para os defensores da medida, os resultados são animadores: "uma pessoa em cinco votou a favor [do RBI], ou seja, podemos falar num sucesso", disse Sergio Rossi, professor de economia e membro do comité de apoio da iniciativa ao SwissInfo.

O tema é polémico e, segundo algumas sondagens anteriores ao referendo, 72% dos votantes suíços era contra a adopção do RBI proposta em Outubro de 2013 por uma petição assinada por 125 mil pessoas. Tanto o Conselho Federal como o Parlamento eram contra a iniciativa, por "fragilizar a economia suíça e o sistema de segurança social, dado ser possível que menos pessoas escolham trabalhar", com impacto no mercado laboral e num provável aumento de impostos para financiar a medida. Mas, mesmo que fosse aprovada, ela não seria aplicada de imediato, sendo antes remetida ao Parlamento para propostas de alteração à Constituição.

Num texto sobre "a genealogia de uma utopia", o jornal francês Le Monde explicava recentemente como o RBI era "uma ruptura completa com o dogma segundo o qual apenas o trabalho pode gerar um rendimento". Assim, trata-se de "dar a cada indivíduo, desde a sua nascença até à sua morte e qualquer que seja a sua actividade, um rendimento suficiente para satisfazer as suas necessidades elementares, tendo por objectivo erradicar a pobreza".

Na explicação do governo suíço, visava-se referendar uma alteração constitucional para permitir um rendimento básico a "todos os que vivem na Suíça, independentemente de quanto ganham ou dos bens que tenham". Sem quaisquer condições impostas para receber o RBI, "os autores da iniciativa acreditam que ela assegura uma existência decente para todos". Mas, segundo o governo, nem o valor mensal ou os meios para a financiar estavam estabelecidos, devendo o Parlamento suíço definir ambos no caso de aprovação no referendo.

Os críticos apontam a medida como um "sonho marxista", com todos - em teoria - a terem um mínimo decente de sustento para a sua vida.

Os apoiantes vêem o RBI como uma garantia de "vida digna", como muitas constituições defendem. No caso português, a Consituição afirma como uma das "tarefas fundamentais do Estado" a promoção do "bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais".

O RBI é igualmente tido como uma alternativa num mercado de trabalho que caminha a passos largos para a automação, com a robótica a ocupar diferentes cargos antes desempenhados pelos humanos. Não só se pretende atenuar o choque social que isto poderá gerar, como se alega que uma sociedade baseada na automação industrial, numa escassez demográfica e numa maior riqueza mundial (mal distribuída) poderá sustentar uma mudança de mentalidades.

O que é o RBI?

O RBI é "uma resposta para a próxima época de abundância material e desemprego tecnológico; uma mudança fundamental na atitude", permite "tipos de criatividade e de contribuição, incluindo o sector voluntário, sem exigir que os destinatários procurem emprego remunerado", bem como "remove" o estado da vigilância com "que trata todos os beneficiários de pagamentos pela comunidade como sendo suspeitos", nomeadamente pela obtenção ilegal de subsídios ou de fuga aos impostos, explicava o site Transpolitica.

O RBI tem problemas ainda sem resolução, como a sua aplicação a emigrantes temporários. A declaração suíça é clara: em caso de aprovação, o RBI só se iria aplicar a quem vive (legalmente) no país.

Apesar da teoria, a prática do RBI é complicada mas ganha cada vez mais adeptos que tentam limar os problemas da sua eventual aplicação e obviar a declarações como "se se paga a pessoas para não fazerem nada, elas não farão nada", na síntese de Charles Wyplosz, professor de economia do Geneva Graduate Institute.

Um estudo da Basic Income Earth Network (BIEN) considera que apenas 2% das pessoas iriam parar de trabalhar no caso de receberem o RBI (um outro inquérito a nível europeu aponta para 4%). Entrevistas a pouco mais de mil suíços revelaram que, mesmo entre os jovens, aqueles que iriam deixar de trabalhar eram casos de reduzida dimensão - apesar de um terço considerar que não eles mas os "outros irão parar de trabalhar".

67% acreditava que o RBI iria "libertar as pessoas dos seus medos existenciais", 54% iria continuar os estudos, 53% tenderia a passar mais tempo com a família, 40% ia dedicar-se ao voluntariado e 22% lançava um negócio pessoal.

Num inquérito telefónico a 10 mil pessoas nos 28 países europeus, a média de apoio a esta medida atingia os 64%, com a Espanha a liderar o apoio à medida com 71%, seguida da Itália com 69%. No inquérito, revelado em Maio passado, 64% votaria a favor num referendo sobre o RBI, com 24% a ser contra. Mas o inquérito "mostra uma correlação entre o nível de consciência sobre o RBI e o nível de apoio. Por outras palavras, quanto mais as pessoas sabem sobre a ideia, mais tendem a apoiá-la".

