1. Esta semana, o mundo pareceu levantar-se mais do que nunca contra a barbárie em Gaza. Ainda bem, porque há décadas que a barbárie dura, e não apenas em Gaza. Os 60 palestinianos desarmados, incluindo crianças e bebés, que acabam de ser mortos pelo exército israelita juntam-se aos muitos milhares de mortos nas últimas décadas.

Porque é que isto acontece há décadas, e porque é que há décadas vários milhões — milhões — de palestinianos estão enclausurados em circunstâncias sem paralelo no planeta? Um dos motivos, decisivo, e aquele que nos diz respeito a todos, é: porque o mundo deixa. Estados Unidos da América à cabeça, e por aí fora, ONU, União Europeia, ONGs; empresas e outros interesses financeiros; quem há décadas ataca qualquer crítica a Israel como anti-semita; quem não se manifesta mas faz turismo em Israel, ou vai com guias de Israel a territórios palestinianos, ou compra produtos de Israel, ou fortalece o orçamento de Israel que depois financia os colonatos, a ocupação, o exército, a morte; o mundo que em geral não tem tempo ou cabeça, e não cobra dos políticos a perpetuação da barbárie.

Mas, década a década, o que esta barbárie revela é uma derrocada humana. Como do maior horror conhecido — o Holocausto — os humanos retiram horror. Como a herança humana da aniquilação é aniquilar. Como o país nascido do Holocausto, para que o Holocausto nunca mais se repetisse, se transformou num carrasco, com boa parte do mundo ajoelhado a seus pés.

Que, ao fim de décadas, o estado das coisas seja o que esta semana chocou o mundo significa três coisas: a força palestiniana, o suicídio de Israel e a tragédia de todos nós, humanos.

2. Acompanhei como repórter Israel/Palestina ao longo de 15 anos, de 2002 a 2017. Fui vendo as deslocações do “mainstream” da opinião pública, tanto quanto é possível avaliá-lo. Há 15 anos, defender sanções e boicote a Israel era uma ideia radical. Hoje, é cada vez mais frequente. Há 15 anos muito mais gente falava em conflito, e com simetria. Hoje, muito mais gente fala em ocupação, e na assimetria. Até porque os números tornaram cada vez mais flagrante a brutalidade dessa assimetria. Só desde o início deste milénio foram mortos 9600 palestinianos (2177 dos quais, crianças) e 1251 israelitas (134 dos quais, crianças). Isto significa 88 por cento de mortes palestinianas. Nem conflito nem simétrico, uma ocupação bárbara. E nestes números não estão todas as outras barbaridades do que é a vida sob ocupação.

Também não estão os mortos do último mês, nomeadamente os da última semana, exclusivamente palestinianos. Os mais cegos em Israel declararam vitória porque Israel não teve baixas e o inimigo foi contido no seu território, leia-se, na sua prisão. Os menos cegos em Israel sabem que o contrário é verdade: esta semana, Israel perdeu a guerra. Vencê-la, do ponto de vista dos defensores do estado de Israel, seria evitar que o Hamas pudesse chorar baixas, mostrar mortos. Mas o exército mais exercitado do mundo simplesmente não achou melhor forma de lidar com manifestantes desarmados (no máximo, empunhando pedras) do que matá-los em série, com “snipers”. Qualquer crente no que foi a utopia de Israel sabe que isto é o fundo do fundo. Derrota ética e política.

Neste Maio de 2018, em plena celebração do seu 70º aniversário, Israel perdeu a guerra. Perdeu-a ao mesmo tempo que abria a embaixada dos EUA em Jerusalém, tão ufanamente antecipada por Trump e Netanyahu, o que só acentuou a obscenidade da matança. E perdeu-a aos olhos do mundo, não os habituais críticos do comportamento de Israel, mas o “mainstream”. Esta semana, os homicídios foram também um suicídio. Israel: de vitória em vitória até à derrota final.

3. Avaliar o “mainstream” será sempre impressivo, impreciso. Mas é possível ir coleccionando sinais. Nos últimos dias fui vendo vários sinais desses, gente que nunca se manifestara, grupos de gente, tipos de gente. E a habitual violência dos que logo gritam “anti-semita!” mais calada, porque menos à vontade. Comecei a ser insultada como anti-semita em 2002, mal me estreei a escrever do terreno. Quem assim grita nunca conhece bem os dois lados do terreno. A grande maioria das vezes não conhece qualquer dos lados, mas grita na mesma. Não sei de um único caso — um único — em que alguém conheça de facto Israel e Palestina e desvalorize a violência da ocupação. Só quem não a conhece faz isso. E Israel jogou sempre muito bem com isso, não apenas dificultando muito a vida de quem quer ir a Gaza (impossível a um viajante comum) como proibindo os seus cidadãos de entrarem nas cidades palestinianas, ao mesmo tempo que estimula e sustenta centenas de milhares de colonos em Jerusalém Leste e Cisjordânia. Se muitos israelitas hoje pudessem viver um pouco da ocupação — além da sua experiência de soldados — acredito que seriam mais do que umas centenas, ou escassos milhares nos protestos internos. Há uma profusão de grupos israelitas que lutam bravamente contra a ocupação, e pagam as consequências disso, mas representam uma pequena maioria. E isso é parte da tragédia, do descalabro da ideia de Israel.

