Os grandes acontecimentos, catástrofes, celebrações, emoções, nascimentos e mortes não coincidem com as datas de um calendário institucionalizado pelo Papa Gregório XIII em 1582, juntando cálculos de várias origens.

Assim, pode dizer-se que o século XIX começou em 1789 (Revolução Francesa), o século XX em 1914 (I Guerra Mundial) e o XXI em 2001 (ataque às Torres Gémeas). Ou pode escolher-se outras datas como referência, nenhuma delas coincidentes com o dia um de Janeiro de um novo século.

Na mesma lógica, os anos também não coincidem com o primeiro dia do ano. Muitos acontecimentos são o resultado de uma gestação de vários anos, e consequência de outros acontecimentos às vezes muito anteriores. No entanto, podemos inserir o acontecimento numa data simbólica de início ou fim, dentro dum determinado ano.
2024, por exemplo.

Sem dúvida que foi o ano em que a maioria de nós se percebeu que decorre um período de transição da ordem global que começou em 1945 (com o fim da II Guerra Mundial) e terminou em 2019 (pandemia do COVID 19) ou 2022 (invasão da Ucrânia). Ou seja, estamos no começo da transição em direcção a … sabe Deus ..., diz aqui o ateu.

Para começar, foi o ano mais quente desde que existem registos (1850 - o começo da era industrial) e em que os desastres naturais, inundações, ciclones, sismos, e incêndios aumentaram notavelmente. Também se tornou evidente que não vamos conseguir controlar o aquecimento global (a COP29, foi mais um falhanço).

Em termos de falta de paz e sossego, este ano tivemos e ainda temos 120 conflitos militares envolvendo 60 países e outros 120 envolvendo grupos armados. A maioria são de carácter interno, número que triplicou desde o começo do século.

Aqueles que toda a gente conhece são a invasão da Crimeia pela Federação Russa, a guerra de Israel contra todos os vizinhos, as guerras civis por todo o SAHEL e arredores - para mencionar apenas três. Se quiserem uma lista dos outros 117, podem procurar na Internet, boa sorte!

Depois há as revoluções e golpes de Estado, em vários países com Mianmar, Nigéria, Sudão, Camarões, Colômbia - não se consegue contar todas. A mais inesperada foi a recente queda da dinastia Assad na Síria, onde se impunha há 50 anos, com um saldo de centenas de milhares de mortos.

Em termos de requintes de malvadez, acrescentem-se as eleições aldrabadas que provocam caos e acumulam cadáveres. Assim de repente lembremo-nos da Venezuela, Moçambique e México.

Por falar em eleições, 2024 registou 80 atos eleitorais, o maior número de eleições de que há memória. O termo “eleição” é bastante elástico, pois vai daquelas em que o partido no poder ganha garantidamente (Rússia), àquelas outras em que se não ganhar, parte para a repressão (Venezuela) e ainda as democráticas, em que o partido no poder perde e passa para a oposição.

Nestes últimos casos, com eleições minimamente corretas, a tónica geral foi de viragem à direita. Os eleitores estão desiludidos e descontentes com as governações mornas e procuram soluções mais musculadas, virando-se para os extremos.

Não surpreende que mais de quatro em cada dez cidadãos do mundo não confiem nos seus governos nacionais – patamar de confiança que há mais de uma década piora a cada ano que passa. Este fastio foi o que gerou, precisamente, o único caso de volta para a esquerda, no Reino Unido. Depois de anos de disparates e quatro primeiros ministros conservadores, o Partido Trabalhista ganhou as eleições com uma margem histórica de dez pontos, embora tenha um líder que também não entusiasma muito.

Na Roménia, o Tribunal Constitucional cancelou a primeira volta das eleições presidenciais, devido à descoberta de documentos que confirmavam a influência de uma massiva campanha cibernética russa.

Em França, nas eleições para o Parlamento Europeu, o grupo parlamentar centrista que sustem Emmanuel Macron perdeu para a extrema direita, o que levou o Presidente a dissolver a Assembleia Nacional, eleita em 2022, e convocar novas eleições. A esquerda conseguiu montar à pressa uma frente ampla, a Nova Frente Popular, que conquistou 182 cadeiras (31,5% ) na segunda volta das eleições - três milhões de votos a mais que o Rassemblement Nacional de Le Pen). A primeira escolha de Macron, Michel Barnier, não durou um mês, e não se sabe o que acontecerá ao seguinte e atual, François Bayrou.

