1. Em 2017, é possível 18 homens votarem contra todas as mulheres. Possível por serem deputados num Congresso onde máfia e igrejas se fundem, e as mulheres são raras. Assim se acharam 18 homens frente a uma mulher numa Comissão Parlamentar decisiva para as mulheres. E os 18 votaram em bloco para mudar a Constituição, decretando “a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção”. O que implica o aborto ser crime em todas as circunstâncias:

a) mesmo que a mulher tenha sido violada;

b) mesmo que a mulher corra risco de vida;

c) mesmo que o feto não tenha cérebro (zero chance de sobrevivência).

Aconteceu em Brasília este mês: é a Proposta de Emenda Constitucional 181 (PEC 181). Após a aprovação esmagadora em comissão, segue-se votação em plenário de Deputados, depois no Senado, e enfim o Presidente. Mas quer avance, quer não, aqueles 18 homens já empurraram o país mais para o fundo, e para trás.

2. O Brasil é uma democracia com números de aborto dramáticos. A interrupção da gravidez só pode ser feita nas excepções a), b) e c), enunciadas acima. No ano passado, essas excepções justificaram 1.681 abortos legais. Enquanto isso o cálculo de abortos clandestinos varia entre meio milhão e um milhão. Ou seja, a cada ano várias centenas de milhares de mulheres correm risco de morte, danos à saúde ou prisão, no Brasil. E as que correm mais riscos estão em esmagadora maioria, porque serão as que não têm como pagar as melhores clínicas (de entre as muitas que vivem desse negócio paralelo), ou abortar fora do Brasil, por exemplo em Lisboa. Aquelas que há muito são o primeiro alvo de abuso e descaso: pobres, não-brancas.

Os riscos estão longe de ser baixos. No fim do dia em que este texto for lido, quatro brasileiras terão morrido por causa de um aborto. Quatro mortes todos os dias. E, por ano, mais de 250 mil internamentos em consequência de abortos clandestinos. Um problema de saúde pública alarmante em qualquer democracia onde uma minoria misógina, racista e homofóbica não manipule uma imensa maioria.

O aborto no Brasil é, assim, um espelho do escândalo progressivo que é o Brasil. Da hipocrisia geral de uma sociedade em que todos conhecem quem tenha abortado. De como um punhado de homens brancos, plantados no Congresso por várias espécies de cofres, da corrupção ao dízimo, tem poder sobre tantos milhões de pessoas. E poder para acabar com tudo o que (ainda) faz do Brasil um milagre diário.

3. Antes de irmos à história desta PEC, mais um dado: 49.897. É o número de brasileiras violadas em 2016, acaba de ser divulgado no Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Representa um aumento: mais 2.436 do que no ano anterior. Corresponde a quase seis brasileiras violadas a cada hora. E o Anuário estima que apenas 35% dos casos chegam às delegacias.

Sim, aprovar uma emenda constitucional em que o aborto passa a ser crime mesmo em caso de violação significa o Estado dizer a muitos milhares de mulheres por ano que ele, Estado, teoricamente zelador da segurança delas, acha que elas ainda devem ser obrigadas a ter o filho do violador, caso engravidem. Tal como devem morrer para dar à luz, ou dar à luz um morto.

Significa, em suma, dizer o que o Estado há muito diz: que as mulheres valem o que convier aos homens, que são os homens que estabelecem esse valor, e portanto podem decidir que a vida, a saúde, o bem-estar de uma mulher vale menos do que uma célula. Não um feto, nem sequer ainda um embrião, mas a célula que resulta da fusão de um espermatozóide com um óvulo. Na cabeça dos fundamentalistas cristãos que estão a acabar com o Brasil, essa célula é um ser cheio de direitos invioláveis. Já a mulher será o que se sabe desde que enganou Deus/Adão, e por aí foi, sempre demasiado nua, mesmo a pedir para ser violada, em dívida desde o Éden.

4. Criada em 2015, esta PEC 181 era uma coisa boa na origem: tinha como objectivo ampliar a licença de maternidade de 120 para 240 dias, no caso de prematuros. Só que entretanto o Supremo Tribunal Federal considerou que aborto até ao terceiro mês de gestação não é crime. Um sinal de avanço legal que o actual quadro político, dominado por usurpadores/abusadores, tinha de travar.

