1. Fogo-de-artifício
Não fosse pouco dado a conspirações, julgaria que a produção da RTP decidira pregar uma partida ao Salvador Sobral. Pois não foi ele que, no ano passado, criticou os famosos “fireworks” que não são a verdadeira música? Não é que o festival deste ano tinha mesmo fogo-de-artifício, a sério, no palco? Enfim, foi uma partida, mas compensaram-no: deram-lhe o Caetano Veloso — e valeu muito a pena ouvir o dueto e ver como Caetano parecia nervoso por estar ali, ele que é provavelmente o melhor cantor que já passou pelo palco da Eurovisão. (Melhor do que ver Caetano contente por estar na Eurovisão só mesmo assustar-nos com Salvador Sobral a bater sem piedade no piano de Júlio Resende.) Enfim: um festival da Eurovisão com aquele intervalo dá a sensação de que, no mesmo palco, cabem universos paralelos.
2. Kitsch
Se a Eurovisão não servisse para mais nada, serviria para definir essa estranha palavra com demasiadas consoantes. O Festival da Eurovisão é para lá de excessivo, é um berro, um grito — e de tão excessivo que é, põe-nos com o pé a pedir dança e com um certo riso irónico, mas duma ironia voltada para nós próprios, que nos faz muito bem — desde que tomada em doses pequenas, ali uma vez por ano, por alturas de Maio. (Ah, e não é irónico ver como os comentadores da RTP, nas conversas de encher chouriços depois do acto, nem sequer sabiam bem em que lugar ficara Portugal? Ou melhor, sabiam, mas não diziam. Isso agora não interessa nada).
3. Tolerância
Como a The Economist defende neste artigo (que recomendo), a Eurovisão é uma pequena demonstração da tolerância — e, sim, o preciso facto de haver roupas absurdas, músicas irritantes e absurdos a monte sem que ninguém se lembre de propor uma qualquer proibição é o sabor exacto dessa tolerância, que está longe de ser fácil ou tão óbvia como nos parece numa Europa habituada a isto. Para lá dessa tolerância estética (que fica bem demonstrada num cantor como Salvador a ter de entregar o prémio à Netta — nem sempre a tolerância é voluntária), há também a outra tolerância, aquela que fica a ganhar quando uma televisão russa tem de transmitir a canção irlandesa sem pestanejar (a China pestanejou e ficou sem Eurovisão…).
4. Memória
Ontem, antes do espectáculo, pus-me a ver alguns vídeos antigos no YouTube. Descobri que há mais Eurovisão na minha memória do que pensava. Por exemplo, não fazia ideia que esta música tinha vindo da Eurovisão:
Também descobri a canção que deu a primeira vitória ao Reino Unido e que já ouvi tantas vezes sem saber como:
A nossa memória é um bicho de muitas cabeças — ainda faltava muito tempo para eu nascer e, no entanto, estas canções sabem-me a memórias de infância. (Confesso: também ouvi Congratulations de Cliff Richards, mas só me veio à cabeça imagens de uma partida de bingo num cruzeiro).
5. Europa
Fiquei ontem a saber que o Reino Unido é o campeão do segundo lugar, com 15 (!) festivais nessa desagradável posição, para lá das suas cinco vitórias — seja como for, vê-los, aos britânicos, enterrados até ao pescoço na Eurovisão, um programa que vêem a gozar, mostra que são tão europeus como nós, pois não gostam, mas estão lá sempre batidos.
Quanto ao ver a Eurovisão meio a brincar, não são os únicos: é verdade que os nossos comentadores tendem a levar-se muito a sério, mas quase ninguém vê aquilo como um concurso de música. É antes uma maneira de rir de nós próprios, uma maneira de viver um campeonato europeu numa só noite, com pontos e bandeiras, uma maneira, no fundo, de rir deste continente que já deu a vitória a uma canadiana a representar a Suíça, convidou a Austrália porque sim, votou em Conchita Wurtz, passou de Salvador Sobral a uma Netta armada em galinha — um continente que, no fundo, inventou um festival cheio de gente engravatada e músicas sérias e acabou a ouvir isto:
Como é possível não gostar desta Europa? Preferiam o quê? Um continente bem-comportado? Venham antes galinhas e salvadores no mesmo palco — por algum motivo a música da Eurovisão é confundida por tantos com o Hino da Europa…
E, agora, vou dormir. Fim de emissão.
Marco Neves | Tradutor e professor. Autor do livro A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa. Escreve no blogue Certas Palavras.
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