A Bulgária já enfrentou seis votações antecipadas por causa de coligações governos instáveis, uma média de duas eleições por ano – fora as regulares que elegeram um novo Parlamento em abril de 2021. Em 2024, a coligação que unia duas forças opostas (Cidadãos para o Desenvolvimento Europeu da Bulgária/ União de Forças Democráticas, conservadora, e Nós Continuamos a Mudança/ Bulgária Democrática, mais liberal), desfez-se depois da parte conservadora rejeitar um novo gabinete. O acordo de cavalheiros era que os primeiros nove meses seriam liderados pela ala liberal (e vice-liderados por conservadores). Em seguida, os conservadores escolheriam o primeiro-ministro, e os liberais o vice primeiro-ministro, e assim se seguiria até o fim do mandato proposto. O resultado desta trapalhada é que os eleitores se desinteressaram e só 34% é que votaram nas eleições de Junho, o que produziu outro Parlamento fragmentado, com a coligação conservadora Cidadãos para o Desenvolvimento Europeu da Bulgária/ União de Forças Democráticas a obter 68 assentos de um total de 240. Depois do fracasso desta terceira tentativa, o Presidente Rubem Radev convocou novas eleições para outubro.

Não vamos aqui falar dos pormenores de todas as eleições, porque não há leitor que aguente tanta confusão, intriga e má fé. Mas escolhemos mais três casos que dão uma ideia do mal-estar geral que o sistema democrático está a gerar. O problema, como sabemos, é que ainda não se inventou um sistema melhor.

Primeiro, os Estados Unidos e a vitória de Trump - por uma pequena margem, ao contrário do que parece. Tudo indica que vamos ter um tipo de governação a que o analista Timothy Snyder chama de Mump - M de Musk e ump de Trump. Elon Musk podia arrebatar facilmente o título de Reacionário do Ano. Além de dirigir um novo departamento inventado para ele, que não faz parte da estrutura do governo, ainda se permite mandar um milhão de euros para Nigel Farrage, o infame líder da extrema-direita inglesa, e de postar na sua plataforma X que “só a AfD (extrema direita) pode salvar a Alemanha”.

Provavelmente Trump não irá permitir que outrem tome o seu lugar de “melhor Presidente da História” - mas antecipa-se que Musk, o homem mais rico do mundo, tenha tomado o gosto pela política e vá andar pelo mundo inteiro a apoiar todos os deploráveis.

O que interessa é que os Estados Unidos deram um viragem à direita que ameaça a sua tão cantada (e sobrevalorizada) democracia, alem de ter efeitos telúricos em muitas situações mundiais.

Saindo do mundo ocidental, temos, a título de exemplo, o Senegal, uma das democracias mais estáveis da África Ocidental, onde uma série de atropelos marcou o calendário eleitoral. As eleições foram adiadas, mas acabaram por ser antecipadas. O então presidente senegalês, Macky Sall, tentou adiar a votação por dez meses temendo que o seu sucessor não fosse eleito. Sall – no poder desde 2012, com dois mandatos consecutivos pelo partido da Aliança da República, que é a cabeça da coligação União na Esperança – reduziu significativamente os direitos políticos e civis da população senegalesa, numa deriva autoritária à moda antiga. Homicídios de manifestantes, detenções de opositores e restrições severas à liberdade de expressão marcaram os seus mandatos. Dois candidatos presidenciais foram presos por difamação ou desacato à autoridade. Vendo-se isolado e impopular, além de pressionado pela Corte de Cassação (mais alto tribunal do país), Sall voltou atrás e a votação presidencial para final de Março. Ganhou o candidato da oposição Bassirou Diomaye Faye, do partido Patriotas Africanos do Senegal pelo Trabalho, Ética e Fraternidade (Pastef), que foi preso em abril de 2023 por causa de uma publicação no Facebook em que criticava a falta de independência do poder judicial, tendo sido solto dez dias antes da eleição em 2024. Não bastasse a trama toda, o Pastef também foi banido em julho de 2023, sob acusação de incitar a movimentos insurrecionais – outro facto inédito na história do Senegal, que nunca baniu outro partido político desde a sua independência. Três dias após a eleição de Faye, o partido voltou à legalidade. Faye dissolveu a Assembleia Nacional, dominada pela oposição União na Esperança (que detinha cerca de 50% dos assentos) e convocou eleições para novembro. O Pastef angariou quase 79% dos assentos, dando-lhe assim uma confortável maioria para governar.