O facto é que, mal a decisão do STF foi tomada, o líder da Câmara de Deputados — actualmente investigado por corrupção — criou uma comissão parlamentar para analisar a PEC. E o facto é que os 18 machos que formaram a Comissão conseguiram meter a martelo, num texto que nada tinha a ver com aborto, o tal direito inviolável “à vida” da célula e a “dignidade da pessoa humana desde a concepção”. Por isso esta PEC começou a ser chamada PEC Cavalo de Tróia. Um “presente” envenenado às mulheres: enxertar veneno para todas no que originalmente era um benefício para algumas.

E porque é que as mulheres, aliás, o Brasil, já perderam, mesmo que ainda falte a votação em plenário, Senado e Presidente? Porque, se houver veto, o que era para ser um benefício não acontecerá, ou será adiado. E, se não houver veto, é a criminalização brutal de mulheres já sujeitas a um sofrimento horrível, quer tenham sido violadas, corram risco de vida ou o feto seja anencéfalo.

O gangue dos 18 conseguiu lixar um pouco mais a vida às mulheres, de qualquer forma. Se não houver veto, o retrocesso é mesmo até antes de 1940, ano em que o Código Penal passou a permitir aborto em caso de violação e risco de vida para mulher (muito mais recente, de 2102, é a excepção da anencefalia).

5. Em nome da “governabilidade”, os governos Lula-Dilma contribuíram para o fortalecimento das bancadas parlamentares ligadas ao agronegócio, às neo-igrejas. Alianças e silêncios que se pagam até hoje. Cobri a campanha de sucessão entre Lula e Dilma, e não esqueço o choque de ver Dilma, uma ex-guerrilheira, uma mulher dita de esquerda, vergar-se à demagogia dos anti-abortistas, ou que usavam o aborto, o pecado, o castigo, para manipular votos. Para ganhar votos, ou com medo de os perder, Dilma não fez do aborto uma causa e hoje vemos quem a tirou do poder extrair frutos de um poder ganho também por causa dessas alianças, desses silêncios. A ponto de lançar o Brasil para quase cem anos atrás.

6. As agências da ONU criticaram a aprovação da PEC pelos 18 capangas dizendo que ela pode “constituir tortura e/ou tratamento cruel, desumano ou degradante”; que distancia o Brasil dos compromissos internacionais no campo dos direitos humanos, incluindo os direitos das mulheres, a igualdade de género, população e desenvolvimento; ficando o Estado “com a decisão final e exclusiva sobre a vida e o bem-estar das mulheres e meninas, penalizando duplamente vítimas de violência sexual ou que estejam em situação de risco ou vulnerabilidade”.

7. Nada disso é cristão, aliás não há muito de cristão entre os fundamentalistas cristãos. E faz falta que os cristãos se distanciem disso, como escreveu há dias a cronista brasileira Eliane Brum: “É surpreendente esse silêncio especialmente com relação a denominações evangélicas sérias, com atuação consistente, que têm presenciado o nome dos evangélicos ser enxovalhado no Congresso. Até agora as reações são tímidas demais diante do que tem sido feito em seu nome.”

Um dos grandes desafios do Brasil, hoje, passará por essa não-bíblica separação das águas, antes que todo o país esteja refém do dízimo, do medo e da fome. Racistas, misóginos, homofóbicos, reprimidos ou apenas deprimidos, eles estão lá sempre, mas quando vêem no poder uma autorização, quando o poder os propaga, e quando isso é potenciado pelas redes sociais, o futuro avança para trás e para o fundo cada vez mais depressa, absurdo, incendiário, violento.

8. Mas o Brasil de hoje também já não é o Brasil em que Dilma foi eleita no que respeita à resistência das mulheres. Muitas brasileiras, do morro como do asfalto, estão juntas na rua, nas redes, e essa luta é irreversível. Hoje vi um cartaz da activista negra estado-unidense Angela Davis no mural de uma das minhas amigas brasileiras: numa sociedade racista não basta não ser racista, há que ser antiracista. Numa sociedade machista também não basta não ser machista.