História de um rendimento não garantido

Segundo a BIEN, a origem do RBI remonta ao século XVI, mas, mais recentemente, teve vários defensores de peso e alguns trabalhos académicos. Dos não citados no histórico da BIEN, consta uma obra de 1967 de Martin Luther King, Jr., que escreveu - citado pela FiveThirtyEight - sobre como "a solução para a pobreza é aboli-la directamente por uma medida agora bastante discutida: o rendimento garantido". Dois anos depois, em "The Macroeconomics of a Negative Income Tax" (NIT), Hyman Minsky concluía tratar-se de um "instrumento complexo, e o seu uso pode levar a efeitos colaterais não intencionais e indesejáveis".

Entre 1968 e 1980, os EUA testaram o NIT nalgumas (poucas) cidades mas o suficiente para Karl Widerquist, da Georgetown University-Qatar, considerar que foram um "falhanço político", sem se conseguir responder ao impacto no mercado de trabalho: "não mais de 5 a 7%" entre os subsidiados primários e "um pouco mais" nos secundários desistiram do emprego. Mas, segundo Widerquist, não se generalizou o abandono laboral e os que reduziram as horas no trabalho procuraram outros objectivos, incluindo estudar.

Desde os anos 80 do século passado, com Ronald Reagan nos EUA e Margaret Thatcher no Reino Unido, ocorreu uma diminuição do Estado social e quaisquer ideias sobre o RBI foram arrumadas. Até que começou a ressurgir em diferentes locais.

A Finlândia foi a primeira nação a propor formalmente um RBI. Seguiu-se a Suíça com a proposta de referendo sobre o assunto, a província canadiana do Ontário e, em Março passado, a Nova Zelândia. Também a Itália, através do movimento 5 Stelle, assim como Portugal, onde o movimento Rendimento Básico foi criado em Março de 2013 e é associado da BIEN.

Em França, prevê-se um "livro branco" sobre o assunto, a tempo das eleições presidenciais de 2017, quando foi naquele país, em 1985, que surgiu a Association pour l"instauration d"un revenu d"existence (AIRE) e, um dos seus fundadores (Yoland Bresson), criou a BIEN no ano seguinte, com o holandês Philippe Van Parijs.

Segundo o Le Monde, a ideia do RBI situa-se na "tradição comunista" de que, para quem participa na criação da riqueza comum, esta deve ser partilhada entre todos, consoante as suas necessidades, bem como na "tradição liberal" de que todos devem partir de uma mesma base, independentemente do berço onde nasceram. O jornal francês lembra que, por exemplo, foi este movimento que esteve na origem do rendimento mínimo de inserção (criado em 1988 e adaptado para Portugal em 2003 como Rendimento Social de Inserção).

Quando ao RBI, recorda igualmente que seria um meio de recusar empregos mal pagos (os " bullshit jobs", na expressão do antropólogo David Graeber). Mas a confusão ideológica sobre o RBI é enorme. Por exemplo, ainda segundo o diário francês, alguma da oposição ao RBI surge de ideólogos da esquerda, porque consideram tratar-se "na realidade de desmantelar a Segurança Social. Uma inesperada oferta aos patrões, em resumo". Mas, explica Van Parijs, o RBI iria aumentar o poder de negociação dos que recebem menos no mercado de trabalho e forçar "as empresas a melhorarem os salários ou as condições de trabalho dos empregos menos atractivos".

"Follow the money"

Uma das questões principais neste debate sobre o RBI é precisamente o dinheiro. Segundo o economista Samuel Bendahan, "é o problema com o conceito. Pode ser entendido como um rendimento de existência ou como um complemento de salário". No primeiro caso, o trabalhador tem armas para "não depender do trabalho e, assim, do patronato", equilibrando "as relações de força" ou incentivando-se a iniciativa pessoal.

Para outros, o RBI substitui todas as ajudas sociais e, logicamente, a intervenção do Estado na vida pessoal. Com um menor grupo de funcionários públicos, a segurança social passaria a ser assegurada pela escolha individual em entidades privadas. Da mesma forma, seria desnecessário um ordenado mínimo, fragilizando as posições sindicais.

Em resumo, com um RBI baixo, devido aos constrangimentos orçamentais, "se não se acabam com as outras ajudas, onde encontrar o dinheiro para dar 800 euros por mês a cada cidadão? É impossível", afirma Bendehan.

Na Finlândia, o instituto de segurança social Kela divulgou no final de Março um relatório preliminar sobre o RBI, onde aponta diferentes modelos. A versão final será apresentada em Novembro, com uma maior explicitação dos diferentes modelos, a tempo da adopção do modelo experimental a vigorar no período 2017-18, com a avaliação de resultados calendarizada para 2019.

Segundo o Kela, a experiência do RBI "é um dos passos a tomar para alinhar o sistema de segurança social finlandês com as mudanças na natureza do trabalho, para tornar o sistema mais participativo e reforçar os incentivos ao trabalho, para reduzir a burocracia e simplificar o agora complicado sistema de benefícios de uma forma que garanta a sustentabilidade das finanças públicas". Até porque, como diz a instituição, se um RBI incondicional substituir "o existente sistema de provisão social", ele terá de ser "substancial" e, por isso, dispendioso.

A instituição parece defender mais um modelo parcial, por consolidar benefícios actuais, propondo experiências ao nível nacional mas também regional. O Kela nota que, por exemplo, para os pais solteiros a pagarem rendas elevadas em Helsínquia, um re-ajustamento com o RBI poderia "aumentar a pobreza e criar mais dificuldades financeiras".

