
Chasiv Yar está completamente deserta. A neve cobre tudo nesta pequena cidade no leste da Ucrânia e se derretesse não haveria vestígios da vida que outrora tinha.
A artilharia russa deixou poucos edifícios de pé e os últimos habitantes abandonaram a cidade há dois dias, graças à tenacidade de um grupo de voluntários agora especializado em entrar nas piores áreas do Donetsk para retirar a população. No chão apenas restam as marcas de lagartas, nas paredes buracos dos estilhaços.
A cidade está a 17 quilómetros de Bakhmut, onde há semanas as Forças Armadas da Ucrânia estão a tentar repelir a ofensiva de Moscovo apoiada pelos mercenários do grupo Wagner. O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, deverá anunciar a conquista de Bakhmut na sexta-feira, por ocasião do aniversário do primeiro ano desde o início da invasão da Ucrânia.
Contudo, não há indicações de que a cidade tenha 'caído'. Com tantos avanços e recuos na região, Chasiv Yar está hoje a pouco mais de cinco quilómetros da linha da frente. E aqui só há neve e o som ininterrupto da artilharia, de um lado e do outro.
Ouvem-se duas explosões, uma e imediatamente depois outra. Uma terceira dois minutos depois. Ainda não tinha passado um quarto de hora desde que a Lusa entrou na cidade e pelo menos 12 projéteis tinham atingido esta pequena localidade.
Entre as árvores é possível vislumbrar dois tanques, escondidos para que a artilharia russa não os encontre e destrua. Um pouco adiante há mais um, mais dois, pelo menos 16 tanques estão escondidos e posicionados. Mas há mais.
Ao longe, entre os bombardeamentos, ouve-se o som de lagartas a avançar pela estrada e a quebrar o gelo que a cobria. A bordo três militares ucranianos, que sem pestanejar 'enfiam' o tanque entre as árvores, para o ocultar dos olhos das forças do Kremlin.
"Viemos do trabalho", gritam.
O primeiro a sair do veículo de combate é Aleksandr, comandante de uma brigada que está desde o início da guerra no Donetsk. Aleksandr dispensa apelido, é apenas conhecido como o homem que conseguiu capturar dois tanques russos e integrá-los na sua unidade de oito.
À Lusa diz que os utiliza para "repelir os antigos proprietários".
Chasiv Yar continua sob ataque, mas Aleksandr está calmo: "A condição para atacar é má, há muita neve, muitas árvores, eles não conseguem avançar e têm má pontaria."
Os projéteis caem, um deles a pouco mais de 200 metros do local onde o comandante desta brigada conversava com a Lusa, mas tanto Aleksandr como os dois militares que o acompanhavam a bordo do tanque continuam a conversar, enquanto preparam o 'manto da invisibilidade' que o vai camuflar entre a neve. À distância é praticamente impossível perceber que entre aquelas árvores está um tanque apontado à linha da frente.
Aleksandr tira as luvas, na mão direita falta-lhe o polegar. A cicatriz é recente. O comandante explica que o perdeu há uns meses, durante uma incursão pelo Donetsk, quando o tanque em que seguia foi atingido e explodiu. Aleksandr e os restantes militares a bordo daquele veículo conseguiram sair e sobreviveram.
E já conseguiu ajustar contas: "A pilotar sozinho já consegui destruir dois!"
À Lusa explica que os 17 tanques que estão apontados à linha da frente e escondidos dos olhos do inimigo são para criar em Chasiv Yar uma linha de defesa para a eventualidade da queda de Bakhmut. O inverno está a chegar ao final, vai ser mais fácil avançar no terreno e de Bakhmut a Chasiv Yar é um instante.
Por agora, "o tempo ainda está do lado ucraniano", mas é preciso estar preparado "para quando não estiver", até porque já há militares russos "a 1.000 metros".
O som dos projéteis continua a irromper pelo silêncio desta cidade reduzida a uma memória.
"Por hoje está feito", diz Aleksandr, enquanto começa a caminhar para um dos poucos edifícios que está intacto.
Está a anoitecer e é possível ver algumas luzes no interior. O que resta da cidade é agora abrigo para os militares ucranianos e poderá vir a ser palco de uma linha de resistência, cada vez mais provável com a situação em Bakhmut a degradar-se.
Cambaleia enquanto caminha pela neve, cansado, mas diz estar disposto a prosseguir. "Vou continuar aqui para defender o meu país, não estou a atacar, só estou a defendê-lo", acrescenta.
Despede-se e entra numa habitação com as janelas emparedadas, não muito longe dos tanques.
Com a chegada da noite e como é habitual em outras cidades, os bombardeamentos intensificam-se, pelo que é impossível permanecer na cidade. Ao longe surge um clarão, mais um projétil que perfurou o solo.
À entrada da cidade estava mais um tanque a ser abastecido e na estrada esburacada e coberta de gelo um camião acaba de chegar com mais um. A próxima linha para resistir está a compor-se.
Na estrada que dá acesso a Chasiv Yar, é possível ver o que restou da batalha em Izium, que esteve sob controlo russo e há quatro meses foi reconquistada.
As aldeias estão completamente destruídas, é possível contar as habitações que ainda têm as quatro paredes. A abóbada de uma igreja tem um enorme buraco e as paredes estão danificadas pelos estilhaços. Só dois baloiços estão intactos, entre a destruição.
Os campos que noutra vida serviram para a agricultura hoje são um cemitério para tanques e os veículos carbonizados de civis apanhados no meio. O cheiro a metal e a eletricidade queimada tingem o ar.
No meio da estrada que liga Izium a Chasiv Yar estão quatro militares ucranianos. O emblema que um deles tem no braço direito não deixa margem para dúvidas: são do Regimento 'Kraken', uma unidade militar voluntária, que tem aproximadamente 1.800 elementos.
"Este está ótimo", diz um dos militares, enquanto aponta para um míssil intacto no interior de um camião praticamente reduzido a cinzas e tombado para a berma. Com cuidado, três elementos retiram o míssil enquanto o quarto dá instruções. É, no mínimo, desaconselhável que o deixem cair.
O míssil é amarrado a uma carrinha Nissan pickup 'quitada'. As portas estão blindadas com partes de outros veículos de combate, os vidros também estão protegidos com placas de metal. Na frente, uma imagem do tridente que representa as Forças Armadas ucranianas está a empalar as águias, o brasão de armas da Federação Russa.
Questionados sobre o aparato, um deles, que preferiu não dizer o nome, apressa-se a mostrar o que estão a fazer. Tira o telemóvel do bolso e mostra o 'render' de um modelo 3D da carrinha com um lança-foguetes no topo.
"A nossa unidade tem pouco armamento, às vezes é preciso improvisar e é isso que vamos fazer", explica.
Nesta parte do Donetsk, com as forças russas a progredir e uma das principais cidades na iminência de 'cair', resta reagrupar, reinventar com o que há à mão e preparar a linha que se espera ser forte o suficiente para repelir os militares invasores e retomar a libertações dos territórios ocupados há quase um ano.
AFE // JH
Lusa/Fim
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