Para começar, levanta-se a questão do que quer dizer, realmente, democracia. E, para acabar, é interessante avaliar como o conceito evoluiu e quantos países cabem hoje dentro dessa classificação. Ou, pondo as coisas doutra maneira, a democracia é uma forma estável e definitiva de governação, ou apenas um “chavão” que está cada vez mais longe de se tornar universal?
Depois da expressão “democracia liberal” se ter tornado uma espécie de panaceia universal (o que foi acontecendo ao longo do século XX), a grande maioria dos regimes políticos faz tudo o que pode para serem considerados democracias. No entanto, um estudo actual, feito pela “Intelligence Unit” da revista “The Economist”, considera que 37,1% dos regimes são autoritários, 17,2% “híbridos”, 39% “democracias defeituosas”, e apenas 6,4% democracias completas.
Esta classificação, como todas as classificações, é arbitrária e talvez exigente demais, mas, mesmo considerando, as classificações “defeituosas” e “completas” juntas, não temos mais do que 45,4 regimes realmente democráticos — isto é, em que os órgãos dirigentes são escolhidos pelo povo, directa ou indirectamente, e existe liberdade de expressão e auto-regulação. É muito pouco, para uma ideia considerada tão boa — “A pior que existe, com excepção de todas as outras”, na famigerada definição de Churchil que se tornou um lugar-comum sempre que se fala da democracia.
Uma prova de que o conceito de democracia não é tão científico como se poderia supor — depende dos índices escolhidos, como “liberdade de expressão”, ou “percentagem de eleitores”, entre muitos outros — é que uma organização tão independente como o Pew Research Center, do Fórum Económico Mundial, afirma que há mais democracias plenas em 2016 do que havia em 1976. Este índice considera que na última data, tanto a Federação Russa como a Turquia e o Egipto são do modelo “misto”, o que obviamente não é verdade.
Aliás, se a Federação Russa não pode ser considerada uma democracia — nem sequer tem um mecanismo constitucional de sucessão — a Turquia e o Egipto são dois exemplos de outro tipo de desvio, a que podemos chamar de “falsa democracia” e onde podemos incluir a Hungria e a Venezuela, por exemplo. Nestes casos, há constituições democráticas e até eleições, mas os condicionamentos e até mesmo as ilegalidades encapotadas e descaradas fazem com que o regime no poder seja inamovível.
Outros casos duvidosos são aqueles países em que a democracia existe mas está em sério perigo de ser menos democrática. Veja-se o discurso do Presidente Biden, ainda esta semana: “A própria democracia está em disputa na próxima eleição (intercalar de Novembro) Nada está garantido na democracia americana. Todas as gerações têm de a defender, proteger e optar por ela. Porque a democracia é isso: uma escolha.” Que o presidente tenha de fazer uma afirmação destas, é um péssimo sinal. Aliás, nos últimos anos o mundo descobriu que afinal de contas a famosa democracia norte-americana, a primeira consagrada numa Constituição (1788) está repleta de falhas, omissões e nebulosidades. O próprio sistema, que consagra eleições indirectas através de colégios eleitorais, é perigoso; até à data há minorias prejudicadas no direito ao voto; e o sistema bi-cameral não é verdadeiramente representativo do peso dos Estados.
O caso dos Estados Unidos, ameaçado pelo extremismo do Partido Republicano, que até nega a validade de eleições transparentes, traz à pedra outro problema: a subida exponencial dos partidos radicais, cujos programas ameaçam várias vertentes do sistema democrático. É o que se verifica em França, e o que acaba de se ver nas eleições em Itália. É também o que está a acontecer naquela que é considerada a mais antiga democracia ocidental, no Reino Unido, onde os dois últimos primeiros-ministros foram escolhidos por uma ínfima minoria dos seus próprios partidos. Há também os casos, generalizados, em que um partido usa legalmente o sistema para se manter no poder por um tempo demasiado longo, canibalizando a saudável alternância, como é o caso de Portugal.
O caso briãnico levanta ainda outra questão: o domínio de uma classe previlegiada sobre o sistema. Essa classe, educada à partida para governar, acaba por excluir os mais desafortunados da possibilidade de escolher iqualitáriamente os seus representantes. E um outro senão, concomitante, é o domínio do poder económico sobre o poder político. Os grandes detentores do capital, os “mercados financeiros” e outras entidades ou pessoas com grande poder económico têm mais possibilidades de escolher os eleitos, ou de ser eleitos, que os cidadãos comuns.
Esta é talvez a questão mais perversa do sistema: sem igualdade económica é difícil haver igualdade política.
A solução “marxista” (para reduzir diversas variantes numa palavra) também já se provou que não funciona, uma vez que o poder popular — ou seja, de cidadãos todos economicamente próximos — leva à criação de uma classe dominante, a chamada “nomenklatura” que se coopta e se instala no poder, sem que os cidadãos tenham outra opção. E o capitalismo, sempre associado aos males da desigualdade, não desaparece, porque não é possível uma economia sem capital; apenas passa dos grupos privados para o aparelho de Estado, que não é um patrão menos predador.
Há um estudo muito interessante do filósofo japonês Kõkin Karatani, “Isonomia e as origens da filosofia”, que, entre outros assuntos, trata da possibilidade de uma verdadeira democracia e dá vários exemplos históricos. Atenas, como sabemos, não é um deles. Nessa primeira democracia, a mãe de todas as outras, segundo a percepção comum, só participavam os cidadãos adultos, com excepção dos escravos, dos servos e das mulheres. Katani considera que a dimensão da sociedade é um elemento essencial para uma democracia plena. Ou seja, em algumas cidades-estado do Renascimento, como Veneza, ou Amesterdão no século XVII, ou na Ionia grega, era possível uma igualdade democrática. O pequeno território impedia que a posse da terra fosse um factor de poder, logo excluía uma classe terratenente hereditária; o comércio era a norma e havia uma igualdade entre os comerciantes independentes. Mesmo assim, havia sempre famílias dominantes, só que esse domínio não era tão forte que as obrigasse a desrespeitar a vontade comum. Embora as práticas democráticas variem entre estas entidades — no caso de Veneza, limitadas por uma oligarquia, no caso da Holanda, complicadas por surtos de conflitos religiosos - ainda assim o clima geral era bastante igualitário. Katani faz ainda uma afirmação interessante: o grande benefício da política não é mobilizar todos os que pensam da mesma maneira; é permitir que pessoas com ideias diferentes consigam viver em harmonia.
Somando tudo isto, e muito mais que se poderia dizer (a política é uma questão sempre em aberto e não existe o “fim da História”), chegamos à conclusão de que a Democracia é mais um ideal do que uma prática e que a sua prática não lhe garante permanência.
Há épocas em que parece que a democracia está a crescer e a aperfeiçoar-se; há outras em que temos a desagradável percepção de que está a encolher e ser subvertida por desvios perigos. Vivemos num destes momentos. O único consolo é que a História não é linear, antes circular. E a única esperança é que ainda apanhemos a próxima volta do círculo.
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