Mas há, creio, uma parte silenciosa da população que pode ser conquistada — mais que não seja por pragmatismo, porque quer uma vida normal — para um “mainstream” mais lutador, mais perto do boicote, das sanções, de gestos que confrontem o governo.

Quando uma estrela como Natalie Portman, judia nascida em Jerusalém, recusa receber um prémio de um milhão de dólares das mãos de Netanyahu, isso será um sinal de que o “mainstream” se deslocou para mais perto do boicote, e pode deslocar mais. Portman falou deste governo, de Netanyahu, não foi mais longe, mais atrás, e há muitas razões para ir mais longe e mais atrás, mas o “mainstream” é lento (veja-se como a vitória de Israel na Eurovisão não incomodou muitíssimo mais gente, quando o aproveitamento político foi tão claro). Então, celebremos quando parece deslocar-se um pouco, aproveitando para o deslocar mais. Estratégia de longo curso, porque se esta guerra está perdida para Israel, não está ganha para os palestinianos.

4. Tendo Israel perdido a guerra — no sentido em que não a vai vencer, não vai recuperar o que perdeu aos olhos do mundo, além de não ter qualquer plano para sair deste status quo —, o certo é que nos tempos mais próximos os israelitas continuarão a acordar em liberdade, com vidas tão boas quanto permita o capitalismo consumista que hoje os domina, com o seu lastro de desigualdades, para além da esquizofrenia na base do estado: querer ser judaico, e democrático.

Se Israel acaba de ser derrotado por si mesmo na fronteira de Gaza, a utopia da fundação de Israel foi derrotada há muito. Aquela gente que ia fazer florir o deserto, aquela solidariedade de kibbutzim, essa Israel não existe. Hoje, Israel é uma sociedade cheia de conflitos, ultra-ortodoxos/laicos, judeus orientais/judeus europeus, veteranos/novos imigrantes, moradores de Israel/colonos dos territórios, tudo isto comandado por uma direita corrupta, com a esquerda reduzida a uns tufos, e grandes bolsas da população tentando simplesmente não ver, não pensar, porque o que está à vista é um beco sem saída. E, na base da pirâmide, os judeus negros, os beduínos, os “árabes israelitas”, que são um quinto da população. Convulsão por dentro e a toda a volta.

Mas entretanto, e a cada manhã, ainda assim, Israel tem água, luz, comida, trabalho, saúde, educação, viaja pelo mundo. Milhões de palestinianos, a cada manhã, não têm nada disso, há décadas. Dois milhões de pessoas estão simplesmente a enlouquecer trancadas em Gaza, com três horas de electricidade por dia. Sim, 60 mortos em horas é obsceno. Mas a obscenidade é diária, abrange milhões.

Tudo isto é a conta de Israel, não pára de aumentar. E com a deslocação do “mainstream” há o risco de vozes realmente anti-semitas se sentirem mais à vontade. Sempre que aqui escrevi sobre Israel e Palestina, pelo meio da enxurrada de quem me insultava por criticar Israel foram aparecendo alguns comentários anti-semitas. Quanto mais agressivo for Israel, maior o risco de subir o anti-semitismo. E é bom que a luta contra a barbárie esteja livre desse velho monstro, recuse racistas encobertos, falsos amigos. Cabe aos críticos do comportamento de Israel, sionistas ou anti-sionistas, manter a luta limpa, não permitir que ela seja confundida com anti-semitismo. Será o tempo de um novo alerta. Tal como o momento de muitos judeus pelo mundo olharem isto de frente. A crítica ou o boicote a Israel não podem confundir-se com boicote a um povo. E quem é judeu também não tem de se confundir, nem sentir confundido com o que hoje é Israel. Muitas libertações por fazer.

5. Só o mundo pode acabar com a ocupação. Os EUA, a ONU, a UE, a pressão internacional, cada um à sua maneira e todos nós somados, desde boicotar os produtos que venham de Israel a não fazer peregrinações à Terra Santa com serviços israelitas. Mas se o “mainstream” aparentemente avança, o grande decisor externo regrediu. Estamos neste ponto em que o aliado número 1 de Israel, aquele que sempre permitiu tudo, e sem o qual Israel pouco ousaria, elege um caso clínico chamado Trump, que nem tenta disfarçar, nem fazer de conta que está interessado na vida dos palestinianos. E não só Trump abriu mesmo uma embaixada em Jerusalém, como mandou a filha e o genro inaugurá-la. Neste ponto de delírio, é fraco consolo que a maior parte das democracias tenham boicotado a inauguração. Era o que faltava que não boicotassem, cumpram-se os mínimos. Só não sei do que estão à espera para fazer mais. Quer dizer, de quantos mortos no mesmo dia, quantos bebés, quanta indignação das massas. Leio que o Conselho de Segurança da ONU está dividido sobre o que dizer dos últimos dias. Que surpresa. Mais uma vez esperei que Guterres dissesse qualquer coisa de diferente.