Passemos para a Ásia. A Coreia do Sul já andava fraturada politicamente pelo descompasso entre uma presidência conservadora de Yoon Suk Yeol, do Partido do Poder Popular (PPP), que assumiu em 2022, e uma maioria liberal no parlamento, puxada pelo Partido Democrático (DPK), que alcançou sozinho 180 assentos em 2020, mais do que os 151 necessários para a maioria. Não bastasse isso, Yoon era um outsider, eleito sem qualquer experiência prévia; vinha do cargo equivalente a Procurador-Geral da República, onde foi crucial para a prisão de dois ex-presidentes e conduziu investigações a grandes empresários. Foi eleito por inacreditáveis 0,73 pontos percentuais a mais do que seu oponente, do DPK, ou seja, menos de 248 mil votos de diferença. As eleições deste ano vieram engrossar o descontentamento e fratura interna do país. Chegaram num momento político de escândalos, tanto do lado do PPP quanto do DPK. Como gota d’água, a oposição usou um discurso do presidente Yoon sobre o preço de cebolinhas, que se transformaram em símbolo de revolta. Para ilustrar a luta do governo para reduzir o preço dos alimentos, o presidente tinha visitado uma horta e mostrado como estariam baixos os preços do molho de cebolinha. Críticos do governo apontaram o descolamento com a realidade sul-coreana, já que os preços reais do maço da hortaliça são muito maiores. O meme das cebolinhas tornou-se um símbolo de indignação que passou a desfilar em manifestações. A repercussão foi tamanha que a Comissão Nacional Eleitoral proibiu os cidadãos de levarem cebolinhas aos locais de votação em abril por temor de “interferência eleitoral”.

Após as novas eleições legislativas, o DPK conseguiu, novamente, maioria – muito embora tenha perdido assentos – e o PPP ficou em segundo lugar. Desde então, uma série de escândalos envolvendo a primeira-dama do país, Kim Keon-hee, culminaram com um inesperado decreto de Yeol, no princípio deste mês, a impor a lei marcial. Acusada de corrupção e influência indevida no governo, Kim foi alvo de três projetos de lei da oposição para o estabelecimento de uma investigação especial. Os três foram vetados pelo seu marido. Entretanto surgiu um documentário “Primeira Dama” no país, em que Keon-hee diz que não acha que “Suk Yeol não é realmente o presidente. Aquele parvalhão é só uma marionete”. Segundo críticos do governo, o presidente decretou lei marcial para barrar as investigações contra a sua esposa. A justificação oficial foi um clima de tensão aumentado por mudanças na postura das forças sul-coreanas, com ameaças à segurança nacional e possíveis laços com a Coreia do Norte.

O impeachment presidencial veio coroar a novela, a 14 de dezembro. Seguiu-se a reversão da lei marcial, apenas algumas horas depois de seu anúncio, e a ondas intensas de protestos contra o presidente e reivindicações da oposição pela renúncia presidencial. Não bastasse isso tudo, o partido do presidente ainda tentou boicotar o processo legislativo, que o levaria ao impeachment na semana anterior. Quase todos os congressistas do PPP deixaram a Câmara de votação antes do voto pelo impeachment e assim não houve quórum suficiente para aprovar o pedido. Antes da nova votação, o líder do PPP autorizou a participação dos membros do partido no rito e doze deles foram favoráveis à moção de impeachment. Eram exigidos 200 votos para o procedimento (ou dois terços do total dos congressistas) e foram conquistados 204.

Não estão fartos de ler estas novelas baratas da política? Podia continua com mais algumas, como o que está a acontecer na Alemanha e aconteceu na Áustria, mas acho que a paciência tem limites.

O melhor é ficarmos por aqui e ver uns filmes em streaming - românticos, de ficção científica, de terror. Tudo menos política. Para a semana faço um prognóstico de 2025, já estou a avisar!