Mas talvez uma das respostas mais eficazes sobre o RBI surja não de países ocidentais mas do Quénia. Michael Faye, co-fundador e responsável pela organização não-governamental Give Directly, anunciou que esta vai lançar um projecto para dar um rendimento básico a 6.000 pobres nos próximos 10 a 15 anos. "Para ser honesto, um RBI a longo prazo nunca foi testado, muito menos rigorosamente avaliado", diz, nomeadamente considerando quatro princípios essenciais: ser universal, aleatório, a longo prazo e suficiente para se viver.

E em Portugal?

O RBI também tem apoiantes em Portugal. O Pessoas-Animais-Natureza (PAN) quer um grupo de trabalho na Assembleia da República para estudar a criação do RBI.

No site do Rendimento Básico, entende-se que "a quantia deve ser suficiente para garantir condições de vida decentes, que estejam de acordo com os padrões sociais e culturais do país", devendo "estar ao nível de risco de pobreza de acordo com os padrões europeus, o que corresponde a 60% do denominado rendimento mediano por adulto equivalente no país".

Algo semelhante é dito numa petição e que já obteve a assinatura de mais de 5.000 pessoas.

Na linha de oposição ao RBI por parte de ideólogos da esquerda, Francisco Louçã é um bom exemplo. No blogue Tudo Menos Economia (jornal Público), argumentava em Março de 2015 que o RBI "é estranhamente injusto, porque paga o mesmo ao pobre e ao rico, e é mal fundamentado, porque não propõe qualquer forma consistente de pagar a conta".

Por exemplo, "se o subsídio de desemprego é substituído pelo RBI, então alguns dos desempregados vão perder uma parte do seu rendimento (porque o subsídio ainda toma em consideração o valor dos salários sobre os quais se faziam os descontos e pode ser superior ao RBI)".

Calculando um RBI em Portugal de 420 euros - verba inferior ao salário mínimo -, "alguns dos desempregados deixariam imediatamente de poder pagar as despesas que têm, na compra da casa ou na educação dos filhos, ficando sem tempo de readaptação, porque o RBI seria inferior ao subsídio a que teriam direito. Nestes casos, o RBI não combate a pobreza, contribui para ela". Nesse sentido, "se é só para combater a pobreza, então a escolha mais lógica é uma política condicionada à redução da pobreza".

Considerando que "o RBI é uma obrigação contraída em nome do Orçamento de Estado (é o Estado que paga)", Louçã diz existirem "formas interessantes de financiamento de políticas sociais. Para dar exemplos com que concordo: o imposto sobre as grandes fortunas, a tributação das heranças, a taxação das mais valias urbanísticas, taxas sobre indústrias extractivas e outros impostos verdes, o fim de isenções e benefícios injustificados, a redução da evasão fiscal, tudo isso assegura receitas fiscais e melhora a justiça dos impostos".

No entanto, "o melhor resultado" dessas tributações "nem de longe nem de perto se aproxima do valor necessário para pagar o RBI. Mesmo que aumentassem espectacularmente a receita fiscal, não bastaria".

Louçã faz as contas: "Em 2013, a população de Portugal era de 10.562.178 almas. A receberem todos 420 euros por mês, 14 meses no ano, o custo da medida é de aproximadamente 61.700 milhões de euros. Noto desde já que este valor é muito reduzido para cada pessoa, abaixo do salário mínimo nacional, e dificilmente pode ser defendido como garantindo uma 'vida digna', precisamente porque corresponde ao limiar de pobreza. Compararei por isso os resultados com os de outros dois valores para o RBI (700 euros, um pouco abaixo do salário médio em Portugal, e 1.000 euros, um pouco acima). Nestes casos, o custo directo da medida seria de 103 mil milhões e de 147 mil milhões de euros por ano, respectivamente".

Mesmo tendo em atenção que o Estado deixaria de pagar algumas subvenções que Louçã calcula em 9.500 milhões de euros ("1.700 em acção social, 2.000 em subsídio de desemprego, 391 em subsídio de doença, 639 em abono de família, 200 em CSI, 300 em RSI, 3.500 em pensões de sobrevivência e invalidez, etc.)", com uma receita fiscal calculada em 38.874 milhões de euros em 2015, "é preciso conseguir mais cerca de 50 mil milhões para pagar o novo compromisso do RBI a 420 euros por pessoa. Para isso, é forçoso mais do [que] duplicar a cobrança de impostos, que teria que passar de 22% do PIB para 53% (no caso de RBI a 700 euros os impostos teriam que passar a ser 76% do PIB, ou seja, teriam que quadruplicar, e no caso do RBI a 1.000 euros o Estado teria que cobrar em impostos 102% do PIB, o que é evidentemente ilógico e impossível)".

Segundo este professor universitário, para se pagar o RBI, "a maior parte das pessoas tem de pagar muito mais impostos" e isto "conduziria a um Estado cobrador como jamais alguém o imaginou".

Para já, a Suíça evitou este cenário.

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