E, mesmo com o “mainstream” aparentemente a deslocar-se, continuei a ler títulos na imprensa portuguesa como “x mortos em confrontos entre palestinianos e soldados israelitas”. Os mortos foram todos palestinianos e não eram confrontos. Bastava abrir jornais como o “Guardian”, revistas como a “New Yorker” que simplesmente noticiaram: “Israel mata x palestinianos”. Foi isso que aconteceu.

6. Há muitas contradições dentro do Hamas, muitas tensões internas em Gaza. Conheço gente perseguida lá dentro, escrevi sobre tudo isso. A ocupação gerou muitos horrores, um deles foi atirar ao longo dos anos uma boa parte laica dos palestinianos para um abrigo religioso, porque era o que havia, outro foi dividir os palestinianos em Hamas/Fatah. É uma longa história, tem muitas raízes. Nem tenho ilusões sobre o Hamas, nem sobre o que deu força ao Hamas. Israel, claro, mas também a União Europeia, os EUA, a comunidade internacional. Culpas directas, desde as eleições de 2006. Os palestinianos pagam com a vida muitas culpas, incluindo as das democracias ocidentais, as de vários regimes árabes, as do governo corrrupto da Fatah, as da repressão do Hamas. Mas nada disso floresceria sem a ocupação.

Isto dito, o Hamas tem feito um esforço para fora, passou a aceitar oficialmente democracia, eleições, um estado palestiniano nas fronteiras de 1967 (aqui a entrevista que fiz em Gaza há um ano com um dos seus líderes, Basem Naim).

Tudo isso é consensual dentro do Hamas? Não será. E justamente por isso o importante era aproveitar a mudança de discurso oficial para comprometer mais o Hamas com essa mudança. Mas aconteceu o contrário, o Hamas fez um gesto para fora e cá fora foi ignorado. Não se aproveitou o novo programa para envolver o Hamas, para fortalecer quem lá dentro quer negociar, e enfraquecer quem não quer. Ninguém pareceu interessado sequer em tentar. E não, não foi o Hamas que faltou à palavra nas eleições de 2006, foi a dita comunidade internacional: antes, comprometia-se a respeitar os resultados, depois ficou em choque quando o Hamas ganhou. Era mais fácil continuar a apostar naquele Mahmoud Abbas, uma inexistência como líder. O que a dita comunidade internacional fez foi manter o status quo. E portanto a ocupação.

7. Uma última nota sobre a força. Não a do exército israelita, tão fraco que atira a matar em desarmados. Nem a das alas palestinianas que julguem jogar com a vida palestiniana. Mas a dos tantos e tantos palestinianos e palestinianas que conheci ao longo destes 15 anos. Fortes, dignos, resilientes no meio das ruínas, dos massacres, do recolher obrigatório, da fome, da falta de tudo. Estive em casas palestinianas, com famílias palestinianas, em muitos momentos maus, de bombardeio e ataque, sem água e sem luz, com corpos no chão e bocados de corpos, com lutos recentes, em campos de refugiados há décadas, dentro e fora da Palestina. Também estive com eles na alegria, no quebrar do jejum do Ramadão, que agora começa, nas festas de família, no humor, nas canções, nas brincadeiras, debaixo das oliveiras. E sempre, ao longo destes 15 anos, senti essa força, essa dignidade, essa resiliência. A ocupação corrompeu uma parte do muito que há de maravilhoso naquela terra. Mas o extraordinário é tudo o que ela não conseguiu corromper. Os milhões que já nasceram com a ocupação, filhos de quem já nasceu com a ocupação, netos de quem já nasceu com a ocupação, e teimam em ir à escola, em se porem bonitos a cada manhã, capricharem no que sai do forno, no que sai dos dedos se alguém borda ou toca “oud”, no que sai da garganta quando alguém canta, no amor àquelas colinas, àquelas pedras brancas, àquelas árvores milenares que dão o azeite e o sabão e os presépios esculpidos, àquele grão-de-bico, àquela hortelã, àquele jasmim sobre os muros, àquele sésamo que tostará o pão, àqueles poemas que todos sabem de cor. Os milhões que continuam a acreditar, ao fim de décadas. Essa Palestina é o oposto da derrocada humana.

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